De qualquer ponto da cidade se pode ver a Montanha com sua ampla face de granito, uma larga presença a esconder o horizonte. Seu cume coberto de ralas árvores e rochas menores não é tão imponente, a não ser por estar tão alto. Subindo imponente como uma muralha, firmeza de séculos, sem flores nem poemas, é mais que um acidente geográfico, tornou-se parte da personalidade de Santa Cruz do Monte.
Ao pé da montanha cresceu a cidade, contemplando o granito e se agarrando à lama incerta do vale do Pardo. Santa Cruz do Monte sempre foi lembrada como uma cidade à sombra de uma montanha, não pelo rio nem pela floresta. Formou-se à base da Montanha como outras se formaram ao longo de rios, à margem de lagos ou no encontro de estradas.
Os primeiros habitantes, gente religiosa e nem sempre imune a lendas, aprenderam dos índios que o imenso rochedo guardava mistérios e era o lar de seres sombrios que não andavam pelos caminhos de Deus. Houvesse outra opção eles teriam mudado seu pouso para mais longe, mas a lógica do mundo não obedece aos impulsos da fé. Aquele lugar que transpirava a paganismo era um marco de referência visível desde muitas léguas, por ele as tropas de burros que varavam o sertão do século XIX entre o Rio de Janeiro e o interior de Minas Gerais precisavam orientar-se. Ali os tropeiros acampavam, reuniam-se a contar histórias e a fazer seus negócios. Por isso nasceu a cidade: a serviço das tropas, fruto do comércio desafiando as superstições e os séculos fechados nas matas ainda virgens do Sudeste de Minas, que um dia viria a ser chamado de Zona da Mata justamente por isso.
A gente que ia ficando era uma gente sem grande anseio de aventuras: eram pessoas que ganhavam suas vidas pacatas vendendo e comprando em torno das rotas do sertão. Lar de gente simples, o lugar era abrigo fértil para velhas lendas e superstições, facilitadas pela presença feminina das matas e pela proximidade intensa daquela gigante rocha de fúnebre aspecto.
Da inevitabilidade da convivência surgiu cedo a necessidade de conquista. Os homens que viviam junto àquele grandioso monumento natural não se sentiam tranquilos ao olhar para cima e ver apenas na crista do morro a fímbria do céu e as cores das nuvens. Por isso trataram de arranjar-se com Cristo para apor sua marca visível no sertão, aquela cruz de madeira negra que teve de ser tantas vezes refeita.
Não existem histórias de como ou quando pela primeira vez desbravaram as perigosas encostas ocidentais, através das quais, unicamente, se pode subir, a custo e ao longo de quilômetros, até o topo da Montanha. Não existem estas histórias, mas imagina-se que tenha sido há muito tempo que alguém teve a ideia de estender os caminhos até o cume e lá plantar uma cruz bem grande, visível desde muitas léguas, uma intervenção divina na paisagem pagã e natural do interior.
Não se sabe se foi antes ou depois da primeira capela, o que sabemos é que a primeira cruz estava lá muito, muito antes de alguém pela primeira vez deixar escrito algum relato, antes até de haverem resolvido mudar o antigo e terrível nome índio do lugar para o cristianíssimo Santa Cruz do Monte.
A fé daqueles homens rudes levou-os a cumprir estes desígnios, batizando a machado e a fogo a terra antiga e úmida, arrancando as árvores que vestiam a terra e expondo ao céu o vermelho de sua carne o negro de seus ossos de granito. No ano de 1917 a povoação, já chamada Santa Cruz do Monte, erguia um pequeno templo, que futuramente seria a paróquia de São Jerônimo e comemorava seu jubileu de diamantes. No alto da Montanha homens piedosos implantaram a marca definitiva da conquista daqueles sertões para a Igreja: o primeiro cruzeiro, simples estrutura de madeira enegrecida a fogo, obra tosca de marceneiros que não estavam acostumados a sutilezas, foi substituído por um potente e duradouro outro, gigantesco monumento feito de concreto e feiura, assentado sobre uma irremovível base de rochas prisioneiras do cimento.
A cruz, porém, como toda obra humana, foi pequena diante da imensa extensão que se descortinava desde a Montanha. Mesmo medindo cinco metros de altura e gastando mais cimento que muitas casas, só mesmo de muito perto podiam os viajantes perceber sua existência. Mas ainda assim ele dava aos habitantes a boa sensação de segurança no regaço do Senhor. Já haviam passado os antigos tempos em que os homens cruzavam com medo os sertões e as primeiras estradas já estavam riscando com suas cicatrizes cor-de-rosa a pele do país. Quando a catedral foi construída, décadas depois, a Montanha já não inspirava aquele velho receio e se transformara meramente em uma atração particular do município, apenas outro ponto a ser admirado pelos que passavam pela recém-construída rodovia.
