Existe uma certa magia nas grandes, labirínticas cidades e suas ruas. Uma magia que seduz principalmente aos acostumados com os horizontes curtos de Minas Gerais, onde o hábito de contemplar montanhas bloqueia os voos da imaginação de quem não ousa escalar os topos para descortinar uma vista aberta. Certas cidades possuem um ar ainda mais labiríntico e um fascínio ainda mais palpável do que outras porque justamente colocam lado a lado coisas diversas e surpresas inesperadas. Tal é o caso de Juiz de Fora, com seus quarteirões em formatos estranhos, variando entre quadrados, paralelogramos e triângulos, com suas avenidas retas e, mais que tudo, suas galerias convolutas que escondem lojas e outra galerias que escondem lojas e outras galerias, que escondem, no fim de corredores onde nunca o sol chega diretamente, lugares inauditos, cheios de experiências que fazem as pupilas do jovem interiorano se expandirem: lojas e outras galerias.
Há uma destas que parece a entrada de um universo de fantasia, o portal para um tempo-espaço onde as leis da Física e o rumo da História seguiram uma direção alternativa. Você entra ao lado do Cine Central, passa por entre as mesas de um restaurante, penetra por um sombrio corredor meio iluminado por lâmpadas fluorescentes onde abundam lojas pequenas, com amplas vitrines de vidro que expõem de roupas a discos e bugigangas, tudo de estilos que destoam do comum. As pessoas que frequentam o lugar se vestem de um jeito diferente, maquiam-se mais e cortam o cabelo de jeitos incomuns. Usam acessórios e tatuagens que podem chocar até aos olhos de alguém acostumado a lugares e mentes pequenas.
Mas não é exatamente nesta primeira galeira que se acha aquilo que me levou a escrever. Se chegar ao fim dela, perceberá que ali há uma bifurcação, duas galerias dentro do fim da primeira galeria. Cada uma destas galerias possui outra bifurcação no final, segundo me disseram, e é possível que este esquema fractal se reproduza ao infinito levando a outras dimensões. É possível porque nunca fui verificar e o desconhecido esconde a possibilidade do impossível.
Nem é neste improvável labirinto que eu a encontrei, mas em uma escada estreita que aparece, *às vezes*, e devo enfatizar essa condição, no meio da galeria secundária, à direita. Subindo por ali, não há elevador, chega-se a uma sobre-loja, onde cômodos comerciais abrigam vários tipos de negócios e ócios e também portas vazias que eu nunca abri, outras escadas que parecem e não parecem existir. Estava ali, no segundo andar deste prédio tão no centro e ao mesmo tempo tão longe a livraria de que lhe falei.
Eu sei, Beto, que você é um cético empedernido, desses que descrê até do café que toma, mas acredite, pelo menos, em mim que sou seu amigo e conhecido há tantos anos.
— Você sabe muito bem, meu caro, que não sou dos que aceitam essas coisas místicas. Qualquer prova disso seria um disparate, seria quase como, de repente, choverem sapos.
— Então, você tem que ver isso, Beto. É o lugar mais estranho onde já estive.
— Eu duvido, mas estou indo contigo. Não é que eu espere ter a prova, ou que desconfie do amigo, mas esse lugar de que fala é algo de que já ouvi falar duas vezes.
— Duas vezes?
— Sim. Da primeira vez que li sobre esse lugar foi em uma Playboy muito antiga, que estava na coleção de meu finado pai. Era um conto traduzido, de um americano chamado Nélson Bond. Eu achei uma história do caralho, mas depois descobri que ele e o Jorge Luis Borges tinham se estranhado com acusações recíprocas de plágio, uma ideia dessas que aparece, às vezes, em dois lugares ao mesmo tempo. Jung chamava isso de “sincronicidade”, eu chamo de um mero efeito da quantidade limitada de possíveis histórias que alguém pode contar.
Eu o encontrara casualmente naquela manhã, enquanto tomava um café e comia uma fatia de broa de fubá em um bar qualquer da Halfeld. Éramos amigos de muitos anos, mas fazia um bom tempo já que não nos víamos. Por isso ele, que me viu pelas costas antes que eu o notasse, fez questão de entrar, cumprimentar-me e pedir para si um café também. Gastamos uma boa hora ali, conversando animados sobre os anos que vivêramos em separado, adiantando planos e, na maior parte do tempo, pondo em revista perspectivas, realizadas ou não, desde que nos faláramos da outra vez.
