Comecei tendo os primeiros sintomas quando era ainda estudante. Vivia longe da família numa cidade distante e demorei a me enturmar com os meus colegas da faculdade: eles zombavam de meu dialeto, me chamavam de caipira e não compreendiam os meus valores. Isto me afastava das festas das repúblicas e progressivamente me empurrou para longe da vida social: aluguei um apartamento no centro da cidade e tinha um emprego de meia jornada.
Posteriormente eu me formei e o meu chefe me ofereceu o emprego em tempo integral, com um aumento de três vezes no salário. Eu fiquei na cidade e todos os meus antigos colegas voltaram para suas casas distantes, entre eles a única namorada que eu tive durante cinco anos de estudos. Meus pais continuaram vivendo em Santa Rita do Sul, a duzentos e vinte quilômetros de distância. Tentei várias vezes retornar, mas nunca consegui perto de casa um emprego que me pagasse tão bem. Era 1999 e eu já ganhava 920 reais por mês, administrando a contabilidade da empresa.
Nos fins de semana os estudantes sempre iam embora, deixando a cidade vazia como um cenário de filme. Eu sentava na escadaria do adro da igreja no sábado à tarde, com um lanchinho posto em forma de piquenique. Lá do alto do morro eu me sentia isolado, desconectado, como se a Matriz existisse em outro universo. Quando passava algum carro lá embaixo, na rua, eu quase nem o ouvia: o calçamento de pedregulhos fazia os motoristas acelerarem pouco, não chegando a romper a calmaria.
Não havia nada no sábado à noite, a não ser os bailes da Terceira Idade. A cidade não tinha rádio, não tinha discoteca, não tinha exposição. Tinha uma infinidade de casas que sediavam repúblicas, casas que ficavam vazias como mausoléus quando chegava o fim de semana. Os colegas de trabalho eram quase todos vinte anos mais velhos do que eu, ou então garotos que viviam em cidades próximas e voltavam de ônibus para casa no final da manhã de sábado. Somente eu ficava, vagando pela cidade como uma alma penada no cemitério.
Quando finalmente comprei o carro e consegui aprender a dirigir, já havia me acostumado tanto com a solidão que tinha dificuldades para saber aonde ir. Dirigia até o trevo na saída da cidade, estacionava em um terreno baldio e olhava, intimidado, para os destinos múltiplos, para as placas verdes que indicavam lugares distantes. Tinha medo da estrada, medo do trevo, medo da vida.
Demorou muito tempo, porém, para que eu percebesse que estava doente. Inicialmente eu pensei que tinha algum tipo de problema do espírito e somente depois do fracasso da fé entendi que não era nada disso. Mas continuava sozinho.
Havia alguma coisa errada comigo, isso eu sabia. Alguma coisa de muito errada, alguma coisa que me afastava das pessoas, que me podava o caminho da felicidade. Mas em vez de reagir a isso eu me trancava, eu comprava cortinas escuras para as janelas, instalava filme escuro nos vidros do carro, mandava porem cortiça nos batentes das portas para isolar os ruídos de fora.
Conheci o Doutor Aristides no clube. Eu tinha comprado uma quota, mesmo sabendo que lá só encontraria senectude e solidões. Mas o Doutor Aristides era diferente. Tinha uma jovialidade estranha para os seus setenta anos de idade, mesmo sem pintar os cabelos. Sua fala era firme como a de um locutor, seus dedos manuseavam o baralho com a segurança de um mágico. Tinha sido médico da Marinha por muitos anos e se acostumara a tratar todo tipo de “esquisitices”.
Convidou-me ao seu consultório, com a promessa de curar-me. Não prometeu rapidez, no entanto. Era um “psicólogo homeopata”, e acreditava que a cura seria um processo a depender do próprio indivíduo, em vez de um efeito de medicamentos.
