Esta noite sonhei com o meu melhor amigo. Não, não foi a primeira vez, apenas foi um sonho estranho o suficiente para merecer que eu o lembrasse. Um dia imagino que um semiólogo ou crítico queimará pestanas tentando decifrar-me a partir de textos como esse, então escrevo para dar-lhe trabalho. Ou para apenas me divertir lembrando.
Estávamos em uma fábrica, uma fábrica que estava prestes a fechar, mas os trabalhadores não sabiam disso. O ritmo de produção era tão frenético como sempre, os contramestres andavam de um lado a outro pondo na linha quem estivesse morcegando e caminhões chegavam e saíam trazendo ou levando matéria prima e mercadorias. Então, subitamente o Kid Abelha apareceu, com um palco montado sobre uma estrutura de aço, talvez um guindaste, e tocou os operários um rock denúncia que tinha uma letra mais ou menos assim:
Vocês que continuam
a vida sem saber
Logo vão compreender
que as máquinas os usam
e o dono só quer ter.
Mas um dia tudo passa,
vai a máquina parar.
A quem vão perguntar o que fazer,
vocês que seguem sem ouvir.
Surfar fora da onda
não é loucura nem azar
Fora da onda porque há
um momento de prazer.
Fora da onda, fora da onda,
ou a onda vai passar
e deixar você pra trás.
Crie sua onda, fora da onda.
Enquanto eu contemplava a cena perplexo pela ideia de o Kid Abelha fazer uma canção de conteúdo político-filosófico-existencialista (o que equivaleria ao Pink Floyd regravar Jorge Benjor), apareceu o meu amigo dizendo que a fábrica estava prestes a ser vendida para um ferro-velho chinês e que devíamos sair dali porque os empregados organizariam uma arruaça. Ante a menção de uma arruaça organizada eu decidi que precisava comprar pão.
Com o painel do carro cheio de pães das mais variadas espécies eu dei uma carona ao meu amigo, que disse que precisava ir para a terra colorida de cinza e rosa. Eu lhe dei a carona dizendo que ia passar por lá a caminho de Kashmir.
Enquanto atravessávamos uma ruela de casas todas velhas e parecidas, meu amigo pediu que eu parasse o carro para ele fazer uma visita. Desci com ele e encontrei três avós deitadas em três camas em um quarto nos fundos de uma das casas. A avó dele era uma delas (não avó real, mas uma arquetípica) e pediu-lhe pão.
Então eu lhe disse que era muito tarde para comprar pão e lhe dei um pacote dos que eu havia comprado, provando que nos meus sonhos mais estranhos eu planejo com antecedência as coisas que eu nem sei se vão acontecer.
Saímos daquela casa nos sentindo um pacote de pão mais pobres, porque sabíamos que apesar de tudo a senhora ia morrer, e ainda nos culpariam por ter-lhe dado pão.
— Foda-se o que pensem — protestou o meu amigo. Eu não ligo para as convenções malucas desta sociedade decadente. Minha avó pode ter oitenta anos de idade, mas vou lhe dar pão se ela quiser.
A última coisa que me lembro era de ver a velhinha revirando os olhos enquanto passava manteiga num pão.
No minuto seguinte eu acordei com vontade de urinar. Fui ao banheiro aliviar-me e vi Gregor Samsa recolhido, com medo, atrás do cesto de roupas. Notei que suas anteninhas tremiam de medo de meus pés, então prometi que não o esmagaria: deixaria que minha filha fizesse isso de manhã quando o visse.
Deitei de novo, ainda com o pescoço doendo de ter datilografado uma carta testamento antes de pôr a gravata. De repente lembrei do rosto do padre e pulei da cama como se estivesse acordando. Minha mulher disse que me chutou, mas eu só me senti caindo através de um céu cheio de travesseiros e me recolhi de novo até a manhã.