Muito tempo passou e a cidade foi crescendo aos pés da Montanha, ocupou outros vales e outros montes, nenhum deles mais alto que a sombra dela. Com as décadas a paisagem foi se despindo de árvores, de pássaros, de brejos, daquele perfume doce úmido de mata. Ficou mais quente, predominou o cheiro impuro das pessoas e de suas coisas, de seus animais trazidos de longe. Vacas conquistaram as colinas, galinhas eram mais abundantes que jacus, camundongos competiam com as preás e mesmo as vidas das pessoas foram se normalizando, sua fala perdeu o jeito antigo e ganhou modismos trazidos pelo rádio, iguais aos que há em todo lugar.
A primeira vez em que vi a Montanha eu devia ter meus seis anos ou pouco mais ou menos. Lembro-me de tê-la acompanhado da janela do ônibus que me levava a Santo Antônio. Observei com maravilha nos olhos até que não fosse mais possível virar o pescoço. No caminho havia outras montanhas, havia serras imponentes e vales largos. Mas não havia nenhuma montanha majestosa como o Morro da Cruz. Por isso guardei cada detalhe de sua fisionomia, fui lembrando através da viagem e por muito tempo ainda pensava no tamanho daquela selvagem beleza que as crianças não entendem quando veem, apenas veem e lembram.
Ao longo dos anos passei ainda muitas vezes por Santa Cruz do Monte. Eu era uma criança pobre e doente e nunca pude passear muito, a não ser nas vezes em que ia a Santo Antônio consultar um médico famoso que dizia que eu tinha uma doença de nome estranho e fazia meus pais me darem muitos remédios de nomes compridos, um luxo que muitas vezes nos pôs em graves dificuldades financeiras mas não me curou.
Nunca entrava na cidade nessas vezes em que viajava — a não ser nas raras vezes em que dávamos o azar de embarcar num ônibus comercial. Minha mãe detestava quando isto acontecia porque a viagem demorava três horas ou mais, de tanto irmos parando em cada cidadezinha, em cada guarita de beira de estrada. Eu confesso que gostava, pois só assim podia ver ainda mais gente, ver mais lugares diferentes, às vezes até crianças brincando felizes. Nunca entendi porque a minha mãe sempre tinha tanta pressa de chegar. Para mim, e para todas as crianças felizes, a pressa ainda era um mau hábito que só o futuro ensinaria; naquela época eu ainda tinha tempo para ver as belezas do mundo em seu próprio ritmo.
No entanto, a minha infância infeliz, para minha felicidade, acabou por durar bastante tempo, pelo menos o suficiente para que eu conseguisse vir a ser feliz, embora não o bastante para que eu pudesse ser saudável. Ela acabou bem tarde, num belo dia em que descobri que namorar e montar robozinhos com pinos mágicos não eram atividades compatíveis…
Um dia um médico bem menos famoso descobriu que eu não tinha nenhuma doença de nome complicado, que não precisava tomar nenhum remédio de nome comprido. Ele dispensou-me de tudo aquilo e me permitiu fazer Educação Física pela primeira vez. Depois disso eu cresci, terminei os meus estudos e fui trabalhar. Minha vida passou a ser uma vida adulta e eu não tinha mais tempo para coisas tolas como enxergar a beleza do mundo. Piorou ainda mais depois que comecei a namorar. Tantas mulheres, tantos lugares para ir, tantas noites de sábado e nenhum tempo para olhar estrelas. Fui esquecendo as belezas velhas do mundo, as coisas trágicas e incríveis que existem desde sempre. Precisei ficar pobre para perder um pouco destas manhas e mumunhas de adulto e poder ver de novo o que há de bom em coisas simples.
Foi há poucos anos que a Montanha voltou a fazer parte de minha vida. Havia deixado um emprego de muitos anos e estava ganhando a vida como um simples professor contratado. Era uma vida com bem menos dinheiro, mas eu tinha bem mais tempo para pensar em coisas boas como amar, gostar de Deus e ver a beleza das coisas. Também acabei vivendo relações em vão, me esquecendo de Deus e outros medos de infância e enxerguei a fenomenal feiura que pode haver, especialmente nas cidades. Tive bons amigos nesta época, pude fazer com bem pouco dinheiro muita coisa que eu sempre sonhava e não tinha tempo. Aprendi a gostar de Guilherme Arantes e de gente que canta boas músicas, com letras cheias de sentido e melodias agradáveis aos cinco sentidos.