— Eu poderia receitar-lhe química maravilhosa, que interferiria com o seu cérebro e o faria sorrir. Mas eu não consigo enxergar dentro dos sorrisos das pessoas que usam essas substâncias, não sei se estou realmente fazendo-lhes bem ou prendendo suas almas dentro de sorrisos rígidos. Por isso eu estou desenvolvendo um novo tratamento, que estou chamando de “psicologia homeopática”. Claro que não é um tratamento aceito ou recomendado pelo CRP, mas eu posso me dar ao luxo de fazer estas extravagâncias agora. Estou aposentado e nada mais tenho a perder no mundo, se resolverem me cassar esta carteirinha preta com essa bela letra grega em dourado. Tenho bastante dinheiro para ser louco e tenho bastante loucos dispostos a tudo para salvar-se de seus demônios.
— Estou louco, doutor?
— Todos estamos, meu amigo — ele dizia.
Não me cobrava pelas consultas. Dizia que já tinha cobrado suficiente ao longo da vida para ter a casa e seu consultório.
— Mas não estou fazendo caridade, entenda. A não ser, talvez, comigo mesmo.
Demorou muito tempo até que eu entendesse o que o Doutor Aristides quisera dizer com esta observação.
O tratamento que ele propunha se baseava nos princípios de Hahnemann: simila similibus curantur.
— Para tratar-se de teu mal, o que precisas é de pequenas doses controladas deste próprio mal. Assim como amor com amor se cura, solidão se curará com solidão.
— De que forma eu posso ter doses controladas de solidão?
— Uma das coisas curiosas a respeito dos solitários é que frequentemente eles são interrompidos naquilo que fazem em suas horas de solidão. Desta forma, mesmo não tendo companhia real, eles não conseguem usufruir plenamente de sua solidão. Então é preciso que desenvolva métodos e rituais que lhe assegurem que os seus momentos de solidão sejam de solidão verdadeira. Que não sejam interrompidos por um imbecil cobrando-lhe a conta do condomínio ou por um boçal tocando música em uma festinha de aniversário.
Por isso eu gostava de fazer piquenique no adro da igreja: ali eu estava imerso em meus próprios pensamentos e ninguém aparecia para interromper!
— Mas, Doutor. Não existe o risco de continuar sozinho o tempo todo?
— Sim, claro. Como ai dizendo. A falta de fruição completa da solidão nos momentos que deveriam ser-lhe dedicados faz com que o indivíduo acabe tendo vontade de estar só nos momentos em que deveria buscar companhia. É mais ou menos como a fome que se tem durante a tarde quando o almoço é insuficiente. Mas você não deve comer entre as refeições, porque isso o tornaria gordo e lerdo com o passar do tempo. Da mesma forma, procurar ficar sozinho em outros momentos em que não deveria estar, fará com que se torne arredio e socialmente inapto.
— E em que consiste o seu tratamento, Doutor?
— Basicamente em duas coisas: assegurar a solidão perfeita e satisfatória nos momentos em que for necessário que o indivíduo esteja sozinho e, por outro lado, procurar impedir totalmente que a solidão se manifeste em todos os demais momentos de sua vida. Acredito que se conseguirmos um grau elevado de preservação destes dois momentos distintos, isolando-os entre si, a doença da solidão pode ser controlada ou, talvez, até mesmo curada. Estou iniciando o cadastramento de um grupo de voluntários para submetê-los a este tratamento que concebi. Se desejar participar, eis meu cartão.
— Não tenho dinheiro para um tratamento psicológico longo, Doutor. Ganho bem, mas não tão bem assim. A menos que o senhor tenha convênio com o meu plano de saúde.
— Não diga isso. Eu não lhe cobrarei nada. O senhor é que deveria ser pago por dispor-se a ajudar no progresso da ciência.
Peguei o cartão enquanto nos despedíamos depois de outra tarde de carteado e fui para casa determinado a ligar. Resolvi, no entanto, que tendo o Doutor me dado uma descrição tão completa e funcional de seu método, não era necessário que eu o procurasse: poderia automedicar-me, conduzir eu mesmo o tratamento, obtendo minha melhora sem o constrangimento de ter de frequentar um consultório de psicólogo.
