Este texto é um trecho avulso do romance «Amores Mortos», que está em fase final de revisão. A história se passa entre 1984 e 2000 e neste trecho em especial está situada em 1994, pouco após o Plano Real. Oswaldo (variadamente referido pelos diversos personagens do livro como Vado, Vadico, Vadinho ou Valdo) é um sujeito que migra de emprego em emprego, por diversas cidades da Zona da Mata Mineira, geralmente trabalhando como representante comercial, vendedor de seguros ou funções assemelhadas. A história acompanha, de forma não linear, a sua vida amorosa, que incluiu mulheres de várias cores, idades e temperamentos, e a sua busca pela paz interior, através de duas ou três religiões diferentes, inclusive atuando como pastor de uma pequena igreja em certa época e tendo um «papo sério» com Jesus no momento mais tenso de sua vida.
Ele parou o carro à sombra de uma árvore, como um espião faria, e abaixou até a metade o vidro. Passou os dedos pelos cabelos uma última vez, para ver se não havia nenhum desleixo excessivo, e olhou pela greta em direção à casa número 156. Tirou do bolso o pedaço de papel onde anotara o endereço e conferiu se não havia distraidamente invertido os números em sua lembrança e respirou fundo. A casa devia ser aquela.
A certeza acelerou o coração, fez amargar a boca, causou aquele aperto por dentro que acontece nos momentos de grandes escolhas. Ainda poderia simplesmente ligar o carro e ir embora, depois ligar de volta dizendo que… sei lá, qualquer coisa. Porém, se o fizesse, levaria meses ou anos ou vidas martirizando-se pela falta de ousadia. Decidiu que levaria a coisa toda até o fim.
Tudo começara semanas antes, quando começara a conversar por telefone com Marlene, que trabalhava no escritório de alguma das muitas lojas a que vendia. Gostara da voz, quisera conhecer o rosto, encontrara-o dentro de um envelope, desejara o corpo, deixara o emprego, mas levara o número e chegava então à casa onde ela o esperava. Marlene, auxiliar de escritório em alguma loja pequena, de uma cidade razoavelmente grande para oferecer anonimato, bastante perto para possibilitar aquela aventura.
Lamentou que os telefones celulares ainda fosssem tão caros, ou poderia ter um no porta-luvas para discretamente chamar-lhe e perguntar alguma coisa antes de descer. Ouvir a voz dela o ajudaria a ter mais coragem, ajudaria a borrar um pouco a imagem de Cândida de sua memória.
Por fim desceu, mesmo sem coragem e com as pernas bambas. Atravessou a rua depressa, com as costas queimando como se milhares de olhares mapeassem cada passo. Tocou a campainha e refugiou-se na sombra da soleira esperando que nem todas as pessoas daquele bairro, daquela cidade, do estado, do país, do mundo, do universo, tivessem visto, tivessem notado, tivessem anotado sua presença.
Ouviu passos, pés arrastados no chão. Calcanhar de chinelo batendo. Passos de velha, ou passos também tremendo. A porta se abriu e lá estava ela, a mesma Marlene da foto, ou quase ela. Os cabelos eram mais curtos, o rosto mais estreito, um cheiro que a mulher fotografada não tinha. Marlene sorriu-lhe dentes bonitos, sempre o grande medo que tinha nos primeiros encontros. E começou a destrancar os múltiplos cadeados que protegiam a entrada.
— Tanta tranca — perguntou-lhe — é seguro deixar meu carro na rua aqui nesse bairro?
— Provavelmente — ela disse com uma voz que mal lembrava a do telefone — eu é que sou meio desconfiada.
Aberto o portão, pisou pela primeira vez a casa dela. Piso frio, paredes manchadas pelo uso, um cheiro suave de lavanda, os móveis simples, sofá coberto por uma capa de tecido liso.
— Aceita um copo de água?
— Obrigado, claro, é… foi uma viagem longa.
Ela lhe indicou que se sentasse no sofá, o que ele fez com cuidado, escorregando como se aquele assento o rejeitasse. Ela veio com o copo de água e sentou-se ao seu lado, sorrindo sem jeito às vezes. Tomou a iniciativa de pegar suas mãos, estavam frias, eram magras, eram duras, terminando em unhas pintadas de vermelho escuro, que combinava tão bem com o tom moreno da pele.
