Eu tenho um armário cheio de vidas que eu não vivi. Cada uma delas daria um romance. Lembro da noite em que poderia ter ido à praça com os amigos, mas fui ver o futebol. Lembro de quando ganharia uma camisa do Botafogo de um primo meu para deixar de torcer para o Atlético. Lembro do relacionamento que nunca começou. Cada um desses inúmeros acontecimentos daria início a um futuro que eu não vivi. Vários deles poderiam ser melhores, nenhum deles foi possível, qualquer um deles poderia ter me levado a um lugar diferente deste a que cheguei, melhor ou pior.
Eu tenho um porão repleto de erros que cometi. Cada um deles justificaria que eu fugisse. Lembro de palavras que disse na hora errada e que me fizeram ouvir coisas que me esquentaram as orelhas. Lembro de enganos que mataram esperanças. Lembro de acidentes que quase me mataram porque simplesmente entrei na curva errada. Lembro de ter feito tanta coisa de que me arrependo que há dias que eu abro a porta de casa me perguntando se quero mesmo sair à rua e correr o risco de topar lá fora com uma das pessoas que testemunharam minhas vergonhas.
Eu tenho um álbum cheio de fotografias faltando. De cada uma delas resta uma sombra no encardido da página envelhecida. Fotografias que me roubaram, outras que eu presenteei, muitas que eu perdi. Cada uma delas é a lembrança de alguém que não existe mais, que saiu de perto de mim, que eu expulsei, que eu nunca mais vi. Cada ano que passa, dos anos passados restam menos imagens. Esse meu álbum vazio tem uma melancolia indescrita, demarcada, fria. Todas essas pessoas que às vezes passam em bolsos alheios, que vivem em lugares aonde não vou nunca mais.
Quando me dou conta de tudo isso, percebo o quanto sou aleatório, precário. Ainda que eu tenha seguido sempre uma estrada estreita, de barrancos altos, encontrei nela muitos cruzamentos, e nenhum retorno. Eu não sei rir muito bem, talvez tenha sabido um dia. Hoje em dia tudo me parece tão forçado, tão difícil. Rio antes de terminar a piada, de pressa. Rio rápido demais, não acompanho o fio da graça. Não tenho mais parâmetros disso. Meu riso se perdeu com algumas das fotografias que não tenho mais, foi oprimido por algum dos erros que me envergonharam, algo assim.
Atingi um grau de solidão. Vou sempre isolado dentro de um vazio, como um amendoim em sua casca. Hoje me sinto o capitão de um barco solitário, que persegue o fim de um rio calmo. A fatalidade da foz já me enerva, porque o rio está largo e fundo, fácil de afogar-me. Ninguém nadará até aqui, não há ancoradouro e não adianta remar na correnteza. As pessoas na margem ouvem o meu riso na neblina que me cerca e acham que eu sou um fantasma.
Eu tenho um armário cheio de vidas que não vivi, tenho um álbum cheio de fotografias faltando e tenho um porão repleto dos erros que cometi. Poderia ter sido diferente de quem sou, melhor ou pior. Lembro todas essas pessoas que partiram, muitas para lugares aonde não vou mais. Há dias em que me pergunto se quero mesmo sair de casa. Quando me dou conta de tudo isso, percebo o quanto sou aleatório, ainda que tenha seguido sempre uma estrada estreita e de barrancos altos. A fatalidade da foz já me enerva, porque o rio está largo e fundo.