Nessa época eu tinha muitos empregos, nenhum que me prendesse. Um deles era justamente em Santa Cruz do Monte e ele me dava a chance de ir lá algumas vezes por semana, geralmente nas terças, quintas e sábados. Minhas idas repetidas, quase quotidianas, fizeram de Santa Cruz um lugar como qualquer outro. Por isso eu deixei de ver a Montanha com aqueles olhos maravilhados de quando eu era criança: eu passava tanto tempo lá, conhecia tanta gente de lá, fazia tantos lanches no bar da esquina olhando para a parede de granito que não via nada de mais naquela presença toda que lá estava a fazer sombra sobre metade da cidade, emparedando um lado do horizonte. E de repente a Montanha não era mais nada de estranho, de repente ela fazia parte da paisagem, como uma coisa qualquer em que ninguém quase prestava atenção. Nessa época também eu já sabia que a Montanha não era tão maravilhosa quanto fora. Não era mais aquela imponência virgem do passado: haviam derrubado a maior parte das matas, haviam feitos cercas que subiam pelas encostas íngremes, haviam posto postes, torres e antenas em sua crista alta, mais alto até que o cruzeiro. Essa visão de natureza profanada derrubava um pouco o poder de atrair que antes lá houvera.
Já não era mais sentido como aventura haver visitado o topo da Montanha. Na verdade eram bem poucos os jovens santa-cruzenses que não o haviam feito. Namorando ou para outras finalidades menos saudáveis e felizes, muitos subiam pelas estradinhas de terra que levavam ao cume para aproveitar a cada vez mais rara solidão de lá. Frequentemente viam-se faróis brilhando lá no alto quando era alta madrugada, indicando alguma travessura em curso. Nessas circunstâncias os pais se desesperavam querendo que as filhas já tivessem voltado para casa.
Naquele tempo ainda se usava ir de carro a lugares ermos para ouvir música e namorar. Parece que hoje já não ousam mais fazer isto, pois em cada lugar parece que pende uma insegurança, um clima de ameaça que não havia então. Ou talvez fôssemos apenas jovens e loucos, incapazes de enxergar perigos. Bastava entrar pela Avenida Getúlio Vargas e lá pela terceira ou quarta esquina chegava-se ao entroncamento da estrada que, sabíamos, subia até lá em cima, a estrada por onde todos os carros passavam rápido, tarde da noite, com os vidros erguidos mesmo no verão.
Um dia foi o meu carro que subiu por lá, mais ou menos no começo da fase louca de minha segunda adolescência. Dirigi pela estrada íngreme, estreita, empoeirada e deserta. Subindo sempre, até sentir a pressão do ar contra os tímpanos. O último relance de subida era perigoso, um escorregadio lance calçado de paralelepípedos, ainda por cima estreito de caber um carro só. A minha namorada respondia com risos a cada derrapada, no nervosismo alegre de estar numa aventura. Flávia tinha dessas coisas, talvez por isso eu gostava tanto dela: gosto dos que mudam o seu medo em respeito e usam de cautela para brigar contra os limites. Ao lado dela eu tive coragem de acelerar sem medo, hoje penso se faria de novo, numa noite úmida de sereno como aquela, junto a um barranco medonho como aquele. E eu não estava bêbado. Talvez só de amor.
Do alto uma visão quase que mágica: salpicadas pelo horizonte as luzes das cidades vizinhas rompiam o manto negro dos campos na lua nova. Uma, duas, três, quatro. Dependendo da transparência da atmosfera se poderia, talvez, contar mais delas. Pelo menos uma das cidadezinhas deixava transparecer a teia de ruas de um bairro. Dava para imaginar porque os primeiros brancos a andar por esses sertões tinham tanto receio.
A cruz de concreto não estava no cume, ao contrário do que pensávamos. Se estivesse, seria bem pouco visível lá de baixo. Por isso haviam-na colocado à beira do rochedo em um lance de descida da última escarpa do lado mais íngreme, abrindo seus braços brancos para saudar o vale amplo que de lá se abria. E ela que parecia estar contra o céu, posta no alto mais alto da Montanha, inalcançável e tão imensa quando vista de baixo, vista de perto era apenas um pequeno monumento de concreto, sem beleza nem imponência.
Foi muito boa a sensação de sentar no chão da encosta, acima do cruzeiro, sentindo um pouco como se estivéssemos acima de tudo e de lá pudéssemos contemplar um leque bem grande da superfície plana do mundo. Flávia teve naquele momento uma sensação parecida com a minha, parece que fomos crianças por algumas horas lá, ou anjos. Andamos por todo o terreno semiplano, coberto de pasto ralo, sob o escuro da lua nova. Víamos muito mais estrelas naquela noite sem lâmpadas, silenciosa e escura; não ouvíamos, além de nossos risos, nada que pudesse assustar. Eu sorri quando disse a Flávia que a felicidade é bem perto do abismo. Ela sorriu de volta e me chamou para bem perto da escarpa de trezentos metros pelo menos, de lá olhamos a cidade lá embaixo, parecendo tão murcha e adormecida.
