Você provavelmente nunca ouviu falar de Charles Kembo. Acontece que ele se tornou hoje o pivô de uma das notícias literárias mais interessantes do ano, ao tornar-se o autor do livro “A Trindade dos Super-Garotos, Livro I: A Busca pela Água”. Aparentemente não há razão alguma para que o caso seja “interessante”, mas o caso merece atenção.
Antes de tudo, é preciso dizer que a obra citada é bem justamente o que parece: uma trilogia de ficção científica protagonizada por jovens que salvarão o mundo de uma catástrofe. Mais do mesmo, óbvio. Você já leu esta história tantas vezes que não precisa ler mais esta para saber quase em detalhes tudo que acontecerá. Eu não li, mas as poucas informações que pude obter sobre o livro (que não pretendo comprar, pois meu dinheiro não dá em árvore) me fazem supor que os jovens correspondem a todos os modelos prefabricados de personagens heroicos adolescentes que aparecem nos livros mais vendidos atualmente. Portanto, a menos que Charles Kembo seja um artista genial com as palavras, o livro dele é provavelmente ruim. Acontece que o título por ele escolhido para o primeiro volume de sua trilogia não sugere que ele seja.
Ademais, o canal através do qual esta obra chegou a ser publicada não é nem um pouco recomendável: trata-se da famigerada PublishAmerica (cujo link não incluo para não gerar receita para picaretas), famosa por ter aceitado um pastiche intitulado “Atlanta Nights”, criado por alguns autores filiados à Associação Americana de Autores de Ficção e Fantasia (SFWA), mais um programa de computador. O caso está arquivado aqui (em inglês, sorry). Mas incluo um resumo abaixo, para benefício dos que não sabem inglês (e também da preguiça peluda que em que às vezes certos leitores se metamorfoseiam em noites de lua, cheia ou não, em uma estranha licantropia). Se você já conhece o caso, preferiu ler o texto que está no link ou se simplesmente confia em minha palavra, de que a PublishAmerica deveria chamar-se PublishIt!, salte os parágrafos comentados a seguir.
Muitos autores filiados à SFWA (e também jovens autores não filiados, mas que buscavam conselho) reclamavam das práticas da PublishAmerica, uma editora de fachada que se fazia passar por “tradicional”, mas que apenas arrancava dinheiro dos ingênuos. Esse tipo de empresa é chamada nos EUA de “author mill” (moinho de autores).
As reclamações variavam desde a qualidade da revisão e do projeto gráfico até à falta de promoção, passando pelos altos preços cobrados dos autores (você que escreve deve ter encontrado algo parecido aqui no Brasil, não?). Diante da divulgação destas reclamações pela SFWA (em sua página Writers Beware, ou “Atenção Autores”), a PublishAmerica defendeu-se atacando, de forma arrasadora, não apenas os autores reclamantes, mas todos os autores de ficção científica e fantasia. Segundo a PublishAmerica, o insucesso dos autores não se devia à falhas da editora, mas à falta generalizada de qualidade das obras destes gêneros, que, por serem relativamente fáceis de escrever, atraem um grande número de incompetentes, que se escondem atrás da fantasia para não terem que fazer pesquisa e nem preocupar-se com a verossimilhança de suas histórias. Ainda segundo a editora, os altos preços cobrados eram destinados especificamente aos autores de tais gêneros, pois em relação a eles não havia a menor possibilidade de sucesso devido à péssima qualidade das obras, e o dinheiro assim obtido seria investido nas carreiras de outros autores, mais talentosos.
Diante destas acusações graves e arrasadoras (com as quais eu concordo em parte, mas não em relação a todo e qualquer autor de ficção científica e fantasia), a SFWA se propôs a uma vingança: humilhar a PA provando que eles publicariam qualquer coisa desde que o autor estivesse disposto a pagar, e publicariam não apenas sem revisar, mas até sem ler.
