Nenhum pretexto tolo justifica não dormir uma boa noite de sono. Não há culpas, não há pendências, nem trabalho por fazer que valha o repouso. Porém dormir não é tão simples quanto parece. Parece haver uma conspiração contra o meu sono.
O dia inteiro aguardo a noite, na esperança de poder ouvir algum silêncio depois que meus vizinhos forem dormir, minha mulher enfim virar para o canto e mergulhar nos seus sonhos de classe média, as crianças estiverem brincado com fadinhas e bonecas em seu sono tranquilo. Quando, porém, tudo isso acontece é que percebo que dormir não me fará feliz. Dormir é absolutamente necessário, mas viver também o é, talvez mais absurda e proeminentemente.
Levanto-me, então, de minha cama e aproveito a quietude da noite para ter uma vida independente, para poder pensar em meus próprios sonhos, poder tentar levar adiante algum projeto meu.
Minha obsessão nos últimos anos tem sido mantida em segredo de todos, principalmente de minha família. Para eles eu sou apenas um homem triste e amargo, mal chegado aos quarenta anos, que não consegue nunca ter noites de sono inteiramente reparador, que sempre amanhece com dor de cabeça ou com algum mau jeito nos músculos. Não sabem que no recinto exíguo do quarto de empregada, onde eu tive de esconder meus livros e meus discos da sanha destruidora das crianças, eu venho mantendo nos últimos meses uma doce e estranha obsessão que é a verdadeira causa de minhas olheiras, de minhas dores, de meus ocasionais terrores ao ouvir certos ruídos e pensar em certas coisas.
Tudo começou quando recuperei, depois de anos perdido com um amigo que não queria devolver, um volume de autoria de um certo Papus.
Foi ele que me introduziu no universo daquilo que as pessoas comuns costumam chamar de “feitiçaria” e que eu, nos meus tempos de cético e ateu, chamava de meras superstições medievais restantes de um tempo em que a ciência ainda não havia explicado sequer os mais simples dos fenômenos. Nesse universo foi que eu encontrei a grandiosidade que eu nunca pude dar à minha vida e é nele que eu me intrometo a cada noite, sempre à custa de algum doloroso ritual.
Para chegar aonde estou atualmente foi preciso que eu aprendesse muita coisa, esquecesse muitos preconceitos, preparasse muito ao meu espírito e ao meu corpo. Sete meses os preparativos, sem contar os meses muitos em que me dediquei a estudar as bases que me ajudariam a penetrar nos antigos mistérios.
A primeira parte consistiu em, despreparado e ainda imaturo na Arte, evocar das trevas dos séculos esquecidos, aquele espírito que seria o meu protetor e o meu guia. Por entre a fumaça perfumada do incenso, através do brilho leitoso e vil de uma turmalina cuidadosamente lapidada eu o pude ver pela primeira vez na Quarta-Feira de Cinzas de 2003. Seus olhos eram negros e imensamente expressivos, seu rosto era marcado por traços firmes, como se desenhados a nanquim com gestos amplos e decididos como os de um calígrafo japonês. Ao longo de toda a Quaresma dediquei-me a meramente observá-lo e por muito tempo pareceu-me que ele não me via. Somente no domingo anterior à Páscoa foi que ele demonstrou me perceber e fui cumprimentado por seu sorriso, mostrando dentes finos, fortes, quase como garras.
Nos dias seguintes tive de afastar-me de meu laboratório devido à insistência da família em viajar no feriado. Foram dias tristes em que quase não pude suportar expectativa de o ver uma outra vez e, quem sabe, poder enfim falar-lhe.
Quando voltamos para casa, não me deteve o fato de ser ainda Páscoa. Meus tempos de ateísmo haviam destruído quaisquer receios quanto a essas datas. Naquela mesma noite eu reabri o meu laboratório e outra vez queimei o doce incenso de café, deixei brilhar apenas a fraca lâmpada azul e pus a turmalina diante de meu olho esquerdo aberto enquanto observava a parede coberta de livros.
