Durante décadas o Brasil assistiu ao surgimento e ao crescimento do poder paralelo do tráfico no Rio de Janeiro, à sombra de um coquetel de incompetência, indiferença e conveniência. Causas que me esquivo de analisar a fundo, mas que os cariocas certamente entendem bem melhor do que eu, que olho de fora e com apenas solidariedade. A derrocada deste poder paraestatal que pareceu, em certo momento, triunfar sobre o Estado — sentimento magistralmente expresso pelo gaiato que certa vez declarou que «o crime organizado triunfa sobre o governo desorganizado» — deu-se no entanto, na esteira de um curioso fenômeno sociológico que quase ninguém ainda percebeu. Do que estou falando? Bem, «tropa de elite, osso duro de roer, pega um, pega geral, também vai pegar você».
Tudo começou quando o crime organizado rompeu o acordo tácito que sempre teve com a imprensa sensacionalista: «nós fazemos a notícia, vocês fazem o noticiário». A morte de Tim Lopes sinalizou que os líderes do narcoestado em gestação haviam começado a perceber na imprensa uma fonte de problemas, não mais uma aliada. Se antes os repórteres construíam as reputações de «malvadões» — de que tanto gostavam os jovens semianalfabetos e descalços que se alçavam ao poder propelidos pelo vício das classes superiores — agora ela passava a incomodar, à medida em que expunha os excessos a que os baronetes do tóxico haviam chegado, em sua ditadura sobre as vidas dos habitantes das localidades onde haviam se instalado. Tim Lopes morreu para mostrar que a favela não era um lugar pitoresco — ao contrário do que décadas de políticos conciliadores e ONGs escorregadias tentaram fazer ver.
Mais importante do que tudo: Tim Lopes era empregado de um Leviatã midiático bem musculoso, embora ferido, as Organizações Globo. Sua morte coincidiu com a derrocada definitiva da televisão aberta no Brasil, destinada desde já a transformar-se cada vez mais num monturo fétido de sobras. A Rede Globo de Televisão, cabeça deste império, precisava buscar outras frentes de expansão para precaver-se contra a iminente e inevitável decadência de suas receitas de publicidade oriundas deste veículo. Neste contexto, a exploração de novos mercados midiáticos já era uma realidade, mas faltava à Globo obter o impacto necessário para fincar bandeira.
Ao mesmo tempo, a política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro dava sinais de agonizar: nada parecia funcionar, nada parecia adiantar. Nesse cenário de desespero, em que todos pareciam desorientados, especialmente os pobres diabos que conviviam com loucos toxicômanos tarados armados de AR-15 na vizinhança, era absolutamente imperioso encontrar um herói. Melhor ainda se este herói, bem na tradição do herói brasileiro, não fosse um self-made man ou um cavaleiro solitário, mas um líder — algo de que tanto carece esse país.
Com a colaboração dos melhores cérebros que o dinheiro pode contratar, com atores globais em profusão, aproveitados da geladeira obrigatória por que passam para evitar desgaste de imagem, eis que surge «Tropa de Elite», o filme que transforma o antes pouco conhecido Batalhão de Operações Especiais da polícia fluminense em um fenômeno de mídia inusitado e inédito. «Tropa de elite, osso duro de roer, pega um, pega geral, também vai pegar você». A mensagem é dirigida ao traficante, e tem a intenção de profecia: um dia a casa vai cair e vai ser o caveira que vai dizer «perdeu, playboy» para o traficante descalço e sem camisa, cuja prisão emblemática funciona quase como símbolo heráldico da luta de classes, como expressão caricatural da subjugação do povo pela elite, quando incomodada.
Criado o mito do BOPE como reserva incorruptível dos valores da «boa polícia» e fixada a imagem do Capitão Nascimento como verdadeiro super-herói brasileiro, a Rede Globo entregou, de bandeja, nas mãos de um dos poucos governadores competentes que o Rio de Janeiro já teve desde que me entendo por gente, um cartucho de legitimidade para as forças da ordem, uma potência que poderia ser usada para terraplenar o crime organizado sem necessidade de ser politicamente correto. O povo carioca queria sangue, estava cansado de dar o próprio sangue e exigia o sangue dos bandidos (mas urina nas calças também serviria).
