Reza uma lenda urbana que um certo cantor gaúcho certa vez entrou em um boteco e encontrou um palhaço comendo uma coxinha com Coca-Cola. Um palhaço desses que animam festa infantil e vendem balões na praça. Dizem que o famoso cantor, bêbado ou drogado (sabe-se lá), implicou com palhaço dizendo-lhe: “Ei, palhaço, faz uma palhaçada para a gente aí”. O palhaço, talvez já de paciência esgotada por aguentar crianças, ou por não ser a primeira vez que lhe provocavam, deixou a coxinha sobre o balcão e sentou a mão na cara do cantor, que saiu rodopiando e caiu de cara na calçada, para gargalhadas gerais dos frequentadores do lugar, e arrematou: “Sou palhaço para quem me paga.”
Esta história — verdadeira, segundo juram os alfarrábios da música brasileira — encerra uma importante moral, aliás, duas importantes morais. A primeira é que as pessoas não costumam ser em sua vida pessoal a mesma coisa que em sua vida profissional. Aquele palhaço era um anjo de paciência com as crianças porque ganhava a vida suportando-as, mas não tinha nenhuma obrigação de ser paciente com bêbados, mesmo que famosos ou pseudo-famosos. A segunda lição é que é uma ofensa pedir ao profissional que faça de graça para você algo que ele faz por dinheiro. O palhaço ganhava a vida fazendo palhaçadas, mas cobrava por isso. Fazer uma palhaçada para o cantor ver seria ridículo.
Acredito que todo profssional tem a sua dignidade, mesmo aqueles a que as pessoas costumam dar valor — como palhaços e escritores. Seja lá o que for que o sujeito faça para ganhar a vida, se não é crime e não faz mal a ninguém, é um meio honrado de ganhar a vida. Merece respeito. Não é porque você pinta a cara com uma maquiagem engraçada que você passa a ser uma pessoa inferior. E nem porque sua arte é ingênua e aparentemente fácil (digo aparentemente, porque não é realmente fácil fazer uma criança feliz).
Mas em geral as pessoas tendem a achar que as pessoas que fazem arte não precisam ou não estão interessadas em dinheiro. Pedem uma “palhinha” para o amigo músico, acham feio o amigo escritor querer vender-lhes o seu livro em vez de dar de presente, querem que o humorista conte suas piadas na mesa do bar. Dizem que o falecido comediante Bussunda certa vez protagonizou um caso desses, ainda no começo da carreira, quando a sua fama de mal-humorado ainda era pouco conhecida. Um parente de um amigo a quem foi apresentado pediu-lhe para ver se ele era mesmo engraçado, pediu-lhe que contasse uma piada. Bussunda se prontificou a contar a piada, mas antes pediu licença ao novo conhecido porque precisava de um favor. Sabendo que o sujeito era médico, começou a descrever-lhe uma série de sintomas e a pedir-lhe opiniões sobre medicamentos. O homem o interrompeu dizendo que não poderia dar uma resposta ali no palco e o convidou para ir ao seu consultório. Bussunda, então, retrucou que não poderia fazê-lo rir ali e o convidou para ir assistir ao espetáculo que estava fazendo (“A Noite dos Leopoldos”) ou comprar um dos livros que fizera ou então assistir ao programa na televisão (na época acho que ainda era o “Dóris Para Maiores”).
Essas histórias me chegaram, todas, por e-mail. Enviadas por conhecidos, alguns escritores outros não, quando chegou-lhes ao conhecimento que eu estou com meu primeiro livro publicado. Alguns ainda me criticaram por publicar quase tudo que escrevo neste blog.
Se você vendesse salgadinho na rua, não sairia dando quibe de presente. Mas você escreve ficção, e fica distribuindo de graça no blog. Você não deveria dar de graça aquilo que você tem para oferecer.
Tudo isso me faz pensar, especialmente considerando a ameaça que a internet realmente representa para o futuro da arte. Um músico pode dar de graça as suas gravações e tentar viver de suas apresentações ao vivo. Mas se eu dou de graça as minhas “escreveções”, onde vou me apresentar ao vivo como escritor para ganhar a vida? Aliás, o que seria a apresentação ao vivo de um escritor, seria eu me sentar na praça com um laptop e escrever as histórias das pessoas que passarem? Alguém vai parar para ver? Alguém vai pagar?
Acho que há dois pontos no seu texto. Um é quanto à “palinha”, ou o quibe de graça. Acho que é válido você dar uma amostra do seu produto, para conquistar o freguês e convencê-lo a comprar seu produto. Mas, de fato, se você publica tudo no blog e depois publica um livro com o mesmo conteúdo, quem vai comprar o que pode ter de graça?
É por isso que, no meu blog, só tem o primeiro capítulo dos meus livros (não entregar tudo); e o que eu publico regularmente (“palinha”) são reflexões e curiosidades sobre o fazer literário.
Me lembre de jamais pedir autógrafo a um calígrafo.
Boa reflexão.
🙂
E’ verdade, Zè… canso de dizer isso. Ninguèm vai pedir um diagnòstico a um ginecologista em uma festa por exemplo… e tenho medo de blogs.. muito medo… Parabèns pelo texto muito bom!