Quando terminei de repetir as fórmulas de evocação fui quase surpreendido pela facilidade e pela definição da presença de meu guia: quase como se eu o pudesse sentir ali. Então ele pôs-se a falar-me pela primeira vez, com uma voz calma que ressoava nas fibras de minha alma. Disse que fora loucura minha haver negligenciado a preparação e feito sua evocação sem ter disponíveis os objetos mágicos necessários. Quando minha voz tremeu, presa na garganta sem conseguir sair, ele me tranquilizou dizendo que era para proteger-me que ele concordaram em vir, pela primeira vez em cento e cinquenta anos.
A partir de então tive de levar a efeito toda a preparação que não havia anteriormente completado. Meu guia enfatizara que minha própria vida estaria em risco, bem como a de quem mais houvesse na mesma casa em que fora instalado o laboratório, caso o canal que eu abrira fosse descoberto por larvas, vampiros, assombrações ou outras espécies de seres nocivos que abundam no além.
Naquela mesma noite eu montei guarda no corredor central de minha casa, trêmulo de medo a observar as portas da sala e da cozinha, tendo apenas o meu grito para defender minha família se alguma coisa viesse. E ainda mais desesperada era minha posição porque mesmo se viesse eu não poderia sequer enxergar a ameaça.
No dia seguinte adquiri em uma loja de aparência suspeita um punhal com longa lâmina de prata incrustada com caracteres chineses cujo significado — segundo me disse o vendedor — eram os cinco elementos da cosmogonia oriental (a terra, o ar, a água, o fogo e o éter). Achei apropriada a figuração, mesmo não tendo como confirmá-la, e este punhal se transformou na primeira espada mística que manejei. Em um antiquário encontrei uma solitária taça de cristal da Boêmia, única restante de um jogo de copa perdido ou que se quebrara. Completei os objetos básicos com uma moeda de ouro do império e um galho grosso de roseira que podei no parque usando meu canivete.
Minha esposa dormiu mais uma vez seu sono brando e inerte, uma vez mais alheia às minhas maquinações. As crianças aferrara-me às suas cobertas e eu, lutando contra o sono que já quase me vencia, entrei mais uma vez em meu laboratório para consagrar os quatro instrumentos. Com a ajuda de meu guia eu o fiz e a partir daquela noite não estive mais indefeso contra o além. Com o galho de roseira fiz um cajado simbólico, com o qual poderia abrir as trevas, ver a ameaça invisível, iluminar a escuridão. Com amoeda fiz o talismã que pendurei em meu peito — e com ele podia estar seguro de minha materialidade sempre que a ilusão me vencesse. Com a taça pude colher e aprisionar energias, positivas para meu uso, negativas para apenas neutralizá-las. Com a espada poderia desmaterializar aberrações, derrotar intrusos, cortar a corrente do mal. Naquela noite meu guia me fez cavaleiro de grau menor nas batalhas terríveis do mundo eterno que ousara discernir.
A abertura da primeira porta foi acompanhada de um longo ribombo de trovão que se ouvi dos dois lados do véu. Por um momento temi que minha esposa acordasse e notasse a minha ausência, mas ela continuou dormindo e eu pude, depois de alguns minutos tensos a hesitar, dar continuidade a ritual. Pude ver além da primeira porta, conter minha ânsia de gritar, guardar na memória o horror do primeiro círculo e depois, cuidadosamente fechar tão bem quanto possível a visão daquele pesadelo.
Na noite seguinte o meu guia prometeu-me a visão independente. Depositei a turmalina diante do pano negro que eu pendurara, cobrindo o espelho que fixara na parede. Naquela noite, pela terceira e última vez, ouvi a voz de meu guia falando dentro de meus pensamentos e ele me disse:
— Não vou mais desgastar minhas energias fazendo sozinho o esforço de comunicar-me. A partir de hoje seguirás os rituais apropriados das três portas restantes e quando tiverem sido completados, volta a seguir o que o livro recomenda. Voltarás a ter o meu conselho quando completares todas as preparações e tiveres o Espelho, o Cristal e o Cadinho.
Então iniciei, bem pacientemente, a trajetória que me transformou nisto que agora sou. Por três vezes sete semanas eu me preparei de corpo e alma para abrir, da maneira mais correta, os três portais que restavam. Depois me restariam os três últimos, os que me levariam à plenitude do conhecimento do primeiro nível.