Por isso, acabei ligando para o Doutor Aristides e comecei na segunda feira seguinte o tratamento. Reservei e cronometrei estritamente as horas de minha vida em que deveria passar estritamente só, sem a possibilidade de que me interrompessem. Durante estas horas, segundo o Doutor, eu deveria mergulhar o mais profundamente possível em meus próprios pensamentos e ideias, em meus sonhos frustrados de infância, em meus projetos pequenos de futuro.
Mas não funcionou. Embora eu tivesse algum sucesso em isolar-me melhor nos momentos de solidão, continuava sendo extremamente difícil impedir que a solidão pervagasse como uma sombra todos os demais momentos de minha vida. Impedir isso se mostrou muito cedo uma coisa impossível, acima das capacidades de um indivíduo.
O Doutor Aristides me recebeu sem questionar a demora. Ao lhe indagar a tolerância ele admitiu que a maioria das pessoas nunca aparecia:
— O ser humano parece acreditar que pode curar-se da solidão sozinho.
Eu já conhecia a essência do método, só não estava a par de sua implementação. Surpreendeu-me a longa sequencia de perguntas que o médico me fez. Quando terminamos todos aqueles testes, aquelas perguntas de livre associação, aqueles cartazes com borrões e outras coisas curiosas; ele me olhou nos olhos e decretou:
— O tratamento para a solidão consiste em um tipo de terapia de grupo.
— Algo como os alcoólicos anônimos? Aquela coisa de reuniões em torno de um grande círculo e filmes educativos e preces a Deus, etc.?
— Não, absolutamente nada disso. Você não tem um vício, você não é um pecador, você não comete crime algum. Você não precisa de perdão e nem de reedificação moral. Você é um doente que precisa de um tratamento. Só que o único tratamento possível é de uma natureza tal que se torna impossível levá-lo adiante sem ajuda.
Ele abriu um armário cheio de caixas de remédios atravessadas por tarjas pretas. Aqueles frascos diabólicos bem poderiam estar estampados com caveiras em vez dos logotipos ameaçadores de laboratórios mágicos localizados em cidades míticas.
— Eu poderia lhe receitar alguns desses. Aliás, pegue os que quiser no caso de querer ter uma viagem, eu lhe receito as doses seguras.
Afastei-me do armário como se ele contivesse feitiços poderosos.
— Mas estas substâncias não o curariam. Elas o fariam sorrir, certamente. Elas o fariam perder a vergonha e o fariam sonhar melhor. Todas essas coisas são boas, mas eu não acho bom tomar remédios para elas porque isso aí — ele apontou os frascos com o beiço — é como antitérmico para pacientes tuberculosos. Você quer ficar sem febre? Pode tomar alguns comprimidinhos. Mas a infecção está lá dentro, roendo a sua vida. Quer rir? Este daqui é ótimo — ele exibiu um frasco de Prozac — para isso e para outras coisas mais. Mas de que adianta rir com a boca e com a mente consciente se as causas de sua tristeza estão lá dentro enterradas, prontas para germinar no dia em que a dose falhar ou seu dinheiro para comprar outra caixa tiver acabado? É por isso que eu não acredito em remédios. Não nos da minha especialidade.
— Então eu não vou tomar remédios, doutor?
— Claro que não. A menos que se sinta mais confortável com a ideia de tomar alguma coisa que cause alguns efeitos colaterais. As pessoas costumam gostar de efeitos colaterais. “É o remédio agindo, você tem que suportar isso para melhorar depois”.
Demos juntos uma boa risada.
— De vez em quando, filho. De vez em quando você precisa de algumas pílulas do demônio para poder enfrentar isso aí — ele indicou a janela e o grande mundo lá fora com o seu queixo mal barbeado. A principal função dos psicólogos é dar as doses certas, demarcar o limite entre sonhos felizes e o paciente ficar catatônico e babando.
