Entre os vários gêneros literários que me atraem existem três que são particularmente de minha preferência: ficção científica, ficção histórica e realismo fantástico. São, porém, três gêneros que eu pouco ouso praticar, devido às inúmeras dificuldades envolvidas em cada um deles.
Na ficção científica existe o problema da imaginação: é necessário ser um bom futurólogo, para que sua obra de hoje não se torne um futuro do pretérito dentro de poucos anos, ou logo após a publicação. E futurologia se faz com informação, não com bola de cristal. A maioria dos autores brasileiros de “ficção científica” se evade da responsabilidade de conciliar criatividade e ciência tomando o atalho dos gêneros híbridos, como a ficção “steampunk”, que intencionalmente localiza em um “futuro do pretérito” a sua ação, preferindo imaginar como o passado poderia ter sido do que especular sobre como o futuro poderá vir a ser. Uma ficção científica que funciona como fábula ou conto de fadas, ambientado a ação há muito tempo atrás, em uma galáxia muito, muito distante também funciona como boa saída para a necessidade de coesão e coerência.
Não há nada de errado em escrever ficção desta forma, embora eu, do alto de minha arbitrária opinião, considere que esses gêneros não são ficção científica “de verdade”. Inclusive foram muitas as obras geniais escritas de forma tangente à ficção científica. O que está errado é, ao meu ver, que haja no Brasil tão poucos autores tentando fazer ficção científica no duro.
Não se pode exigir de um país que ele tenha muitos Asimovs ou Clarkes, especialmente um país que tem esse sistema educacional digno de Praga do Egito, mas seria magnífico ver mais gente tentando, em vez de cair no terreno fácil da fanfic de Guerra nas Estrelas.
O realismo fantástico, por sua vez, é um tema extremamente incompreendido pelos Brasileiros, que o consideram algo fabulístico ou até alienado, quando ele possui uma carga de tragédia e de denúncia muito forte. Além do mais, por ser um gênero “supostamente” oriundo da América hispânica, enfrenta certa rejeição entre nós, que ainda os vemos como “outros”. Digo “supostamente” porque não se pode chamar de outra coisa que não “realismo fantástico” as obras de autores como Franz Kafka, Mikhail Bulgakov e Karel Capek — e eles escreveram na primeira metade do século XX, época na qual García Márquez, o definidor do tema, ainda nem era adulto.
Por fim, a ficção histórica merece um tratamento especialíssimo, pois, ao contrário de todos os demais assuntos literários, é um dos poucos definidos pelo seu rigor: eu não posso simplesmente ambientar uma obra no Egito sem respeitar o que se sabe daquele país, ou estaria fazendo uma fantasia exótica que nunca passará de pseudo-histórica. Para merecer o rótulo de “histórica” a ficção precisa ser coerente com o conhecimento existente, precisa fazer o leitor gritar “ahá” quando ele estiver lendo um compêndio histórico e lembrar do livro.
Boa ficção histórica é mais rara que água no deserto: a maioria dos autores apenas rotula que sua obra se passa na Espanha Renascentista, nos Estados Unidos do século XIX ou no Japão Medieval e recorre a algumas tinturas ralas retiradas de enciclopédias (as “cartilhas de alfabetização” em conhecimentos gerais). Na prática, produzem histórias ambientadas em uma espécie de “Terra de Marlboro”, que só existe nas idealizações de quem a concebe. O resultado são duelos de espada segundo rituais que só existiriam na França pós-revolucionária, caubóis bebendo uísque e atirando com Colts e gueixas que vivem só para apaixonar-se pelo primeiro samurai. A ação de tais histórias se baseia quase unicamente naquilo que está no imaginário coletivo, e não no realmente acontecido. De forma que o leitor de tais obras, se um dia estudar a história de tais lugares, se sentirá decepcionado por descobrir que não havia duelos ritualizados na Espanha do Século de Ouro, que a arma mais usada no faroeste era a espingarda e que as gueixas não eram mais particularmente “sofridas” e nem “apaixonadas” que a média das mulheres japonesas.