Quando abria cada portal era como se eu visse um recanto do próprio Inferno, tal o horror que teimava depois em sair de minha lembrança. Meus terrores só pioravam e o meu sono era cada vez mais rarefeito. O último portal me pôs num estado de tal prostração que até pensaram que eu estivesse doente. Felizmente as minhas férias haviam chegado, em outubro, como sempre acontece com os subalternos, e eu podia dormir durante o dia para recuperar-me — embora esse hábito só fizesse minha esposa cada vez menos compreensiva.
Meu ar alheio às refeições não ajudava e ela às vezes me olhavam sem ternura e sem nada entender.
— Você tem que parar com essa mania de passar noites em claro, escrevendo…
— Você sabe, querida, à noite é quando posso fazer alguma coisa. De dia nem as crianças nem os vizinhos deixam. Não existe mais silêncio e nem tranquilidade no mundo de hoje.
Ela balançava a cabeça e eu não conseguia olharem seus olhos.
Na noite de 11 para 12 de outubro de 2003 conseguir o meu maior sucesso até então. Não apenas havia aberto o último dos quatro primeiros portais, mas havia também completado a consagração de cada uma das vinte e oito lâminas que eu montaria nas lentes da Lâmpada. Uma dourada para o Sol, uma azul para Mercúrio, uma verde para Vênus, uma branca para a Lua, uma vermelha para Marte, uma amarela para Júpiter e uma prateada para Saturno. Para evitar o incômodo das velas ou das mechas de querosene eu montei a minha lâmpada como um filtro multicolorido em torno de uma lâmpada branca comum, um filtro formado por vinte e oito lâminas de vidro colorido, quatro de cada uma das cores dos sete planetas principais da Astrologia, todas unidas por uma estrutura de chumbo e grafite. Quando acendi a Lâmpada pela primeira vez senti um arrepio em minha nuca, um calafrio pela minha espinha abaixo, um horror incontido regurgitando em meus testículos. Um segundo depois o ar estava permeado de algo que parecia uma fumaça colorida, mas eu logo descobri que era o etéreo oceano de energia mística que fluía.
Não sabia o que fazer, não esperava por esta revelação tão inesperada e a longa ausência de meu guia não me ajudava a descobrir. Desliguei a Lâmpada prendendo a respiração, sem saber o que pensar, se a energia vinha ou ia, se me abandonava ou se me seguia.
Após o término da preparação da Lâmpada os dias seguintes foram intensos e quase insones para mim. Sentia muito perto o momento em voltaria a falar com o meu guia, pressentia sua proximidade como algo inevitável para todo sempre em minha vida. O ritual do livro determinava como instância seguinte a consagração do Espelho, através do qual eu poderia ter acesso ao meu guia sem precisar penetrar no além e sem que ele precisasse desperdiçar sua preciosa essência em esforços imensos para me atingir. Cada dia passava lentamente, como se as horas estivessem agarradas teimosamente aos ponteiros negros do relógio. Quando a noite chegava eu dedicava-me intensamente a cada passo, pronunciando cada sílaba como dela dependesse a coesão do Universo. Ao pronunciar a última, exalei um longo suspiro sabendo que atingira a culminação de sete meses de preparo e que, ao descerrar o pano que eu pusera sobre o Espelho à guisa de cortina, eu talvez contemplasse o meu próprio fracasso, condenando-me a retornar ao início, correndo por mais sete meses risco de ser descoberto pelos renegados do além e ver a minha própria sanidade em risco.
Aquela noite, de 30 para 31 de outubro, foi particularmente extraordinária. Um silêncio pétreo se abatera sobre a vizinhança, quebrado apenas por distantes latidos de cães, ocasionais gatos pelos muros e os carros que passavam, naquela noite com menor frequência que o normal. Descerrei acortina com mãos trêmulas e contemplei o espelho sob a luz multifacetada da Lâmpada, absorvendo o perfume de incenso do Líbano, firmemente segurando em minha mão direita a espada, com o galho de roseira na esquerda, a taça diante de meus olhos e a moeda do Império pendurada em meu pescoço.
O espelho, no começo, pareceu ser um espelho, protegido dos raios da lâmpada pela cortina amontoada, mas refletindo o meu rosto iluminado de sete cores. Então percebi que ela não era mais um espelho, que havia se tornado opaco e muito escuro e que de dentro da profundeza do negro pareciam se destacar dois minúsculos pontos claros, que logo pareceram três e no momento seguinte eram os olhos e a face de meu Guia.