— Do jeito que o senhor fala, até parece que algum dia poderá me receitar um ácido.
— E por que não? Veneno por veneno… Eu já estou velho demais para acreditar em poções, meu filho. Se te faz bem, então tome uma dose segura depois de contratar alguém para limpar a bosta que vai cagar na calça durante a viagem…
— O que vamos fazer agora?
— É neste ponto que o método de tratamento passa a precisar da cooperação de todos os que estão se tratando, e do próprio terapeuta. Você precisa encontrar compromissos, mesmo que fúteis, para impedir que a solidão esteja presente nos outros momentos de sua vida. Da mesma forma como durante um tratamento existem momentos em que você está “tomando o remédio” e outros nos quais você “não está tomando o remédio”; e estes segundos são a maioria. Assim, você deverá “estar sozinho” durante certo tempo, mas não poderá estar sozinho durante o resto do tempo ou estaria tomando o remédio o tempo todo.
— O que me levaria a uma overdose?
— Não, meu amigo. Overdose é um termo alopático. Ele não se aplica nesse caso. Na verdade, quanto mais remédio você tomar para o seu mal, menor será o efeito. Se você permitir que a solidão esteja presente em todos os momentos, mesmo que marginalmente, então você nunca se curará. É preciso, em vez disso, reduzir a dose do remédio de forma progressiva até que ela se torne infinitesimal. Somente assim ele se tornará tão potente que eliminará a doença de sua alma.
Tendo feito estas observações, ele me apresentou ao programa de tratamento. Os demais pacientes, seis ao todo, eram um grupo aleatório de pessoas da cidade. Alguns nascidos lá, a maioria pessoas vindas de fora. Pessoas de todas as idades, mas a maioria residindo na casa mística dos trinta.
Maria Helena Fontes era uma dessas matriarcas do interior que apreciam casa cheia de netos aos domingos e muitos parentes que vêm de longe com histórias. Infelizmente ela tinha ficado viúva e perdido seu único filho em um acidente de automóvel, quinze anos antes. Não se casara de novo porque não conseguia se recuperar do amor imenso que tivera pelo marido, cujas fotos ainda enchiam a casa. Mesmo que se tivesse casado, porém, não teria tido filhos aos quarenta e cinco anos. A família do marido se afastara dela, a própria família morria aos poucos, deixando-a sozinha em uma casa enorme, cuja criadagem ela quase já não podia pagar.
Isabel era professora de educação artística em uma escola pública. Era bonita, embora o viço já lhe tivesse abandonado. Vivia sozinha em uma casinha herdada do pai, cercada por um jardim e por uma horta, cultivados ambos por suas mãos que viviam calejadas e sujas da tinta dos quadros que ela ainda insistia em pintar, embora raramente alguém comprasse.
Aderbal era um comerciante detestado pelos seus empregados devido a muitos erros cometidos no passado. A mulher o abandonara por causa de uma crise de ciúmes que lhe custara dois dentes. Aderbal vivia sob constante supervisão da polícia e o efeito de vários medicamentos de tarja preta. Seus filhos nunca o visitavam.
Artur era empregado de uma loja de material de construção. Era pequeno, feio e dentuço, embora dono de voz afinada e de um raro talento com o violão. Infelizmente, voz e violão não importam mais neste mundo que precisa de belos rostos: o máximo que lhe propuseram como carreira artística fora emprestar talento para um rosto adequado, em troca de um salário que seria uma percentagem pequena. Reagira indignado e abortara a carreira. Agora vendia material de construção e cantava em bares nos fins de semana. Ganhava pouco e vivia em um apartamento pequeno, de quarto e sala.
