Eram tempos bicudos na vida, eu tive de vender meu carro. Já não era grande coisa: um fusca 1976 amarelo-ovo que eu detestava. Mesmo assim, vendê-lo doeu na alma. Doeu porque era um gesto simbólico da profunda decadência em que estava. Tinha sido quase rico, tinha comprado carro do ano, mas andaria a pé. Como dizia uma música do Leoni: “Já tive carro e grana e um monte de convites para qualquer lugar”. Tal como o infeliz personagem da canção, eu passaria a só andar a pé, a diferença era que andar passava a ser um sacrifício.
Foram três anos sem carro, muita sola de sapato gasta e muitas horas de solidão e estudo. Projetos que não vingavam, sonhos que morriam. Por fim consegui outro emprego e algum tempo depois pude comprar outra vez um automóvel. Nada de extraordinário, um Ford DelRey 89 a álcool que me daria um prejuízo de mais de R$3.500,00 no total, entre consertos, alto consumo de combustível, pneus novos, lanternagem e uma “manta” de R$ 1.200,00 quando tive de vendê-lo, quase dois anos depois. Desse carro guardo lembranças agridoces. Bons e maus momentos, frustrações e risadas. Uma dessas histórias teve a ver com os adesivos que o antigo dono tinha fixado no vidro traseiro e na lataria da tampa do porta-malas.
Provavelmente o DelRey tinha sido de alguém muito religioso, talvez até um pastor. Ele tinha nada menos que três adesivos proeminentes (um deles era até fluorescente) com mensagens tipicamente evangélicas. O primeiro, do lado superior do vidro, em letras grandes e berrantes, dizia “O Senhor é meu pastor, nada me faltará”. Faltava, porém, visibilidade, porque este adesivo tapava boa parte da visão do motorista. Isto talvez explicasse as várias marcas de batida que o DelRey tinha na traseira: dar marcha a ré olhando para um salmo não é tão seguro quanto fazê-lo olhando para o que há por detrás do carro. Desse adesivo eu mesmo me livrei logo, usando álcool isopropílico e uma espuma de cozinha. O segundo adesivo, localizado ao lado do logotipo da Ford, dizia que o veículo era “Propriedade do Senhor Jesus”. Não sei se fora o Senhor Jesus que o vendera para a loja de carros usados, mas tratei de me livrar também daquele adesivo quando o lanterneiro remendou as batidas da traseira. O terceiro adesivo, o mais colorido de todos, corria sobre a parte inferior do vidro, ajudando a estreitar ainda mais a visão para a marcha à ré, e dizia “Pode seguir-me, pois Jesus me guia”. Este adesivo era o mais problemático, pois tinha sido aplicado sobre um outro, mais antigo e já corroído pelo tempo. Eu tentara retirá-lo, mas logo de início percebera que seria um trabalho complicado e eu não tinha álcool suficiente para terminar. Então deixei o adesivo e acabei rodando com ele durante algumas semanas.
Tive então uma reunião de trabalho em Juiz de Fora, cidade aonde já tinha ido dúzias de vezes e que eu dizia conhecer “como a palma de minha mão”. Pela primeira vez em muito tempo eu tive a oportunidade de ir em meu próprio carro, e não poderia viajar de outra maneira. Até ficava mais caro ir em meu carro, mas era um prazer que eu quase esquecera. Entrei na cidade cuidadosamente, depois de quase cinco anos, temendo até ter esquecido onde ficava a Rua Halfeld. Passei pela entrada de Caeté, atravessei o trevo e tomei o “caminho do morro”, chegando à Avenida Brasil, no Poço Rico. Ao chegar ali eu tive uma “sensação estranha” de que havia “algo errado” com o carro que vinha atrás de mim: um Gol branco modelo quadrado, talvez ano 89 ou 91.
Tentei lembrar dos filmes de espionagem que assistia quando menino (sempre fora fã de James Bond e mesmo aos trinta e tantos anos eu ainda lembrava sequencias inteiras quase de cor) e comecei a pensar o que 007 faria se desconfiasse que alguém o estava seguindo. Obviamente o passo inicial era certificar-me de que estava mesmo sendo seguido. Para isso não havia maneira melhor que sair ligeiramente da rota esperada: o perseguidor teria de seguir, denunciando suas intenções, ou eu escaparia. Tomei a entrada da direita em vez de seguir pela avenida, à margem do Paraibuna. O Gol branco entrou comigo. Tomei uma rua à direita, depois outra à esquerda, depois de novo à esquerda. Eu tinha plena confiança de onde estava, não havia nenhum receio. O Gol branco me seguia fosse qual fosse o caminho.