Suas palavras rolaram suaves e em um volume muito baixo, para que somente eu as escutasse.
— Vejo que conseguiste ultrapassar as quatro portas iniciais — disse ele — e que já possuis tudo que o livro, até agora, prescrevia.
— Sim — murmurei, mas minha voz não saía, embora meu guia parecesse me compreender.
— Então já sabes que a quinta, a sexta e a sétima portas te aguardam, e nelas a materialização de tua iniciação na Arte.
Engoli em seco e aguardei que ele terminasse.
— As quatro primeiras portas lhe mostraram os quatro elementos. A primeira mostrou-te a terra, que se conquista pela espada. A segunda, amais branda, mostrou-te a água, que não se conquista, mas ela taça podes manipular. A terceira mostrou-te o ar, cuja força é lenta, mas inexorável e só pode ser resistida pela vida, representada pelo galho. A quarta, a mais poderosa, mostrou-te o fogo, que conquista o metal e nele forja o que deseja. Com estas quatro portas aprendeste teus limites: podes enfrentar as forças da terra, podes utilizar os poderes da água, podes resistir ao ímpeto do ar, mas só podes sobreviver à potência do fogo.
— E agora? — perguntei, outra vez apenas prisioneiro de meus pensamentos.
— Agora adentrarás as três últimas portas. Uma em cada semana para que tenhas tempo de recuperar-te após cada uma. Não voltarei a procurar-te, senão depois que me puderes achar.
Mais uma vez eu fui deixado só. Meu guia não deixou sinal algum. Apenas no livro de Papus encontrei alento: ali estava o ritual a prosseguir, os últimos passos rumo à perfeição do nível elementar. Antes de fazê-lo, minha primeira providência foi providenciar batentes de cortiça para a única porta do cubículo, para que minhas murmurações não pudessem ser ouvidas por ninguém.
No dia seguinte, 31 de outubro, comecei o ritual da abertura de minha boca, para que minhas palavras se pudessem ouvir.
Durante sete noites a contar daquela eu me entreguei a evocações e orações terríveis como nunca antes eu ousara. O término das minhas férias não me impediu de dar prosseguimento a tudo. De minha boca abandonaram-me palavras que me amedrontavam quando meus ouvidos percebiam-nas, embora minha alma não se assustasse em pensá-las e minha garganta as propelisse tão gentil e cuidadosamente quanto um silvo de cobra. Ao final da sétima noite eu consegui abrir a boca e dizer a palavra-teste, que não ouso mais dizer nem mesmo impôr ao papel, e comandar com o galho de roseira em minha mão esquerda:
— Que as trevas se abram!
E as trevas se abriram e eu vi ao meu redor uma miríade de minúsculos seres disformes, apenas com rostos caninos e olhos que pareciam de serpentes. Eu mal os via, pois não pudera ainda abrir os meus olhos espirituais e só conseguia enxergá-los enquanto dançavam no ar próximo ao tênue brilho fantasmagórico emanado do galho de roseira, iluminados pela luz sobrenatural da Lâmpada. Depois de alguns minutos eu não consegui mais sustentar no ar o meu braço e eles desapareceram — mas não sem me deixar apavorado até a mais profunda medula de meus ossos:
— As larvas! As larvas! — murmurei em desespero — as larvas já me descobriram.
A partir daquele dia, embora o meu corpo já estivesse ficando exausto da fadiga de sete meses de pouquíssimo sono noturno, eu tive de me dedicar ainda mais, pois ao falhar em dominar a Arte eu me condenaria a uma morte que não seria rápida o bastante para poupar-me de excruciantes dores e que ainda me lançaria na maldição ignóbil de me incorporar ao exército de formas inferiores que pululam nas camadas mais baixas do tecido espiritual da terra.
No dia 7 de novembro comecei o ritual de abertura de meus olhos, para que eu pudesse enxergar, sem esforço de magia, não apenas as ameaças horríveis do etéreo, mas também a presença salutar de meu Guia.