Dagmar era enfermeira no Hospital Municipal. Anda sempre maquiada e com as unhas impecáveis, mas nunca sorria. Na cidade tinha a fama de ser uma sádica, do tipo que fazia questão que a injeção sempre doesse, que o ponto da cirurgia sempre ficasse um pouquinho mais apertado que o necessário ou que o tapa nas nádegas da criança recém-nascida fosse um pouco mais forte. Colara grau em uma época em que mulher com diploma ainda era um bicho esquisito no interior. Nunca namorara e provavelmente era virgem aos quarenta e dois anos.
Julieta era uma adolescente gorda e que usava maquiagem pesada. Vestia-se pesadamente, tudo nela passava a impressão de peso, de morte, de tristeza. Comia compulsivamente e sentia-se imensamente feia, baleia. Não tinha amigos, não tinha namorado. Seus pais a mandavam de um médico para outro, de um regime para outro. Queriam pagar-lhe uma cara cirurgia em São Paulo. Não suportavam mais, queriam consertar a filha gorda a qualquer preço. Mas ela sempre passava em casa as noites solitárias de sábado, as horríveis manhãs de domingo, cada horrível dia da semana, especialmente os de escola.
Eles foram os primeiros que eu conheci: depois foram vindo outros, saindo outros.
— Vocês devem organizar-se de forma a suprimir a solidão da vida dos demais nos momentos em que eles não estejam se tratando. Mas apenas nesses momentos. Devem organizar-se de forma que cada um esteja longe dos demais durante certas horas, mas ao mesmo tempo esteja com alguém no resto do tempo, para limitar a aplicação do tratamento aos momentos designados. Como vão fazer isso é irrelevante, mas o importante é limitar a dose.
Organizamo-nos de diversas maneiras. A senhora Fontes fazia bolos e nos convidava para tomar o café da manhã de domingo em sua casa. O Aderbal tinha uma chácara onde sempre organizava almoços de domingo à beira da piscina. O Artur nos convidava para estudar com ele para o concurso dos correios. A Isabel nos levava às suas aulas de pintura no campo. E assim cada um ajudava a todos os demais no difícil controle da solidão.
Difícil porque, mesmo em companhia, havia momentos em que a solidão tentava se inserir, como uma cunha, o que poderia destruir a eficácia da aplicação. Era preciso então que alguém se aproximasse e interrompesse a reflexão solitária do paciente que se estivesse desgarrando. Manter a solidão sob controle, limitada aos momentos em que deveria estar ser parte do tratamento, acabava sendo uma tarefa tão complexa que nossas vidas começaram a girar em torno disso.
Éramos um grupo pequeno e difuso, formado por pessoas de temperamentos díspares e histórias de vida que vinham e iam por estradas que nunca ou raramente se encontrariam de outro modo. Mas todos éramos solitários, cobaias do revolucionário tratamento homeopático proposto pelo Doutor Aristides. E por sermos parte daquilo de forma que se tornava cada vez mais obrigatória, acabamos convivendo à força uns com os outros, criando vínculos de amizade ou de afeto.
O tratamento inteiro durou oito meses para mim. Durante este tempo presenciei várias pessoas que se disseram curadas e vários pacientes que chegaram, em momentos distintos. Também houve alguns abandonaram o tratamento por razões de força maior, como o Artur, que passou no concurso e foi embora, levando sua solidão ainda. Ou como a Isabel, que se matou devido ao pensamento fixo de que o tratamento não adiantaria. Foi uma grande perda. Isabel era bonita, eu gostava dela. A maioria, porém, melhorou ou permaneceu em tratamento depois que eu mesmo saí.
A minha saída, aliás, foi gradual. Acredito que lá pelo quinto mês eu já estava “saindo” sem o perceber. Foi preciso que o Doutor Aristides me fizesse ver que eu já estava fora. Nas primeiras semanas do tratamento havia pouca
A cura aconteceu, para mim, de uma forma aleatória. O Doutor Aristides me telefonou no fim de semana. Eu estava na praia, em companhia da Eva, minha namorada.
— Meus parabéns, você está estabilizado. Gostaria que viesse ao meu consultório durante a próxima semana para termos uma conversa.
