Discutir o tema “livro eletrônico” é clamar por encrenca. Como toda “buzzword” da era da internet, “e-book” é um conceito que adquiriu uma aura de dogma e qualquer tentativa de dissensão resulta em anátema. Aliás, qualquer pessoa que se preocupe com “firulas” como “privacidade” e “direitos” acaba sendo tachada de coisas horríveis, tal como fazem com o Richard Stallman — um sujeito brilhante, embora pouco hábil para cativar as pessoas pela simpatia, ingenuamente imaginando que as pessoas são racionais e compreendem argumentos lógicos. Richard Stallman é uma verdadeira geni da era da Internet, tudo porque há trinta anos ele se insurge contra praticamente tudo quanto é novidade alardeada pelo “mercado”. Até hoje ele esteve certo todas as vezes. E eu, como não me incomodo em perder mais dois ou três de meus leitores, ouso aqui entrar em mais um terreno pantanoso.
O principal texto de Stallman que interessa ao tema se chama “The Right to Read” (“O Direito de Ler”). Trata-se de um conto de ficção científica no qual um jovem apaixonado por uma colega de classe pobre enfrenta um dilema existencial: ajudá-la a estudar para a prova, emprestando-lhe seus livros eletrônicos (e assim cometendo um crime), ou negar-se a isso, cumprir a lei e perder a oportunidade de cativar a garota de seus sonhos. Sob a capa deste dilema tão comezinho está a questão do “Gerenciamento de Direitos Digitais” (ou “Digital Rights Management — DRM”, como preferem os anglófilos): ao impedir a cópia de um arquivo digital, não fica apenas impedida a difusão sem pagamento das obras publicadas, mas fica também impossibilitada uma tradição de séculos: o empréstimo e/ou doação de livros. Na escola do futuro descrita no conto de Stallman, os alunos precisam pagar por todos os livros pedidos no currículo. Não existe para eles a opção de ir à biblioteca da escola e consultá-los lá, gratuitamente.
A leitura desta história, em 2002, deixou uma impressão forte em mim. Primeiro porque sou fã de ficção científica desde meus tempos de moleque, quando assisti, cheio de lágrimas nos olhos, “Contatos Imediatos do Terceiro Grau”. Segundo porque, sendo eu um usuário de Linux, as ideias de Stallman estão muito mais próximas de mim do que de um usuário comum de Windows: Linux não é só um sistema operacional, mas uma ideologia sobre como deveria ser o mundo. A ideologia foi dada justamente por Stallman, em 1984, quando abandonou o emprego no MIT para criar um sistema operacional inteiramente livre, dando origem, assim, à FSF (“Free Software Foundation” — “Fundação em prol do Software Livre”). Muita água rolou de lá para cá sob a ponte.
Uma ideia é algo muito poderoso. Depois que você tem contato com ela, depois que você a entende e assimila, será preciso muito mais do que um argumento racional para retirá-la de seu castelo no fundo de sua alma. Porque ideias não plantam apenas conceitos, mas desconfianças. Stallman plantou em mim a salutar desconfiança de que as poucas e poderosas empresas que dominam o mercado mundial de computadores e de programas para computadores não estão interessadas em construir uma democracia mais bonita, um mundo de fartura e alegria, etc. Empresas estão interessadas em dinheiro, e sem a focinheira do Estado em suas bocas, elas comerão tudo. Não foi um comunista barbudo que disse que “não existe almoço grátis”, mas um expoente do pensamento liberal, Milton Friedman. Stallman é barbudo e suas ideias muitas vezes tangenciam o comunismo, mas ele concorda com Friedman: tudo que existe de graça relacionado a computadores está interessado em conhecer e controlar você. Com esse conhecimento e esse controle é que as empresas ganham rios de dinheiro.
O mundo já foi um lugar mais simples para os escritores. A chance de ser publicado era ínfima, claro, mas o mundo era mais livre, pois cada um era dono do próprio caderno e da própria máquina de escrever. Não era preciso pagar aluguel pelo uso da estante, nem temer que um texto pela metade evaporasse sem remédio por causa da falha de um programa mal escrito. E quando o autor chegava a ter seu livro publicado, tinha a garantia de que ele existiria fisicamente por décadas a frente, que não desapareceria se simplesmente a editora se arrependesse de tê-lo publicado. Para quem chegava a obter o sucesso, especialmente nos países mais estáveis, como os Estados Unidos, décadas de direitos autorais poderiam assegurar a profissionalização. Era um mundo excludente, que só funcionava para poucos, mas ninguém acha a loteria injusta só porque os vencedores são raros.
Acontece que este mundo, bom ou mau, está caquético, prestes a perder os últimos dentes. Dentro de poucos anos será inimaginável esperar ter uma carreira como a de um Stephen King ou mesmo a de um Graham Greene. Isto ocorre porque o “livro eletrônico” (ou “e-book”, como preferem os anglófilos) possui um caráter totalmente diferente do livro tradicional, tal como a fotografia é outra coisa, quando comparada com a pintura a óleo sobre tela, que era a principal expressão artística mundial antes do século XX. Vivemos agora a transição entre os dois mundos, não temos ainda como prever como será o futuro “fotográfico” da literatura, mas já sabemos que não será como o passado, e que isso não será necessariamente bom.
Na próxima postagem continuarei destrinchando este tema, abordando a questão do “livro eletrônico” como um conceito repressivo, comparado com o tradicional.
Muito interessante seu texto, JG.
Fui até o link com o conto. Tanto o conto como os comentários a seguir são também bastante interessantes…
Excelente.
E muito interessante. A liberdade é assunto que deve fazer parte de nossas preocupações diárias, sempre.