Por outras sete noites eu me assustei comigo mesmo, repetindo orações nascidas em línguas mortas, escritas em algaravias esquecidas, traduzidas de tabletes de argila e papiros para a língua dúbia dos romanos, veículo dos padres e dos bruxos. Dei vida com minha voz repleta de pavor a cantos imemoriais, concebidos em um tempo em que o próprio conceito de beleza ainda não fora descoberto.
Cada estrofe, cada Amém, cada frase pagã que eu proferia era como se um peso de muitas toneladas fosse deslocado em algum lugar na distância. Eu ouvia o seu baque contro o chão, sentia o ar deslocado por seu movimento. E de repente, na última noite, eu descobri que parte do que eu lera agora não era mais a tradução inexata de um escriba romano inculto mas o próprio original na língua horrível da Suméria, com suas vocais fechadas e sua sucessão de sílabas simples que rugiam na boca como tartamudeio de um monstro. Outra parte surgia, em suspeitos garranchos marrons que pareciam marcados a sangue, no hierático decadente do Baixo Império do Egito — época de desespero em que os homens se voltaram para os esquecidos mistérios pré-históricos e monstruosidades outras que haviam sido expulsas, por quase três milênios, para os confins do mar de areia que os Egípcios chamavam simplesmente de Líbia.
O horror da descoberta foi ainda coroado pela súbita percepção de que eu jamais estaria sozinho outra vez.
No dia 14 de novembro iniciei a última semana de provas, reunindo minhas últimas forças, tentando não enxergar os abismos entre os quais cambaleava, passei a trabalhar a abertura de meus ouvidos. E a lembrança do exército de larvas a me espreitar…
àquela altura eu já mal conseguia tocar o Livro, que já não era o inocente volume escrito por Papus, traduzido por não sei quem, impresso em 1976 por uma editora cujo nome não declinarei. Eu não percebera no início, mas acada ritual que eu completava era como se o livro também se completasse em um processo de retorno a uma espécie de estado ideal em que ele deveria estar. As suas páginas, à medida que eu as passava, retornavam às línguas mortas, capítulos desapareciam, outros surgiam. Das entrelinhas brotavam novos rituais e de repente era como se fosse um outro livro: um livro cujas páginas anteriores eu não ousava sequer folhear por medo de descobrir por onde realmente estivera andado. Em vez disso refugiava-me na ilusão de que as páginas que eu ainda estava lendo eram as mesmas que Papus escrevera.
Quando completei o terceiro dia de rituais, tão logo de minha boca saiu o último Amém, ouvi interromper-se o silêncio da noite. Houve um rugido absurdo como o de trezentos e sessenta e cinco gritos de pavor, depois um zumbido furioso, como se milhões de abelhas rondassem minha casa, mas eu sabia que se fossem abelhas eu não ouviria por causa da cortiça que pusera nos batentes da porta.
Custou-me quase uma hora sair daquela quarto. Quando consegui, ainda o fiz com muito medo, se não do que poderia se abater sobre mim, por certo pelo que poderia encontrar lá fora.
Minhas crianças pareciam estar em segurança, dormindo tranquilas e inocentes em suas camas. Minha mulher ressonava discretamente abraçada ao travesseiro.
Eram duas horas e trinta minutos da manhã do dia 17 de novembro quando deitei minha cabeça no travesseiro.
A noite de 20 de novembro foi a última em que entrei no meu laboratório como um simples aprendiz. O último ritual era bem simples e não resultou em nada extraordinário. Até me senti melhor e de ânimo recarregado. Depois de apenas meia hora de recitações esquisitas, depositei sobre a mesa que servia de altar os quatro objetos, apaguei alâmpada e fui dormir mais cedo do que fizera durante sete meses:trinta minutos do dia 21.
Os dias seguintes foram de restabelecimento. Sentia-me mais cansado do que nunca e sabia que era preciso retomar as minhas forças antes do último passo. Por uma semana deitei-me cedo, caminhei pela manhã, nadei à tardinha na piscina do clube, fiz sauna antes de voltar para casa, barbeado e feliz.