Não sei direito como foi que o assunto da Livraria surgiu. Lembro-me vagamente de um comentário, não sei dele ou meu, sobre livros que parecem maravilhosos, mas são tão ralos e ruins de conteúdo que talvez não devessem ter sido escritos, que deviam ter ficado no sonho do autor, mais talentoso em sinopses e títulos do que para contar a história. Não sei nem mesmo se esse comentário aconteceu ou se minha memória seletiva deturpou o registro da conversa inserindo esta explicação racional para o fato de, apenas saídos do bar, termos subido a rua juntos, entre gargalhadas, como dois colegiais narrando peripécias de fim de semana, e entrado pela obscura galeria. Só sei que começamos nosso périplo com um convite meu, cujos termos ainda tenho em mente:
— Então tem um lugar, aqui bem perto, que você gostaria muito de conhecer. Vamos lá comigo. Eu o conheci por acaso, não sei exatamente o que estava procurando. Entrei por uma galeria e peguei uma escada diferente, que nunca tinha visto. De repente eu estava no corredor do segundo andar, entre uma loja de discos antigos e raros e uma de artesanatos exóticos. Dobrei a esquina do corredor e vi uma porta entreaberta, com um cartaz improvisado em sulfite e escrito com pincel atômico verde, em letras que imitavam pessimamente uma caligrafia cursiva medieval: “Livraria Futuro do Pretérito”.
— “Futuro do Pretérito” é mesmo um nome genial para uma livraria. Se eu visse esse cartaz pensaria de imediato que era uma livraria onde se vendem livros que teriam sido escritos.
— Você é mais perspicaz do que eu, Beto. Já lhe disse isso um monte de vezes. Eu não tenho a sua imaginação, sou só um ledor compulsivo que já não fantasia. Por isso, quando vi o cartaz na porta, a última coisa em que pensei foi em algo além do normal. Entrei pensando que encontraria ali apenas livros comuns.
— E não foram?
— De forma alguma. Quando entrei havia ali apenas uma fileira de estantes, todas iguais, de madeira escura, todas cheias de volumes dos mais variados estilos. Capas de couro, cetim, cartão e vergê. Coloridas, monocromáticas, em tons de cinza, em toda variedade de projetos gráficos que se possa conceber. Comecei a andar por entre as prateleiras fascinado por aqueles livros tão bonitos. Havia alguns grossos como bíblias, outros finos como folhetos. Os títulos vinham em variadas fontes, desde desenhos rebuscados, góticos, barrocos, renascentistas, bauhaus ou modernistas, até sóbrias letras humanistas, geométricas ou textuais.
— E eram livros bons?
— Ah, essa é a pergunta que vale um milhão. Eu não sabia e nem tinha como saber, pois ao examinar, um a um, aqueles livros todos ali colecionados, eu não consegui encontrar, entre eles, sequer um título de que ouvira falar, embora alguns até soassem familiares, embora alguns autores até fossem conhecidos.
— Nenhum livro conhecido? Que espécie de livraria é essa?
— A princípio eu imaginei que aqueles livros fossem obras raras, dessas edições de poucas centenas de volumes que algumas editoras fazem, geralmente edições luxuosas, ilustradas, autografadas pelos escritores. Por isso logo supus ter encontrado um tesouro. Senti algo doer em meu bolso, só de imaginar quanto me custariam aqueles livros, mas tinha uma vontade feroz de comprar alguns. De voltar sempre e comprar mais, mesmo sem ainda saber de que se tratava.
— Mas por que você queria comprar se não conhecia? Eu teria querido conhecer primeiro.
— Você é um maldito cético, Beto. Você exigiria enfiar o dedo nas chagas de Jesus para crer na Ressurreição.
— Mais que isso, exigiria um DNA. Outra pessoa parecida com ele poderia ter ressuscitado.
Assim gargalhamos e chegamos à escada e eu terminei de convencê-lo a subir comigo em busca da livraria.
— Eu queria comprar, Beto, porque aqueles livros tinham títulos fascinantes, capas belíssimas, sinopses que prometiam leituras interessantes — o diabo é que mal consigo me lembrar de algum dos títulos, e olha que alguns até me fizeram rir quando li.
Paramos em frente à loja de discos raros e apontei para o corredor, à direita, onde ficava a livraria.