— Você veio mesmo.
— Duvidava que eu viesse?
— Claro. Por que você viria?
Fez-lhe uma carícia no rosto macio, apesar de macilento.
— Porque lhe disse que queria vir, é suficiente.
Ela sorriu outra vez, olhando obliquamente para algum canto da sala que ficava em outro universo:
— É suficiente.
E deixou-se escorregar até mais perto dele, até suas coxas se encostarem, separadas pelo brim das calças. Oswaldo se sentia com dezessete anos, como sempre se sentia quando surpreso na vida. E a vida vivia a surprender-lhe.
Olhou de novo para o rosto de Marlene: era bonita, mas a sua expressão sofrida o desarmava.
Então ouviu uma terceira voz na casa. Arrepiou-se, fez menção de se levantar. Ela o segurou pela mão e surrou-lhe ao ouvido:
— Calma, é só a minha prima que veio pegar uns discos emprestados. Ela já está indo embora.
Oswaldo não se sentiu seguro com esse consolo, mas não tinha a chave da porta. Sentia-se um coelho pego numa armadilha. Da sala não podia ir a nenhum lugar, nenhum esconderijo a não ser suas mãos. Ouvia os passos da prima que vinha de dentro da casa com passos parecidos com os de Marlene e pensava se não poderia, talvez, desaparecer como um vampiro na fumaça. Não pôde. Ela veio, deu boa noite e dirigiu-se à cozinha, seguida de Marlene, saindo pela outra porta, que foi trancada depois.
— Pronto, querido — disse ainda a meia voz — agora estamos sós.
E sentou-se ao seu lado, oferecendo a segurança que tinha fugido dele ao ouvir a voz da prima. Beijou-o com lábios firmes, olhos fechados e a alma faminta. Oswaldo, então, relaxou e abraçou. Não dirigira quase cem quilômetros desde Juiz de Fora para acovardar-se facilmente. Qualquer coisa que tivesse de dar errado, já daria sem que pudesse evitar.
— Espero que sua prima seja péssima fisionomista — comentou, cedendo pela última vez à covardia.
— Você se preocupa demais, ninguém o conhece aqui na cidade, como você mesmo me disse. Sua mulher nunca vai saber.
Beijou-a por sua vez. Apertou-a num abraço que revelou quão pouca carne havia sobre seus ossos. Então ela o chamou:
— Vem.
Levantou-se do sofá e a seguiu pela casa, rumo ao quarto. Pelo caminho conheceu onde habitava a voz doce que conhecera pelo telefone: um pequeno quarto com beliche, certamente o das crianças, um banheiro pequeno onde ele mal caberia, um quarto abarrotado de roupas e espalhadas pelo chão, contendo uma máquina de costura, um quarto maior, de janela única, com um roupeiro imenso, uma cama que parecia feita para alguém muito maior que Marlene, tão miudinha.
— Quer tirar a camisa para não amarrotar?
— Não precisa.
Tão logo ele o disse, Marlene tirou as mãos de seu colarinho e as levou à própria cintura, tratando de abaixar as calças rapidamente, revelando-se para ele sem cerimônia. Oswaldo se sentiu ridiculamente tímido e foi tratando de desabotoar a camisa, o que só terminou de fezer quando ela já havia pendurado toda a roupa no cabide junto à porta, e ainda não acabara de despir-se e ela já estava toda nua, de pé com seus cento e sessenta centímetros de ousadia. Quando finalmente se desvencilhou das meias, última cobertura de sua carne, abriu-lhe os braços, envergonhado, como um frango exposto no balcão do supermercado.
— Espero que você não se decepcione — comentou, pensando nas próprias pernas finas, na barriguinha de cerveja que começava a crescer e no tamanho do próprio pênis, que ela poderia julgar insuficiente, considerando toda a familiaridade que parecia ter com essas coisas.
— Nem um pouco — ela respondeu, lançando-se contra seu corpo.
O contato com uma carne estranha o fez estremecer. Mas não dirigira por quase cem quilômetros para falhar tão cedo. Abraçou-a quase como se ela fosse uma criança, apesar de seus trinta anos, e a pôs de pé sobre a cama, a uma altura que permitia que suas cabeças estivessem no mesmo nível.
— Então, vamos com calma, que ainda é cedo esta noite.
— Mas é tarde na vida — ela respondeu, filósofa.