A única conexão que eu consigo fazer é entre o desaparecimento dos pardais e o surgimento destas avezinhas negras que infectam nossos carros com seus excrementos azulados, cheios de ácido clorídrico, capazes de estragar a mais resistente das pinturas e arranhar os vidros quando escorrem.
Inútil dizer que afugentar estas pestes está sendo bastante difícil. Nosso governo ainda não se deu conta da gravidade do perigo que os Pássaros Negros representam para a nação porque eles parecem estar vindo das profundezas do mundo esquecido e passando por nossa terra remota ainda não chegaram à capital onde o Supremo come seu caviar e perdoa seus pares.
Sem fumigações e armadilhas oficiais, nos vemos obrigados a conviver com eles, a ver nossos veículos e telhados irremediavelmente danificados. Não há espantalho que os ponha medo: eles parecem ter dentro dos olhos a experiência de cada ave que já enganamos em nossa história de luta contra a natureza. E nos olham com expressões de tédio quando lhes fazemos barulho, quando brandimos inutilmente varas e lhes atiramos pedregulhos. Às vezes me causa ainda mais ódio porque me parece que nos olham com superioridade… e tédio.
Os pardais foram sumindo e eles foram se instalando. Maiores e mais forte que aquelas avezinhas de que tanto gostávamos, os Pássaros Negros roubaram delas todas as suas fontes de alimento. Por mais que os afugentássemos eles sempre levavam todas as sobras de comida.
Não bastando isso, têm ainda um sentimento de territorialidade que é realmente trágico: divididos em pequenos bandos de cinquenta ou cem, esses pequenos ladrões controlam áreas entre cinquenta e cem metros quadrados (onde abunda o alimento) ou quilômetros (onde escasseia). E não toleram que outros pilhadores da sujeira urbana se refestelem em seus recursos: Tão logo detectam a presença de algum salteador emplumado, mandam-lhe ao encalço uma verdadeira esquadrilha de jovens rápidos e ferozes que invariavelmente perseguem o invasor até quilômetros além da «fronteira» (se ele é veloz) ou o matam antes, se for o caso, para torná-lo também parte do permanente banquete de excrementos em que se cevam.
Apenas os urubus rompem o cerco, mas não ousam fazê-lo individualmente. Geralmente chegam em grupos de doze ou vinte: E deixam algumas sentinelas! Nas poucas vezes em que urubus solitários tentaram comer em um território controlado sofreram o mesmo ataque.
Ordeiros e disciplinados, os Pássaros Negros não se espalharam pelo campo imenso, que não poderiam controlar. Preferiram instalar-se em uma determinada região e aí proliferaram. Quando o bando cresceu, dividiu-se e outros territórios foram ocupados. É claro que esta ocupação não era sedentária. Assim fosse, poderíamos fumigá-los com venenos ou matá-los com nossas espingardas. Se um indivíduo era morto em determinado local, o bando se mudava. Se algum era mesmo ferido ou sofria séria ameaça, não ficavam os demais nem mais um dia dormindo no mesmo quarteirão.
Agora que já dominaram toda a cidade e arredores, e outras das cidades e parte do campo que as circunda; este receio desapareceu. Se tornaram frios e são capazes de ver a execução de um companheiro cinicamente e sem esboçar reação. Se porém o agressor está só o bando o agride sem piedade. Houve já casos de pessoas mortas por matarem Pássaros Negros. Num dos casos mais impressionantes o morto humano havia investido (dias antes!) contra uma ninhada e matado alguns filhotes. Quando voltava para casa à noite foi cercado por dezenas deles e bicado até a morte. Abriram-lhes as veias no meio da rua e perfuraram-lhe o abdômen e os olhos antes que morresse de hemorragia.
Escusado dizer que poucos são os que se atrevem a atacar os bandos. Quem o faz vai em grupos e usando roupas grossas que cobrem todo o corpo e máscaras que não permitem que a face seja desvendada. Usam também misturadores de voz porque se teme que os Pássaros Negros sejam capazes de identificar humanos pelo tom de voz.
Também não é preciso mencionar a catástrofe ecológica que isto está causando. Os Pássaros Negros devoram insetos em quantidades exorbitantes e pouco deixam para os outros. Essa escassez produz a fome entre as demais espécies, que inutilmente migram, já que aparentemente estes anjos do Apocalipse se instalaram em toda a região. Também atacam os pequenos animais: já não há ratos-do-campo, nem piriás, nem beija-flores, nem porquinhos-da-índia e nem ratos em parte alguma. Exceto os animais do Zoológico, os outros estão morrendo de inanição e vêm desesperadamente à cidade, alguns, buscando comida às portas dos homens. Muitos são os que se comovem e os alimentam. Muitos são os que os matam para comê-los, porque também para nós humanos os Pássaros Negros estão trazendo perigo: Não há horta que se lhes resista e nem plantação que vingue diante de sua voracidade.
Mais uma vez eu abro a minha janela e contemplo os fios de luz nos postes cheios das odiosas figuras. Agora começam a bicá-los e também aos cabos telefônicos. Em breve teremos problemas mais graves. O último grito de desespero de uma cidade do interior nos aterrorizou: lá já não é possível viver, dada a proliferação de Pássaros Negros. Já nos chegam retirantes, alguns cegos. E todos contam que os nossos inimigos proliferam mais que coelhos.
Agora na cidade todos voltaram a usar chapéu e ninguém sai de casa sem óculos escuros por medo de ter o globo ocular traiçoeiramente perfurado por um desses voadores nojentos. Alguns chegam ao requinte de usar óculos de mergulho amarrados atrás da cabeça. Ponho o meu chapéu e meus óculos de serralheiro e saio à rua. Gosto dos óculos de serralheiro porque são enormes e me permitem olhar por todo o alcance de meu músculo ocular. O céu está silencioso hoje, como sempre. Em frente a Igreja o Padre esquálido contempla o céu rezando não mais por chuva como antigamente mas para que o fogo divino nos consuma.