— Bem, aqui a coisa começa a ficar estranha. Alguns livros tinham sinopses na contracapa. Sinopses que prometiam mundos e fundos. Outros não tinham nada ali, só outra figura, ou um curioso espaço em branco, ou meramente recoberto por uma cor ou textura. Folheei alguns daqueles livros tentando descobrir do que se tratavam e, para meu espanto, não estavam completos. Alguns tinham só números de páginas, outros só os títulos de capítulos, raros tinham algum capítulo escrito no início, pouquíssimos tinham outro no fim também, um ou outro mal tinham o índice inteiro, havia muitos com prefácios escritos por gente até famosa, mas nenhum conteúdo depois. E havia aqueles, também, que só tinham rabiscos, borrões e dobraduras que lembravam páginas amassadas.
— Amigo, o que você tinha bebido nesse dia? Será que não batizaram sua cerveja?
— Só água mineral, e a tampinha não estava violada.
— Isto que você está me contando não faz nenhum sentido! Agora vejo que não é bem a mesma coisa de que já tinha ouvido falar.
— Pode ser difícil de crer, Beto. Mas fazer sentido faz. Afinal, era a “Livraria Futuro do Pretérito”, o lugar onde estão expostos os livros que os autores nunca terminaram, os que teriam sido escritos, que seriam publicados, que seriam os mais vendidos, que transformariam desconhecidos em celebridades, obras que revelariam novos gênios, talvez até algum novo Nobel literário para o hemisfério sul.
Meu amigo sorriu, desacreditando com todas as suas maquinações céticas. Acenou decididamente um “não” com a cabeça enquanto inspirava forte e declarou, como São Tomé diante de Jesus:
— Eis algo que só acredito vendo.
— Pois é ali, vamos até lá que, de repente, até aquele seu livro está à venda junto com os outros.
Estendi o braço convidando-o ao primeiro passo e ele, como ousado descrente que sabia ser, praticamente me deixou para trás. Dobramos a esquina e lá estava a porta, entreaberta, ainda com as marcas da fita adesiva que não me deixavam mentir, mas sem cartaz algum escrito em letras fora de moda.
Empurrei a porta e constatei, com irremediável desolação, que o lugar estava deserto, as paredes recém pintadas e o chão, coberto de jornais antigos, cheios de notícias que ninguém leria.
— Parece, meu caro amigo, que a sua livraria não está mais aqui.
Eu não tinha o que dizer, meu rosto estava quente como se uma malária impiedosa me tivesse contaminado. Levei às mãos a cabeça e não soube o que dizer para diminuir a minha vergonha. Saí de lá derrotado, sentindo até vertigens. Meu amigo, solícito como só os bons amigos sabem ser, percebeu minha consternação e desviou de assunto:
— Eu vi uns discos interessantes à venda na galeria lá embaixo. Larga mão disso e vamos ver o que tem?
Satisfeito em poder falar de música eu puxei a porta e fui saindo, não antes de olhar de novo para dentro da maldita sala comercial. Ao fazê-lo, notei, com o coração batendo arrebentado e fora de ritmo, que as manchetes dos jornais pareciam saídas do mesmo universo que produzira os curiosos livros que ninguém escrevera: “Juscelino Recebe a Faixa de Jango e Promete Fazer o País Avançar Mais Cinquenta Anos em Cinco”, “Etiópia Lidera Cúpula Africana e Isola Ditaduras”, “Reino do Havaí Comemora 200 anos de Independência”, “Polônia Concede Cidadania Plena aos Alemães de Gdańsk”.
Ainda tive tempo, antes de fechar a porta, de notar no cesto de lixo, rasgado em pequenas tiras, um cartaz amarelado escrito em verde. Não tive nenhuma curiosidade de tentar saber o que nele estava escrito. O Futuro do Pretérito sempre fora o meu tempo verbal mais odiado, e eu acabara de ter mais imensas razões para aprofundar o meu ódio. Fechei a porta do Futuro do Pretérito e fui comprar as versões “remasterizadas” dos antigos discos que meus pais ouviam.
Mas desde então fico imaginando se esta curiosa livraria não perambula pelas cidades do mundo, exibindo para quem queira ver o fracasso de autores que tiveram excelentes ideias mas não conseguiram transformá-las em nada mais que sonhos de livros que teriam centenas de páginas, bonitas capas e prefácios de amigos famosos. Talvez algum dia eu a reencontre em minha cidade. Talvez o leitor a encontre em algum lugar discreto de sua cidade.
Se isto ocorrer, não faça como eu. Compre um livro para ver o que acontece.