No tempo em que eu ainda participava ativamente de comunidades literárias do Orkut, antes de ser reduzido a uma impessoa pelo proprietário delas, eu postei um trecho de um romance que estou desenvolvendo, que tem o título provisório de “Serra da Estrela” (cada dia gosto menos desse nome). Trata-se de um romance do gênero suspense/terror ambientado em algum lugar no interior de Minas Gerais (talvez um lugar que só exista em um universo paralelo) e cujos principais personagens são um lobisomem, uma mula sem cabeça e uma iara — sendo a mula a personagem mais importante dos três. Pois bem, ao postar esse texto eu recebi alguns comentários curiosos, que muito me fizeram pensar…
Pelo menos dois dos comentários eram de jovens internéticos e conectados que se sentiam pouco à vontade com o cenário e com os personagens — tal como os meus primos paulistas que, certa vez, nos meus tempos de infância, se surpreenderam ao ver uma vaca no sítio de meu pai e comentaram que “lá no Brasil não tem vaca”. O primeiro desses garotos comentou que tinha gostado do clima “noir“, mas que achava que a dinâmica da história não combinava com uma ambientação “exótica”. O segundo adicionou que o lobisomem não estava coerente com a mitologia estabelecida a respeito do personagem.
Na época eu preferi não comentar, porque nenhum comentário em relação a estas duas colocações poderia ser educado. Ou melhor, nenhum comentário apropriado que eu fizesse seria aceito como “educado” pelos dois receptores. Por isso preferi ficar quieto e não cultivar dois inimigos, dois não-leitores de minhas obras.
Mas a verdade, verdadeira, é que foram duas observações de uma imbecilidade relinchante. A primeira porque o sujeito que reside no Rio de Janeiro foi chamar de “exótica” a ambientação de uma história no interior de Minas Gerais, que ele pode conhecer simplesmente pegando um carro e dirigindo por três horas e meia para o norte. A segunda porque parte do pressuposto de que o personagem lobisomem que aparece no cinema é o “verdadeiro” lobisomem. No primeiro caso temos uma alienação completa em relação à cultura brasileira (pois dificilmente o garoto em questão chamaria o meu texto de exótico se eu o tivesse ambientado em upstate New York), e no segundo, uma falta de referência literária que é simplesmente indesculpável em alguém que diz gostar de literatura.
O primeiro comentário foi um dos que me inspiraram a escrever o Mistério Islandês, que pretendia satirizar a ambientação de textos em lugares “exóticos”, como os Estados Unidos ou o Japão dos mangás. A sátira falhou, claro, porque embora eu tenha tentado demonstrar o ridículo de se escrever sobre lugares aonde nunca fomos, muita gente tem dito que o texto ficou ótimo e eu não passo uma semana sem receber um pedido para continuar escrevendo a história. Mundo louco esse.
Eu continuo, desde aquela época, matutando sobre o significado, a longo prazo, de termos uma juventude que considera “exótica” uma obra literária ambientada no interior de Minas Gerais. Se pelo menos eu fosse amazonense e escrevesse sobre coisas de lá, ainda seria aceitável que um carioca tivesse algum estranhamento, mas do jeito que a coisa vai, daqui a pouco gente de Juiz de Fora vai achar que é exotismo eu escrever sobre Cataguases e Leopoldina.