Não estou dizendo estas coisas para denegrir estes gêneros. Somente uma falha na interpretação do texto levará alguém a pensar isso. Muito, muito pelo contrário. São três gêneros que respeito muitíssimo exatamente porque vejo neles um grau de dificuldade que considero quase invencível. Tenho a certeza quase absoluta de que jamais conseguirei produzir, em qualquer destes três gêneros, uma obra de padrão internacional. Mas morrerei tentando, claro. Eu miro na Lua, porque é melhor falhar em algo grande do que em algo pequeno— Para você ter uma ideia, eu tenho exatamente uma obra parada em cada um desses gêneros, e não vejo como desatar.
A obra de ficção científica é um romance chamado “Epifania”, que possui entre seus temas inteligência artificial, colonização planetária, equação do apocalipse, psicologia de massas etc. Escrevi um primeiro capítulo e postei aqui, mas estou há meses tentando desenvolver a narrativa e não consigo, porque antevejo o tamanho da pesquisa que terei que fazer sobre todos esses temas. Parte da pesquisa eu até já fiz, consultando um astrônomo e um químico a respeito de localização estelas e natureza da composição do planeta, mas são tantas coisas a considerar ! Meia-vida de radiação, probabilidades de colapso das civilizações (Equação de Drake), conflitos e traumas psicológicos causados pelo confinamento, efeitos da baixa gravidade sobre o corpo humano etc. Me dá até arrependimento de ter começado.
Dentro do terreno do realismo fantástico eu escrevi um conto chamado “Fausto de Souza” e outro chamado “O Flautista” que, obviamente, não está pronto, mas cujas arestas eu não consigo terminar de aparar. O primeiro desviou da intenção e praticamente virou um texto humorístico. O segundo me parece irremediavelmente empoçado.
Na ficção histórica, porém, o caso ainda é mais grave. Eu tenho um conto longo, com mais de 30 mil caracteres, todo pronto, mas não ouso publicar porque, na afã da inspiração, eu o escrevi diretamente a partir de minha memória dos tempos de faculdade (sou licenciado em História). Depois que terminei, descobri vários buracos no assunto que precisam ser sanados para que ele tenha credibilidade. Eu pretendo ambientar o conto na Zona da Mata Mineira no século XIX. Não me interessa qualquer outra solução, pois tudo se torna sem sentido se isso for mudado. Inclusive as conexões que este conto tem e terá com outros contos meus. Mas eu fico retido porque não consigo saber exatamente que tipo de força policial haveria no estado de Minas Gerais no século XIX, e se tal força atuaria da forma como a descrevi. Suponho que não, mas isso simplesmente invalidaria todo o romance. Veja que maçada!
Esses três gêneros têm em comum, portanto, a exigência: são para quem não tem medo de estudar e aprecia uma narrativa rigorosa. Estas obras são “biscoito fino” que só agrada a um fino paladar. Não pensemos que venderão centenas de milhares de exemplares num passe de mágica.
Mesmo assim, não existe, para mim, maior prova de valor literário do que fazer o que se faz nesses três gêneros: combinar a liberdade do criador, a célebre “licença poética”, com a fidelidade à realidade, produzindo obras que ficam entre a ficção e a historiografia. Admiro imensamente quem é bem sucedido nesta tarefa, e almejo muito conseguir atingir a maturidade nesses assuntos.
Ótimo texto!
Escrevo sobre ficção científica e romances históricos, sei bem o que vc passa na hora da pesquisa. Mas não tenho medo, meto a cara e vou em frente.
A de FC estou escrevendo desde 1999, já são dez obras relacionadas e estou ficando doida na hora da revisão… rs Como sei que lançar por editoras é algo praticamente impossível, assim que terminar, vou transformá-los em e-books e colocá-lo a venda no meu blog. Assim, sei a quem culpar se a coisa não vender.
Realmente, estes gêneros são para quem gosta do assunto, não tem medo de ser arrojado e que gosta do que faz. Por isso digo, não pare, continue, revise e se delicie nas palavras, mas não pare.
Abraço!