Os autores se propuseram a escrever um livro que não apenas fosse terrivelmente ruim (mal escrito e incoerente), mas também cheio de erros óbvios: dois capítulos com a mesma numeração, um número de capítulo faltando, um capítulo com numeração menor que o anterior, personagens que não apenas morrem e depois reaparecem, mas até mesmo mudam de sexo de uma página para outra. Um dos capítulos foi produzido através de um programa de computador chamado Bonsai Text Generator, que produz frases gramaticalmente corretas, mas absolutamente sem sentido, a partir de um outro texto longo dado como amostra.
A obra assim produzida foi submetida à apreciação da PublishAmerica e não apenas foi aceita (com as congratulações e elogios de praxe, acompanhadas da “perspectiva de tornar-se um sucesso”) como foi supostamente “revisada” e “formatada” para impressão. Tendo coletado as provas (através de comunicações via e-mail) os autores foram aconselhados por um advogado a não assinar o contrato (pois incorreriam em falsidade ideológica) que permitiria a publicação (pois causariam prejuízo intencional). Preferiram divulgar amplamente o caso, achando que haviam obtido sua vingança.
Infelizmente, o mundo não é justo. Nasce um idiota a cada dia, e o fluxo contínuo de idiotas mantém a PublishAmerica funcionando e ganhando dinheiro até hoje. Talvez a PublishAmerica tivesse razão.
O que torna o caso de Charles Kembo literariamente interessante não são os aspectos intrínsecos de sua obra (que é provavelmente lixo), mas as circunstâncias que envolvem o autor. Se você já ouviu falar de “literatura marginal”, deveria engolir em seco, pois trata-se de muito mais do que isso: Charles Kembo é um assassino condenado à prisão perpétua por vários crimes ocorridos entre 2002 e 2005, um perfeito exemplar da fauna norte-americana de serial killers.
Por chocante que esta revelação possa parecer, ela traz à baila um debate importante para a literatura: até que ponto devemos separar a vida e a obra de um indivíduo. Recentemente, no Brasil, houve um sério debate sobre a proibição (ou pelo menos a restrição da divulgação) da obra infantil de Monteiro Lobato porque o autor era manifestamente racista. Charles Kembo é comprovadamente um assassino cruel e calculista, sem nenhum remorso. Isto, claro, é muito pior do que ser meramente racista. Ainda mais: ele está vivo, pronto para causar mais mortes se sair da cadeia, enquanto Monteiro Lobato, do túmulo, não pode produzir mais nenhuma frase racista além das que cometeu em vida. Quando do debate sobre a obra do criador do Sítio do Picapau Amarelo, defendi a tese de que as obras deviam ser analisadas em seu contexto, e não à luz dos defeitos do homem que as produziu, pois se formos policiar o caráter dos indivíduos para julgar o que fazem, então praticamente não haverá obra neste mundo que possa ser aceita, pois todos são, de alguma forma, moralmente reprováveis, ainda que apenas pelo bolinho que roubaram da vendedora ambulante quando crianças. Mas será que eu tenho a coragem de pregar o mesmo no caso de um assassino que se torna escritor?
No caso em questão eu não preciso me preocupar, porque o livro escrito pelo serial killer é uma porcaria óbvia. Ou melhor, pensando bem, preciso preocupar-me sim, porque a história recente nos tem mostrado que porcarias óbvias estão se transformando em livros muito vendidos e influentes. Não cito nomes porque não estou a fim de levar pedradas hoje, mas provavelmente você que me lê deve ter na cabeceira pelo menos uma obra que, se algum dia acumular mais leituras, se envergonhará de admitir que leu.