Tive três memoráveis noites de amor com minha mulher, como não as tivera em meses. Levei as crianças para passeios no parque, tomei sorvete com elas na praça. Eu teria facilmente esquecido tudo, deixado aquelas noites de auto-infligida insônia serem perdidas na lembrança. Eu não queria, nem residualmente, transformar a minha vida em um pesadelo e, se dera prosseguimento aos rituais apenas para completar minha proteção, eu então me senti protegido. Parecia que tudo estava finalmente arranjado.
Então o verdadeiro pesadelo começou.
No dia 30 de novembro de 2003 o meu filho mais velho, na flor de seus oito anos, perdeu a sua vida de um modo estúpido em um brinquedo do parque de diversões que se instalara na cidade.
A minúscula montanha-russa tinha vagões em vez de carrinhos, vagões que corriam sobre trilhos de metal seguros apenas pela gravidade. Bastou um rápido descontrole para que velocidade demais se acumulasse na decida e o vagão não conseguisse fazer a curva: caiu do trilho com meu filho dentro, esmagou o seu crânio contra o chão na frente de dezenas de pessoas.
O horror que se seguiu quase me pôs em desespero. Eu não podia acreditar no que acontecera, era como se houvesse perdido contato com alguma forma de profunda inspiração que eu um dia tivera.
No sétimo dia após sua morte, ao voltar para casa, a Bíblia que minha esposa sempre mantinha aberta sobre um pedestal de madeira havia tido suas páginas viradas pelo vento. Ela estava aberta em algum ponto do Livro dos Juízes que eu não me recordo mais e nem tenho coragem de tentar procurar. Ali estava escrito o preço que pagara o homem que reerguera, contra a vontade de Deus, a cidade idólatra de Jericó: o filho mais velho ao completar os alicerces e o filho mais novo ao assentar os portões.
Durante quase dois minutos eu me mantive extático diante da Bíblia, observando as suas páginas como se ali se revelassem as entranhas de minha própria alma. Por todos os dias anteriores eu conseguira manter uma máscara de quase indiferença diante da tragédia. Naquele momento eu não pude mais.
Minha esposa também não pôde. Eu a perdi no momento em que ela entrou em nosso quarto e viu uma foto de nosso filho em um porta-retratos. Por mais que eu tentasse argumentar, não havia como negar que ela tinha razão ao dizer que aquela casa havia se tornado para ela um pesadelo. Eu ainda tentei dizer que a acompanharia aonde quer que ela fosse, que estaria ao seu lado absolutamente em qualquer situação, mas isso só serviu para fazê-la chorar mais:
— Que espécie de marido você tem sido para mim, Paulo?Há quase dois anos que a nossa vida se transformou numa espécie de peso que nós dois carregamos. Eu quero ser livre de novo, Paulo. Quero ser feliz! Quero encontrar alguém que goste de passear, que não tenha longas noites de insônia e depois passe dias mal-humorado…
— Querida… — foi tudo que pude dizer.
— Não diga nada, meu bem. Não é que eu não te ame mais, mas o fato é que eu preciso. Preciso viver! Diabos, eu tenho apenas 32 anos e nos meus últimos dez anos eu tenho sido uma mãe de família ocasionalmente feliz. Você não acha que eu mereço mais?
Apesar da dor profunda em que meu coração estava imerso, consegui manter a calma e graças ao amor profundo que ainda tinha por Cláudia eu consegui forçar a minha mão a assinar os papéis do divórcio, em 29 de dezembro de 2003. No dia 30, terça-feira, um caminhão demudança parou diante de nossa casa e eu consegui segurar minhas emoções o suficiente para ainda ajudar Cláudia a empacotar o que quis que fosse seu.
Quando ao final da tarde ela partiu eu me vi sentado no chão nu do que fora a nossa sala de visitas. Apenas minha imensa estante, que estivera por sete anos cheia apenas de cristais e bibelôs, fora deixada. Em cada cômodo a mesma desolação: um móvel, se muito, e eu deixado abandonado com meus livros, com meus discos, com móveis de que absolutamente fizera questão ou que ela positivamente rejeitara.
Então abri, pela primeira vez em mais de um mês, o meu laboratório criminoso em que manipulava sem perícia as forças do além. Ali estava tudo como deixara, inclusive alista dos últimos itens que faltavam para completar a minha entrada, como iniciado, no inumerável quorum dos magos.