Apareci no consultório tão logo voltei. Logo ao entrar fiz a pergunta obrigatória:
— Estabilizado ou curado?
— Eu prefiro dizer que está estabilizado. Não existe cura real para a solidão. Mas tenho analisado a sua progressão e posso dizer que você já não precisa do tratamento intensivo. Estou lhe dando alta do grupo de trabalho.
Foi como se removessem o chão sob meus pés.
— Por que diz isso? Como assim? Eu não vou mais participar do grupo? Fiz algo de errado?
— Calma, rapaz. Examine a sua própria vida e entenderá. Isso não é uma punição.
— Mas eu ainda me sinto tão só às vezes.
— Sempre se sentirá. “Sentir-se só” é uma coisa que acontece com os seres humanos de vez em quando. “Sentir-se triste” também. Não existe nenhum pecado nisso, não é crime isso.
— Quer dizer que voltarei a me sentir mal?
— Claro que sim, e muitas vezes. A vida tem dessas coisas: dias bons e dias ruins. As pessoas às vezes se esquecem disso porque nós vivemos em um mundo que parece querer que todos estejam rindo o tempo todo, que todos estejam permanentemente prontos para o sexo, festejando a vida maravilhosa. Mas isso é ilusão, nós dois sabemos que esse mundo é uma merda, que todas as pessoas têm seus dias tortos e que é uma sorte quando o seu santo e o da sua mulher estão em sintonia para uma boa trepada.
— É meio frustrante sair do tratamento assim.
— Exatamente por isso que você precisa sair.
— Hem?
— Uma premissa do tratamento homeopático, mesmo desse tipo estranho de “homeopatia” que eu ando praticando, é que o remédio só funciona enquanto existe doença. A partir do momento em que a doença deixa de existir o remédio passa a causá-la. Sua frustração é resultado de sua participação no grupo de terapia, e não de deixá-lo. Desapegue-se, garoto. Bata suas asas e viva sua vida. Aquilo lá não é mais para você.
— Mas… e os meus amigos?
— Caso não tenha notado, a maioria dos amigos que fez já saíram do grupo. Procure-os. E a propósito, pague-me o resto dos dois mil reais.
Naquele instante eu me dei conta do quanto fora eficaz o tratamento. A convivência com todas aquelas pessoas diferentes me apresentara a figuras paternais, como a Senhora Fontes ou o próprio doutor, a amigos de verdade, como o Aderbal, uma espécie de afilhada, como a Julieta e até uma namorada, a Eva, com quem planejava me casar.
— O objetivo do tratamento — disse-me o doutor indicando-me a saída — não é torná-lo feliz porque isso é impossível nesse mundo. Eu me contendo em tratar a solidão das pessoas. Acredito que você é mais um de meus casos de sucesso, e sem precisar receitar nada do maldito armário.
Na saída do consultório passei o cartão de crédito com a secretária e deixei o prédio me sentindo como quem acaba de montar um quebra-cabeças de duas mil peças, mas descobriu que a figura não fazia nenhum sentido. As palavras do Doutor Aristides eram coerentes, mas eu as ouvia como se elas fossem de madeira. Elas faziam ruído em meus ouvidos e não entravam em minha cabeça. Eu só conseguia continuar me perguntando de que forma o Doutor Aristides merecera os dois mil reais.
Quando perguntei para Eva, no entanto, ela foi pragmática:
— Você não precisa saber como, querido. Basta você aceitar que ele os mereceu muito.
Um mês e meio depois nos casamos. O Doutor Aristides não aceitou de maneira alguma o meu convite para padrinho de casamento. Na hora da cerimônia, porém, o motivo ficou claro: aparentemente não se chamava Aristides o risonho cavalheiro que entrou na igreja levando Eva pelo braço, envergando um rigoroso uniforme de médico da Marinha.
muito f*da brother, parabéns!
um abraço!
Nossa! Sinal dos tempos ou uma constatação de nossos dias? A de seu texto está excelente.
Abraços.