Receoso, tomei uma rua que subia em direção a um morro. Caramba! Nem sei que rua era aquela. Subi acelerando, mas o velho motor CHT do DelRey começou a engasgar e a tossir, até finalmente travar num soluço lânguido e fazer o bicho parar no meio da ladeira. Estranho, porque nem na subida íngreme da chegada da cidade o carro sofrera tanto.
Um pavor sobrenatural tomou conta de mim. Meu coração parecia uma artilharia antiaérea. Minhas mãos estavam tão firmes no volante que meus músculos do braço doíam de retesados. Foi preciso praticamente uma torção de chave inglesa para eu girar o pescoço e olhar para trás.
Um homem usando óculos escuros, vestido de um terno branco riscado de cinza desceu. Ele tinha algo preto na mão. Meu Deus! Um revólver! O que será que eu fiz para mandarem um assassino profissional atrás de mim? Larguei o volante, abri a porta do carro com muito cuidado e fui descendo praticamente com as mãos ao alto, na esperança vã de que fosse somente um assalto.
Mas no que fazia isso notei que o volume escuro na mão do homem fora ilusão de minha mente. Os óculos escuros eram apenas por causa de lentes fotocromáticas: ele era tão míope quanto eu. Abaixei as mãos antes mesmo de ter chegado a levantá-las e tentei desfazer a expressão rígida do rosto.
O homem falou, com uma voz calma e pastoral, estilo e vocabulário típico de religiosos evangélicos:
— O irmão está com problemas?
Admiti que sim, com um simples aceno de cabeça.
— Eu o estava seguindo… — a honestidade do homem era comovente, talvez ele nem fosse me assaltar.
— S… seguindo?
— Notei que o irmão vem de Leopoldina, eu estou vivendo lá desde há uns cinco meses.
— Mas, por que estava me seguindo?
— O senhor dirigia como quem conhecia a cidade: eu estava perdido.
A súbita queda do nível de tensão teve um efeito tão relaxante sobre o meu estado de espírito que eu desgracei a rir sem parar, dobrando os joelhos e gargalhando até babar.
— O que foi, irmão?
Eu não conseguia parar de rir mais. O pobre pastor me seguia sem nenhuma outra intenção que achar o caminho para o hipermercado, e eu surtara achando que estava num filme do 007. Tive pena do pobre homem, que só queria fazer as compras de mês. Caramba! Ele estava com a família dentro do carro: mulher na frente e três crianças no banco de trás. Decidira seguir-me, talvez, porque o adesivo dizia que Jesus me guiava.
— Meu amigo — respondi-lhe — lamento dizer, mas se o senhor me seguiu até aqui porque estava perdido, então nós temos um problema. Não encare isso como uma blasfêmia, mas agora eu estou perdido e sem a mínima idéia de onde estou. Eu me perdi quando decidi não acompanhar a Avenida Brasil, justamente porque estava tentando saber se você estava me seguindo…
O pastor pareceu desolado:
— Realmente, irmão, todos nos perdemos quando saímos do caminho traçado por Jesus.
Ele disse isso com a metade de um sorriso no rosto. Parecia ser um bom homem.
— Mas no fim de contas, irmão, parece que Jesus realmente nos guiará.
Ele fez um gesto com o queixo, que me fez olhar para trás: um policial militar descia do alto do morro, uniformizado, a caminho do trabalho. Tomei a iniciativa de chamar-lhe e pedir ajuda. Ofereci-lhe carona até o centro em troca de orientações. Ele aceitou, claro. Uma passagem de ônibus pode ser pouca coisa para economizar, mas quem desperdiça centavos não economiza milhões. Enquanto ele entrava no meu carro, casualmente notei uma coincidência curiosa: na etiqueta pregada no bolso direito da farda estava escrito “Cb. Jesus O+”.