Esta semana, enquanto discutia a opinião de Paul Rabbit sobre James Joyce, acabei, sei lá como, psicografando Clarice Lispector. Se eu fosse espírita, esse seria um dos momentos em que eu me orgulharia de minha mediunidade. Com a vantagem de que o texto que escrevi expressa, praticamente sem ressalvas o pensamento da autora — muito diferente das psicografias da moda, que em geral tem tanto a ver com a obra do autor espiritual quanto o proverbial ânus com as calças. Refiro-me a esta declaração de Clarice, numa de suas últimas entrevistas (agradecimento a Victor de Toledo Stuani por me repassar o link e a transcrição):
“Eu não sou uma profissional, eu só escrevo quando eu quero. Eu sou uma amadora e faço questão de continuar sendo amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever. Ou então com o outro, em relação ao outro. Agora eu faço questão de não ser uma profissional para manter minha liberdade.”
Clarice estava se referindo ao papel que todos esperam que o profissional exerça, não só em relação ao nicho literário em que foi inserido ao longo do tempo, mas também em relação às opiniões e imagem que precisa manter em relação ao sistema. As mesmas ideias de Clarice eu expressei assim:
E qual é exatamente a diferença entre um escritor amador e um profissa? Pode parecer pouca, mas pare e pense, pense muito bem. Um autor amador como eu é um franco atirador. Eu escrevo o que quero, como quero. Publico no blog porque quero, procuro editora na medida do possível e vou levando. Não preciso da literatura para nada além de satisfação pessoal (o que inclui o sonho de alguém algum dia notar que sou um gênio incompreendido e assinar comigo um contrato de milhões de dólares e me dar um título honoris causa da Sorbonne).
Por isso eu posso ousar. Se ficar ruim, é porque é um trabalho amador. Se ficar bom, tapinhas nas costas e nem um centavo de reconhecimento. Posso também criticar quem quiser, o quanto quiser (e bobo é quem se achar atingido por estas críticas a nível pessoal), sabendo que minhas críticas «valem quanto pesam», ou seja, serão julgadas pela sua propriedade e não pelo meu currículo inexistente.
Não é a mesma coisa para um profissional. Ao se dedicar a literatura como meio de vida, como fonte permanente da grana que compra seu feijão (ou seu caviar, dependendo de quanto venda) o autor profissional passa a depender de vendas regulares. Isso inclui definir seu estilo, encontrar seu nicho, cativar seu público, etc. Não espere que um autor de FC, por exemplo, dê uma veneta de escrever poesia erótica, ou que um autor regionalista se meta a fazer FC hard. Eles até podem querer isto, mas o mercado não quer, o público leitor preconceituoso não quer. Poucos leitores de Stephen King leriam contos românticos de sua autoria. Poucos fãs de FC levariam a sério uma space opera de autoria de Rachel de Queiroz.
O mesmo se aplica às críticas: quando um autor famoso e profissional fala sobre literatura as pessoas imaginam um mestre falando ex cathedra. Esse peso extra que as pessoas dão às opiniões dos profissionais faz com que elas não valham apenas o quanto pesam, valem o peso da vendagem, dos contratos, da publicidade, dos diplomas (mesmo honoris causa). Uma estupidez dita por um acadêmico é estudada na imprensa. Uma crítica muito apropriada feita por um amador como eu será sempre entendida como uma ousadia inadequada. «Quem é você, seu bosta, para falar mal do livro do fulano?»
Isso significa que o autor que deseja ser profissional precisa começar a censurar-se. Precisa começar a enquadrar-se. «Erotismo demais para uma obra juvenil», «ficção científica ambientada no interior de Minas Gerais é uma coisa ridícula», «ninguém está interessado em sua autobiografia». E o que já conseguiu precisa policiar-se: «não fale mal de fulano, porque ele é um editor importante», «faça algumas críticas elogiosas a sicrano e aumente suas chances de ir para a Academia»,«não diga uma coisa dessas, que isso pode ofender os responsáveis pelo sistema educacional».