Naquela noite entrei naquele quarto pela última vez na qualidade de mortal comum. Mantendo aberta a porta eu vesti sobre minhas roupas a capa de tecido simples, joguei o capuz sobre rosto e descalcei os meus sapatos.
Sem os livros, que já transferira de volta à estante da sala, o quarto parecia ser bem maior, grande o bastante para que eu riscasse entre o altar e a parede um círculo de giz bastante grande para que eu pudesse estar de pé, com folga, dentro dele. Então pus o punhal ao alcance de minha mão direita, preso ao cinto. Tomei em minha mão esquerda o galho de roseira, cingi em meu pescoço a medalhão feito com a moeda imperial e, pela primeira vez em muitos meses, peguei em minhas mãos o pedaço de turmalina verde que, no começo de minhas jornadas no mistério, servira para suprir-me com a visão que eu ainda não possuía.
Ao alcance de minha mão esta um dos interruptores que acendiam a Lâmpada. Atrás de mim o espelho que eu poderia usar contra o mal. Então eu pus o incenso, acendi a Lâmpada, acompanhei com o cajado o círculo de giz e pronunciei, de memória, a palavra horrível dos Sumérios:
ABZU
Um bafo frio de um vento vindo de séculos muito mortos soprou na minha face, um som fino de muitas vozes perdidas na distância se fez ouvir e no espaço de um minuto uma neblina lentamente acumulou-se, em meus olhos ou talvez mesmo no quarto, o círculo brilhou bruxuleantemente e logo desapareceu: eu havia penetrado temerariamente, desamparado, despreparado, no próprio universo paralelo a que chamam de Além.
Não sei exatamente o que foi que me levou a cometer uma tal loucura. Talvez eu estivesse querendo me matar, punir-me pelo complexo de culpa que me consumia desde a morte de meu filho. Ou talvez fosse uma mórbida curiosidade que me levava a querer ver tudo de uma vez enquanto tinha coragem e não me destruíam.
Quando a neblina dissipou-se eu estava de pé em um lugar escuro, entre árvores frondosas e perfumadas que balançavam ao sopro discreto da brisa. Nenhum ruído perturbava a harmonia daquelas amáveis trevas. No topo de um monte próximo um cavalo de pelo branco pastava sob a luz tenra daquele luar alienígena.
Pela segunda vez apenas, fiz a minha voz ouvir-se fora da realidade:
— Onde estás, meu guia? Onde estás?… ou me abandonaste?
Minas palavras saíram suaves de minha boca, quase com um pedido de licença ao mundo silencioso em que eu estava, mas logo a seguir elas ribombavam pelo ar como uma explosão, espantavam os morcegos e os pássaros que se ocultavam nos galhos das árvores, alertavam os coelhos e outros animaizinhos que punham cabeças atônitas para fora de suas tocas.
O cavalo me olhou, depois calmamente desceu do monte e desapareceu. Mas de sua inteligência nenhum outro sinal eu pude ver, pois nunca mais o vi.
— Eu abri os sete portais, meu guia! Eu fui bem-sucedido nas provas, eu enxerguei o que não existia, ouvi o que ninguém dizia, digo o que ninguém no mundo sabe. E aqui estou, dentro dos limites que eu não deveria ter cruzado! Venha, pois eu vim por ti!
Mas nenhuma voz respondeu na escuridão, a não ser que as nuvens que devagarinho abraçavam a lua pudessem ser contadas como tal.
Retirei de meu bolso a bela turmalina lapidada e através dela eu olhei tudo em volta. Em vão. Em vez de ver as árvores, os animais, as nuvens, a imensa e redonda lua… tudo que eu via era o branco estéril da parede.
Guardei a turmalina e gritei para a imensidão silenciosa, mas dessa vez a minha voz foi morrendo, cada vez mais tênue até que nem eu mesmo a ouvia mais. Os animais foram aos poucos retornando para as suas tocas.
Mas então eu percebi que não mais estava só. As nuvens rodopiavam em torno da lua, como mariposas em volta da luz, mariposas de olhos de serpente, de focinhos caninos e torsos humanos. Aluz se aproximou cada vez mais, revelando em sua face manchada de negroas cicatrizes de um rosto, o rosto de meu filho.