Então, se a falta de qualidade da obra não nos permite afastar a possibilidade de que ela faça sucesso (da mesma forma que a picaretice da PublishAmerica não a impede de continuar tendo um grande número de clientes até hoje), precisamos analisar o caso com atenção, e três perguntas se configuram:
1 – É aceitável que um criminoso tente tornar-se um artista? Vivemos a ilusão de que a cadeia é uma instituição que se propõe a regenerar o criminoso. Ao mesmo tempo convivemos com a existência no mundo de penas capitais e de prisão perpétua, que negam a possibilidade de regeneração de alguns criminosos ou, alternativamente, negam a aceitabilidade de que, tendo cometido certos crimes especialmente graves, alguém tenha o direito de querer regenerar-se. Existem até estudos psiquiátricos fundamentando que certos indivíduos, os tais “sociopatas” seriam criminosos incuráveis. Temos então duas posições possíveis, antagônicas.
A primeira nos diz que o indivíduo que comete um crime, qualquer crime, tem o direito de regenerar-se e eventualmente retornar ao convívio da sociedade, tendo cumprido sua pena. Se aceitarmos esta tese como correta, então não podemos negar a Charles Kembo o direito de aspirar a ser um escritor. Afinal, escrever é um tipo de trabalho (ainda que muita gente ache que não), inclusive um que tem grande potencial para utilização em tratamento psicoterápico ou psiquiátrico, devido à possibilidade que oferece de se ter acesso aos processos mentais do paciente. Permitir que um criminoso escreva é permitir que ele produz extenso material que pode ser utilizado para analisar seu comportamento e seus processos mentais, o que pode ser útil para definir se ele pode ser ressocializado.
A segunda posição nos diz que existem certos crimes para os quais não há e nem pode haver perdão ou regeneração, apenas a vingança. Você comete o tal crime e a sociedade se vinga de você, aprisionando-o pelo resto da vida em um cubículo, com acesso controlado a todas as coisas que definem a vida livre de um cidadão (ar puro, sol, liberdade de expressão, direito de ir e vir etc.), ou então matando-o de forma mais (enforcamento, apedrejamento, garroteamento, empalamento, linchamento, afogamento, sufocamento) ou menos (envenenamento, guilhotinamento, fuzilamento) dolorosa. Nesse caso a pretensão literária de um condenado à pena perpétua é uma violação de sua reclusão, e deve ser impedida.
2 – Quais os riscos envolvidos em ler uma obra produzida por um criminoso? Esta pergunta embute o conceito de que as pessoas são influenciáveis por aquilo que leem, o que eu acho correto, e que os autores conseguem fazer com que suas obras influenciem os leitores sempre em uma direção deliberada durante o ato da escrita, o que já acho altamente discutível. O grande problema com esta pergunta é que ela ignora um fato: não existe fundamentalmente nada diferente na mentalidade de um delinquente que não tenha pelo menos uma vez passado pela mente de alguém que nunca delinquiu.
A diferença é que algumas pessoas resolvem não fazer certa coisa, enquanto outras resolvem fazer. Podem existir razões que condicionam a escolha para uma direção ou para outra, mas existe também a sublimação: a possibilidade de converter um impulso destrutivo em uma ação não destrutiva. Um piromaníaco pode tornar-se um especialista em efeitos especiais, a fim de saciar sua vontade de ver as coisas queimando através da encenação de incêndios em cenários. E uma pessoa com tendências sádicas pode contentar-se em escrever livros profundamente violentos, detalhando torturas e mutilações espantosas. Nesse sentido, pelo pouco que li dos dois, existe mais violência na obra de um autor incensado, como Chuck Palahniuk, do que na tímida obra infanto-juvenil de Charles Kembo. Então é óbvio que o perigo de uma obra escrita por um assassino em série não está no seu conteúdo, visto que obras ainda mais violentas podem ser produzidas por pessoas de bem, que nunca fizeram mal a uma mosca. Se chegamos a esse ponto do raciocínio, fica a dúvida: qual seria, então a natureza do perigo envolvido na leitura de uma tal obra?