Não é necessário entrar nos detalhes de cada ato ou de cada política que foi levada a efeito no Rio de Janeiro desde que o primeiro Tropa de Elite invadiu a cultura de massas com sua mensagem clara de que, para o carioca e para o brasileiro, já bastava, já havia bastado há muito tempo, já havia bastado há muito tempo mesmo, só faltava os políticos, esses eternos maridos traídos, finalmente conseguirem enxergar, antes que dessem com a verdade como quem dá com o nariz na parede. O plano para matar Brizola, que aparece nessa história, não é detalhe desimportante: ele significa que é necessário matar o legado do caudilho gaúcho que introduziu a política de tolerância com a favela.
Quando Tropa de Elite saiu, alguns articulistas ventilaram na imprensa que o filme tinha uma mensagem fascista. Possivelmente. Mas poucos articulistas ventilaram que o crime organizado que se estabelecia em pseudoestado impunha, também, um totalitarismo manco.
Por isso Tropa de Elite 2 foi além do livro e colocou o Capitão Nascimento, já grisalho, tentando executar, através da política, o que não pudera executar com um fuzil na mão. Mas o poder do crime subornava deputados, juízes e sabe deus quem mais. Com o sucesso ainda maior, do segundo filme, ficou bem claro que todos que ventilassem qualquer coisa contra a arremetida inevitável contra o crime só poderiam estar mancomunados. Todos precisavam aplaudir, mesmo que tivessem as mãos sujas de sangue e o nariz entupido de cocaína.
Então, quando enfim, com apoio de blindados e bazucas, de marinha e de exército e de aeronáutica, o BOPE subiu a favela deixando atrás de si as crianças (em sua inocência) cantando o poderoso refrão, não foi inesperado que os «machos» do crime mijassem nas calças. Imaginar que dois mil homens treinados para matar estão subindo o morro atrás de você e que cada vizinho ou conhecido, de oito a oitenta anos, está com o dedo pronto para apontar seu esconderijo deve ser uma das coisas mais desesperadoras que se possa conceber. Tanto assim que o líder do Afro-Reggae chegou a declarar à imprensa que muitos chefões do tráfico estariam dispostos a render-se, que sabiam que pegariam «cana longa», alguns sabiam que até seriam mortos, mas eles pediam apenas que não fossem humilhados. Os facínoras se renderiam, até se entregariam à morte, diante de apenas a promessa de uma réstia de dignidade. Nenhum queria terminar como o Zeu, descalço e seminu, com as calças molhadas da própria urina e um olhar perdido, endurecido de medo, levado morro abaixo por um PM grisalho que tinha idade para ser seu pai. Em algum momento aquele jovem deve ter pensado na figura do próprio progenitor, de cita à mão, pronto para marcar suas nádegas de rebelde.
E assim a Rede Globo inspirou, guiu e cobriu um episódio quase orwelliano. Em que pese a necessidade de se destruir o crime, de se pacificar a cidade, de se destronar a ditadura do tóxico; é também verdade que esta destruição foi mais em efígie do que em fato, que ela foi preparada como espetáculo politicamente correto e funciona como exemplo do poder que Rede Globo ainda tem, apesar do sonho fútil de grandeza a que a Record aspira apenas. A Globo mostrou que tem o poder de produzir mais do que bordões de novela: ela produziu um mito que funcionou como instrumento de um fato histórico. Algum dia os historiadores se referirão a este ano de 2010 como o ano no qual um império midiático, ofendido em sua honra pela ousadia de matarem um protegido seu, orquestrou fria e meticulosamente, um fenômeno de massas de grande envergadura que terminou em uma cobertura jornalística de um fato real (embora transcrito da ficção).
E ficou o bordão, como um mantra a ameaçar doravante os que ousarem tentar criar outro pseudoestado ou que se opuserem à clara hegemonia cultural de que se fala: «Tropa de Elite, osso duro de roer, pega um, pega geral, também vai pegar você.»
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