Tolkien dizia ter um “prazer secreto”, verdadeira motivação por trás da escrita do “Senhor dos Aneis”: inventar línguas. É um passatempo muito antigo, diversão de grandes QIs. Nos seus primórdios, ainda não elevado ao estado de arte, produziu línguas pensadas para serem veículos neutros de comunicação internacional, como o esperanto. Posteriormente, constatada a inviabilidade de tal projeto (pois todos detestam unanimemente o esperanto), os fazedores de línguas passaram a ousar, e surgiram coisas diferentes.
Um linguista chamado Benjamin Whorf teorizou que as línguas poderiam condicionar o pensamento. Ele estava errado de várias formas, mas muita gente tentou experimentar isso criando línguas destinadas a mudar o mundo. Línguas feministas, línguas belicistas, línguas com semântica complexa, com gramática assim ou assado. Em geras estas línguas têm muito pouca inovação em relação à imensa riqueza das línguas reais que o mundo produziu, mas elas revelam o grau de cultura e o tipo de personalidade que o indivíduo que as criou possuiu.
Este foi, aliás, o ponto de partida segundo o qual um semiólogo atestou que J. R. R. Tolkien era racista. Como se não bastasse os seus heróis élficos serem “fair haired” (um termo inglês ambíguo que associa cabelos claros a cabelos bons) e o líder das forças do Bem ser o Mago Branco, ainda havia a “Fala Negra” (o “esperanto” das forças de Mordor). A língua dos elfos se caracteriza por sua pureza, enquanto as línguas dos homens, seres decadentes e transitórios, se contaminam com influências as mais diversas. Tanto o Quenya quanto o Sindarim (as duas principais línguas dos elfos) se baseiam em idiomas europeus (finlandês/latim/lituano e galês/holandês, respectivamente), mas a língua das forças do mal se inspira em dialetos do Oriente Médio.
Não chego a concordar que Tolkien fosse ativamente racista, apenas que ele não estava isento do racismo latente em sua época (nascido na África do Sul e contemporâneo da eugenia, do nazismo e da Ku Klux Klan). Prefiro pensar que a “pureza” a que ele se refere é um tipo de coerência interna que muitas línguas parecem não ter, notadamente o inglês, que é tão esquisito que há uma corrente da linguística que o classifica como um “dialeto crioulo” do francês medieval, com substrato anglo-saxão, que passou por um processo de intensa eruditização por influxo do latim e de reempréstimos de termos anglo-saxões esquecidos. Pena que Tolkien se enganou quanto ao finlandês: hoje se sabe que menos de 10% do vocabulário desta língua de família fino-úgrica é autóctene, os outros 90% foram emprestados do alemão, do russo, do lituano e do sueco.
Bastaram esses poucos parágrafos para lhe sugerir o quanto é rico e interessante o tema das línguas imaginárias (conlangs, ou “línguas construídas”, em inglês). Eu mesmo já me aventurei com uma, que se chamaria “nódico” e seria parte do cenário de um romance meu de ficção científica.