3 – Quais as motivações pelas quais Charles Kembo escreveu sua obra? Esta terceira pergunta é a consequência lógica da dúvida mencionada no item anterior. Se nos parece óbvio que o livro escrito por um criminoso violento e impiedoso não possui elementos tais, evidentemente isso se deve às motivações pelas quais a obra foi escrita. Quando Charles Kembo estava matando pessoas (sempre brancas, adultas e de classe média para baixo) ele tinha um determinado recado para a sociedade. Agora que ele está escrevendo, pode ser que ele tenha outro recado, relacionado ou não. Se existe um recado subjacente, então existe um perigo também: poderia o autor estar querendo passar algum tipo de mensagem codificada para alguém fora da cadeia? Ou está apenas querendo atrair simpatia para sua causa? Não custa lembrar que o famoso “Maníaco do Parque” pôde escolher uma esposa entre centenas de candidatas, jovens bonitas e estudadas — e não precisou escrever nada.
Penso que existem no mundo muitos livros mais perigosos do que qualquer obra escrita por um assassino confesso e condenado, como Charles Kembo (por quem, admito, desenvolvi certa simpatia ao escrever estes comentários). O autor dos “Protocolos dos Sábios de Sião” foi um funcionário público respeitável, que provavelmente morreu sem saber das consequências nefastas de seu patético esforço para convencer o povo russo de que todos os males do país eram resultado de um complô secreto dos judeus. É espantoso que tal livro tenha ensejado uma guerra mundial e justificado o massacre de dezenas de milhões de judeus ao longo do século XX (não estou me limitando aos judeus mortos pela Alemanha nazista, mas incluindo os linchados ou executados pela URSS, pela Turquia, pelas nações árabes após a partilha da Palestina e até pelos EUA). Dificilmente a obra humilde de Charles Kembo provocará algo de tal gravidade — e eu duvido muito que seja esta a sua intenção, a menos que ele tenha uma personalidade de vilão de desenho animado.
Como você já deve ter percebido, as respostas para estas três perguntas são difíceis. Para a primeira é possível simplesmente deixar que cada leitor escolha uma, de acordo com suas opiniões. Mas para as duas outras não há como achar explicação, somente poderíamos ter resposta se pudéssemos ler a mente do autor.
O resultado desta falta de solução é o espanto com que contemplamos o esforço literário de um condenado por tantas mortes. Cabe perguntar que tipo de gente se interessaria em ler tal livro? Que tipo de gente lê livros apelativos, pornográficos, violentos? Que tipo de gente desenvolve simpatia por criminosos (a ponto até de querer casar com eles)? Que mundo é esse, meu Deus?
Eu só sei de uma coisa: continuo mantendo a minha opinião. A obra é uma coisa separada do artista. Não me importa se quem a produziu era o maior dos depravados, desde que a obra produzida seja boa. Eu até acho aceitável rejeitar obras que tenham sido produzidas especificamente através do crime (uma obra escrita, por exemplo, com o sangue das vítimas do assassino, ou o seu diário “de campo” seriam totalmente inaceitáveis), mas se a obra não está diretamente conectada, na posição de “resultado” com o ato do criminoso, que mal há nela? Muitos autores foram, em algum momento de suas vidas, condenados (alguns até a morte). Tal condenação tem efeito retroativo para desqualificar as suas obras? Ou somente as obras produzidas depois dos crimes são “ruins”. Uma pessoa que comete crimes (especialmente crimes em série) não tivera sempre dentro de si o impulso para o mal?
Se não quisermos ter que responder a estas questões bizantinas, teremos que nos contentar com a solução pela simplicidade: julgue a obra por si, de forma que o autor possa até ser elevado ou rebaixado por ela, mas não deixemos que os erros ou acertos do autor interfiram nos erros ou acertos de sua obra. Pois, não custa lembrar, aquilo que é válido para o mal igualmente vale para o bem: devemos ler avidamente os livros péssimos escritos por pessoas de ótimo caráter?