Vão dizer que sou viúva da Ditadura só por eu dizer isso, mas a verdade é que tenho saudades dos antigos desfiles do Sete de Setembro, dos desfiles que havia quando eu era moleque de escola lá em Cataguases. Eram os tempos da Ditadura, sim, e muita gente sofria, mas eu era criança e não tinha que saber disso. O que me importa nessa saudade é que, naquela época, o Sete de Setembro era algo bonito de se ver, e não esse espetáculo desorganizado e deprimente que passa agora pela porta de minha casa.
O significado do feriado se perdeu: hoje em dia as crianças que estão lá marchando nem sabem o que estão fazendo porque praticamente não se ensina mais História na escola (hoje em dia você nem precisa ser professor dessa matéria para lecioná-la, segundo decreto de nosso digníssimo governador). Ninguém sabe que se está celebrando a Independência de nosso país, poucas pessoas sequer têm ideia de que “independência” seja algo importante e a maioria das pessoas que eu conheço venderiam a sua por um prato de lentilhas, cruas. Não é de admirar, portanto, que fiquem constrangidas, e não orgulhosas, de marchar pela rua no Sete de Setembro envergando o uniforme de sua escola.
O uniforme, aliás, é outra razão pela qual o feriado perdeu sua glória. Desde o fim da ditadura gostar de uniforme parece que ficou sendo um defeito de caráter ou um fetiche sexual de minorias. As escolas vão todas com uniformes muito chinfrins e muito iguais, em muitos casos encardidos pelo uso. Mas no Sete de Setembro de minha infância ninguém ousava sair no desfile com um uniforme que não fosse impecável: era preciso estrear um uniforme completo, novo, cheirando a sabão em pó e goma arábica. Mesmo as escolas “da plebe” tentavam se mostrar bonitas. A minha escola tinha o uniforme padrão das escolas estaduais mineiras — camisa branca e calça azul — mas a gente tentava melhorar a aparência sempre de alguma forma: um lenço verde-amarelo no bolso (sim, a camisa tinha bolso), botões azuis em vez de brancos, o tecido da calça em tergal em vez de brim…
Mesmo assim a gente invejava as escolas que tinham uniformes especiais. O Colégio Cataguases, com seus vistosos coletes vermelhos e suas calças pregueadas! O SENAI com seus jaquetões estilo cadete, com quepes de penacho! O Carmo, com suas boinas de pompom e suas camisas de mangas compridas! O Antônio Amaro, todo vestido de bege e cáqui! Nós nos sentíamos tão pobrezinhos por usar camisa branca e calça azul, tão comuns. Ficávamos depois de desfilar aguardando a passagem das outras escolas, invejando o dia em que estudaríamos lá.
Desfilar não era para qualquer um: era algo que intimidava. Intimidava tanto que era preciso convencer os alunos a aceitarem passar por isso. Os argumentos em geral eram na forma de pontos extras. Certa vez passei de ano por causa de um ponto extra obtido em Matemática graças ao Sete de Setembro (sim, no meu tempo ainda existia a reprovação, e ela era vista como falha do aluno e não como incompetência do professor). Desfilar intimidava porque era quase um rito de passagem, uma espécie de “baile de formatura” simulado: eram os machos mostrando seus penachos paras as fêmeas, uma espécie de dança de acasalamento em forma de marcha à frente pela avenida. Escorregar, tropeçar, dar uma topada ou perder o ritmo eram vergonhas que marcavam para todo o sempre.
Desfilávamos diante das autoridades e diante de um grande público, para o qual eram montadas arquibancadas de madeira ao largo da Avenida Astolfo Dutra. As arquibancadas ficavam lotadas, principalmente dos pais dos alunos que desfilavam, mas também de militares aposentados, patriotas de fim de semana e garotas querendo ver-nos em nossas vistosas vestes patrióticas. Desfilávamos cantando, para manter o passo firme no ritmo ditado pelos pulmões: “Nós somos da Pátria a guarda, fieis soldados por ela amados. Nas cores da nossa farda rebrilha a glória, fulge a vitória.” Alguns pervertiam esses versos para xingar os militares: “Os filhos da puta, os guardas, fieis ferrados, morrendo aguados. Nos cascos de suas patas rebrilha a gosma, foge a história”. Não se pensava em marchar ao som de música popular, como estão fazendo nesse momento lá fora. Muito menos ao som de música estrangeira. Afinal, é o Sete de Setembro e não o Quatro de Julho (que vai acabar sendo feriado do jeito que o pessoal anda lambendo as botas dos ianques).
Sabíamos que se alguém nos pegasse cantando isso haveria problemas. Naquele tempo ainda havia censura e histórias feias sobre o regime. Mas mesmo assim nós gostávamos da Pátria, que jogava futebol tão bem e era tão injustiçada na Copa do Mundo. E desfilávamos com orgulho nossos uniformes limpinhos, começando às sete da manhã e terminando às onze. Depois encontrávamos nossos pais no fim da Avenida e íamos comer pasteizinhos na Praça Santa Rita antes de ir para casa.
Hoje, bem, hoje ser patriota saiu de moda e uniforme é coisa de sauna gay. O desfile que passa pela minha porta tem uns poucos gatos pingados usando os mesmos uniformes do ano inteiro e caminhando aos tropeções, sem nem tentativa de marchar. Ninguém canta nada, a multidãozinha vai aos trancos e barrancos, tendo que ser praticamente tangida por uma professora, ou será pastora, através da rua. Pouca gente assiste, separada por uma mera corda e ninguém guarda no álbum com orgulho uma foto sua em uniforme de Sete de Setembro.
Eu não tenho nenhuma moral para atribuir a essa crônica. Não estou aqui para dizer que o mundo melhorou e nem que piorou, apenas desfilando minhas saudades e dizendo que hoje ninguém dá importância suficiente à Independência ou à Pátria para sequer comprar um uniforme novo para o Sete de Setembro.