Então as árvores perderam seu perfume, perderam sua inocência. E de repente as árvores eram milhares de pessoas vestido capuzes sobre os olhos, todos armados de galhos de diversas madeiras em suas mãos esquerdas, todos olhando fixamente para a imensidão e cada um gritando em mais desespero em sua língua original. E eram gritos que varavam século se permaneciam como punhais a perfurar os meus ouvidos, e todos tinham suas mãos direitas erguidas para o alto e manchadas de negro e quando eu olhei a minha própria mão ela estava manchada do sangue de meu filho.
Então do alto do monte surgiu um homem vestido de branco, o meu Guia! Ele desceu silenciosamente em minha direção. Quando estava bem diante de mim abriu a boca e me congratulou em uma língua que eu sabia ser tão antiga e complexa, perversa quanto os monumentos megalíticos. Uma língua que se falara antes da escrita, uma língua que nenhuma escrita jamais pudera domar. Mas que, apesar disso, eu automaticamente entendia poisos meus ouvidos haviam sido abertos:
— Bem-Vindo! Ao mundo eterno da Mágika, ao mundo aonde o poder os conduz!
De repente; num momento de inspirada sinceridade que somente meu amor de pai, e de filho, poderiam provocar; abri os braços e lhe implorei que recebesse-me. Então num abraço o estreitei e era como se o seu corpo fosse feito de um pântano pestilento, estéril e movediço. Num instante de lucidez que Deus me concedeu eu olhei para baixo e vi morrendo os últimos grãos do brilho do círculo. Eu vi que estivera prestes a pisar fora, prestes a perder-me nas dobras das trevas por toda a eternidade.
Mas em vez disso eu dei um passo atrás e ergui o galho de roseira com a minha mão esquerda, alcançando o interruptor.
A luz multicolor morreu de um golpe só e o cenário alienígena se desfez em grãos minúsculos que rodopiaram como areia fina num redemoinho à minha volta.
O meu Guia deu-se conta do que eu fizera e aparentemente perdeu toda compostura e sabedoria. Demonstrando uma força sobre-humana ele me forçou a afastar-me e recompôs-se, mas alguma coisa já não era a mesma pois a luz mística já não favorecia. Guardei o galho de roseira e saquei de meu punhal, temendo já por minha vida. Mas no mesmo instante em que o fiz, antes que o pensamento acabasse de se completar, a minha mão arrancou o pano negro que cobria o Espelho.
Um raio de intensa luz se abriu no ar e um ruído poderoso sacudiu-nos. O Espelho parecia suspenso no ar, o meu Guia não tinha mais nenhuma iniciativa, apenas uma expressão de terror no rosto de cera.
— Traidor! Traidor! — ele berrava, possesso de uma raiva que parecia nem mais ser humana.
Então eu pude ver que ele flutuava pelo ar, irresistivelmente arrastado pela presença do Espelho. Então eu consegui sorrir.
— Por que fazes isso comigo? — ele perguntou, já com a voz empastada de desespero — eu fui teu Guia, eu seria teu Guia, eu te levaria a todos os mistérios!
— Realmente não tenho certeza. Mas acho que nem pensei se fazia ou não. As coisas foram acontecendo e eu estou gostando. Acho que estou fazendo isso por vingança! Estou fazendo por meu filho!
No momento em que o corpo suspenso de meu guia atingiu o espelho ouvi no ar o barulho de milhares de vidraças se quebrando, o grito de gerações de magos desesperados, a forçada passagem de milhares de almas do presente para o além. O meu Guia lentamente desapareceu pelo espelho adentro, deixando atrás de si apenas um perfume de incenso do Líbano no ar…
Olhei para o chão e pisei fora do círculo. Acendi aluz material e olhei para o espelho. Uma figura furtiva tentava se esconder da luz de 60 velas.
Então eu percebi a finalidade mais nobre de meu punhal e o cravei firmemente contra a face do espelho.
Cataguases, setembro de 2004
Não sou especialista em crítica literária, mas gostei muito desse conto.
A metáfora, na minha opinião, poderia ser a de que não vale a pena “sacrificar” os nossos relacionamentos e as pessoas reais das nossas vidas por uma causa qualquer, seja de que tipo for. As pessoas devem ser sempre a nossa prioridade.
Grande abraço
Åsa