Paul Lapine tem, entre suas raras qualidades, a liberdade de atacar o sistema. Porque o sistema foi lamber suas botas para dar um sopro de vida a uma Academia caquética, cada vez menos relevante culturalmente e inflada de autores de nulo valor (como José Sarney (devidamente posto em seu lugar por Millôr Fernandes), Ivo Pitanguy (enquanto literato é um ótimo médico), Merval Pereira, Marco Maciel, Nélson Pereira dos Santos (apesar de ser um bom cineasta) e Evaristo de Morais Filho. A verdade é que, por mais que eu deteste o trabalho de Pavel Krolik, ele é mais importante para a literatura do que todos esses juntos, e com um nariz de vantagem. Isso lhe dá a ousadia de falar mal de um dos santos do cânone ocidental, traduzido ao português por ninguém menos que Antônio Houaiss.
Minha opinião sobre Joyce, idêntica à de Paul Kaninchen, jaz amparada no sagrado direito de dizer bobagens que assiste aos amadores. Nós somos livres para não gostar do que não gostamos, não temos a obrigação de elogiar o que nos enfastia. Não somos maridos da grande literatura para suportá-la a todo custo.
Continuo, porém, mantendo a minha opinião sobre Ulysses, e não é um crítico britânico especialista em Joyce que vai me intimidar. Certamente há pessoas que gostam de Ulysses, tanto quanto há quem goste de vela quente e chicotada nas costas. De gustibus non eramus disputandum.
Há, porém, uma diferença fenomenal entre a opinião do Paolo Coniglio e a minha: eu desgosto de Joyce enquanto leitor, pois esse não é o tipo de literatura que me comprazo em ler (mas reconheço que Ulysses possui boas ideias, misturadas com outras horríveis e outras medíocres). Já o Pablo Conejo desgosta dele com a «otoridade» de um acadêmico, e um acadêmico precisa entender que nem todas as obras foram feitas para serem lidas pelo grande público, nem todo autor é assunto para se conversar na padaria. Se alguém me desancar pela minha opinião eu aguento o tranco sozinho e me refugio, acuado, na desculpa de que sou só um leitor, que também amadoristicamente escreve e palpita, mas o desancamento do Paul Konijn pelo crítico inglês salpica na Academia que o elegeu porque sugere que o mago é um simplório, um tosco, alguém que se iguala ao leitor de tabloides. Para vender ao leitor de tabloides, diga-se de passagem. Um mercenário.
Na qualidade de não acadêmico e de amador, eu ainda tenho tempo de dizer bobagens e não tenho assessoria que me impeça. O mesmo não se pode dizer de Paul Lapine, o prestidigitador. Que está começando a enfrentar, lá fora, o mesmo nível de rejeição nos meios literários de que já desfrutava por aqui. A ABL ainda se arrependerá de tê-lo eleito, mas não antes de arrepender-se de ter eleito o Merval.
URUBUSERVAÇÕES: Não é curioso que a ABL eleja com tanta facilidade políticos e personalidades de direita, mesmo com nulo valor literário (além dos citados, a Academia também já agraciou um general da Junta, o Aurélio Lira Tavares, mas ignorou solenemente o Carlos Drummond de Andrade, que, afinal, era comunista).
Utilizei pseudônimos poliglotas para o autor em questão por duas razões. Primeiro porque ele é mais reconhecido por vender no mundo inteiro do que pelo valor de suas obras. Segundo que ele disse as bobagens que disse para se promover, obviamente, e eu não quero ajudar a encher a sua bola, nem mesmo se isso encher a minha também. Na qualidade de amador, reservo-me o direito disso.
“mesmo honoris causa”
Quando é honoris causa é que as pessoas dão mais valor, pois o cara é tão bom que se forma sem estudar.
Paul Lapine -> pseudônimo poliglota.
Essa foi boa! rssssssss
Gostei do que a Clarice disse sobre ser amador. Quero ser assim, também. Tenho uma leve impressão de que nunca ganharei dinheiro com o que escrevi, a ponto de me sustentar com isso, mas ainda assim continuarei escrevendo.
Como acho que disse lá no “feici”, gosto dessa forma de pensar, sobre o “amadorismo” 🙂