Tivemos coragem de beijar por muito tempo, de fazer amor, de demorar por lá, de cheirar bastante o perfume imaculado daqueles ventos frios à beira do abismo. Mas não tivemos coragem de ligar o rádio do carro. Por mais bela que fosse a música, não seria mais bela que aquela oportunidade tão rara de escutar o silêncio.
Voltamos à Montanha ainda algumas vezes, cada vez mais fascinados por aquele escuro silêncio, lá mais perto das nuvens, longe das pacatas vidas das pessoas. Mas começamos a perceber que não éramos os únicos, e aos poucos fomos perdendo a coragem de ficar mais tempo, de sair andando pelo pasto admirando estrelas, de fazer amor no carro ouvindo a calada da noite. Nas últimas vezes nem tivemos mais coragem de chegar. Foi nessa época que fizeram as primeiras construções, para abrigar os instrumentos automáticos das torres de transmissão de televisão e de telefone.
Visitamos algumas vezes durante o dia, mas a mágica não era a mesma, parecia nem existir. Claro, se podia ver um horizonte enorme, uma luz intensa e as cores da distância graduadas como numa pintura da Renascença. Mas a imponência da montanha ficava menor porque não podíamos ver os fantasmas das luzes das cidades, porque não podíamos perceber que ali havia mais estrelas que as que víamos das janelas quadradas de nossas casas no vale.
Nessa época a Montanha perdeu seu resto de selvageria. Depois das torres de transmissão vieram as casas de fazendas e as cancelas nas estradas. Então puseram mirantes, construíram quiosques e fizeram do lugar um ponto turístico; o que quase sempre significa destruir o encanto e transformar a paisagem em um “cercadinho” para gente que não vem sonhar, mas gastar dinheiro. A beleza sempre é de graça, mas o turismo custa dinheiro.
O último golpe contra a montanha foi quando algum desses ricaços construiu sua mansão junto à escarpa, de forma a dominar o vale com sua feia imponência arquitetônica. Uma destas casas feitas para gordos fins de semana de churrascos, para a criação de cães de raça e para festas com mulheres ou amantes. Aquela construção feiosa, com suas telhas e janelas pseudo coloniais, apareceu lá em cima como um castelo medieval dominando uma planície. Para que a fizessem foi preciso cortar a trator um trecho plano na encosta, deixando uma cicatriz vermelha que desmoronou manchando o granito milenar, e foi preciso derrubar bastante da última mancha de mata para que da varanda o proprietário pudesse contemplar a paisagem, como um barão a vigiar os seus domínios.
Nesta época minha tristeza coincidiu com muitas coisas, com o fim dos dias de ingênuo amor com Flávia, breve intervalo infantil e feliz que eu pude ter de novo aos trinta anos. Cada vez que eu olhava para o alto e via aquela casa eu me sentia como se alguém houvesse invadido e destruído o meu mundinho, se assenhorado de meus antigos sonhos e me despejado deles. Aos poucos fui detestando aquela construção, mesmo sem nunca tê-la visto de perto e sem nunca ter conhecido o seu dono. Na verdade eu comecei a perceber que odeio cada coisa que muda o mundo, cada coisa que me lembra de que a vida passa, que os dias de inocência acabaram e agora tudo que me resta é ter momentos de beleza em meio a aridez do dia, flores brotando do calçamento, sujas da poeira, prestes a serem arrancadas pela primeira mão que passe.
E de repente vemos surgirem estas coisas mundanas e sem espírito, casas feitas segundo riscos de arquitetos que copiam de outros arquitetos, torres e antenas fabricadas com peças de montar que vêm de longe e são feitas, idênticas, em milhões de unidades. E percebemos que elas venceram com sua torpe e grandiosa monstruosidade, que conseguiram marcar com mais força a presença da mão humana que dominou e destrói aquele gesto de potência que Deus deixou no meio desta terra que um dia foi chamada de “sertão”.
Imperceptivelmente, porém, uma mudança maior aconteceu. Talvez um velho espírito que por lá vivia resolveu mudar-se, ou talvez morreu. Temos visto nos últimos anos que o granito já não é tão negro, que o verde das encostas desbotou em cinza. E neste último abril uma fenda se partiu na face do rochedo, uma lasca desprendeu-se e desceu a trovejar. Oficialmente dizem que a única vítima foi uma vaca infeliz. Sabemos, porém, no fundo de nós mesmos, que há outras vítimas pelo menos: a beleza do velho marco que já não resiste a ser domado como outra montanha qualquer e a velha graça de uma cidade ousada que o homem plantou no meio do sertão e que hoje é apenas uma cidade comum, até bem perto da civilização graças aos trens, às estradas e aos aviões.
Mas ainda há os que, como eu, olham para a parede de granito e veem na cicatriz da pedra que caiu a evidência de que a saudade não é inofensiva.
Leopoldina, 20 a 22 de julho de 2005