Às vezes a palavra que dizemos corta inadvertidamente quem está perto. É como brandir uma espada longa[^1] em círculo sem saber que alguém chegou pelas nossas costas. Culpa da espada? Do espadachim? Da vítima? Ou mero acaso.
Anteontem ofendi seriamente um amigo facebookiano por causa de minha postagem aqui.
Postei pensando num hábito irritante de dois ou três debatedores em um grupo político onde participo, sujeitos pedantes que gostam de pontuar suas frases com barbarismos léxicos achando que assim se mostram descolados. Essa fato me puxou o fio de muitas memórias, desde os tempos de Orkut, quando me cansei de ver garotos de 16 anos que tinham ido à Disneylândia achando que tinham cabedal para escrever um romance ambientando nos States.
Este amigo facebookiano me escreveu pedindo meu voto em uma espécie de concurso que está sendo promovido pelo Clube de Autores.
Mal sabia que o amigo facebookiano justamente me pedira para opinar num caso desses. Ele é o autor amador de um romance que começa por um título em inglês, que está ambientado em algum lugar dos Estados Unidos e tem uma história chupada diretamente dos filmes de terror americanos. Eu ainda não opinara, afinal o pedido era recente e eu tinha motivos razoáveis para supor que teria bastante tempo para analisar o livro e decidir se merecia ou não o meu voto. O fato de eu passar os fins de semana longe de meu computador pessoal era motivo suficiente para eu esperar pela semana.
Porque eu jamais daria meu voto sem ler a obra. A função de um concurso não é votar por amizade e nem pela beleza da capa: se esse era o tipo de voto buscado, buscou com a pessoa errada.
Então, inocente do conteúdo da obra que eu deveria avaliar, postei o que postei e segui com a vida. Hoje ao abrir o facebook me deparei com um irônico “agradecimento” do meu amigo e senti cheiro de coisa errada. Cliquei na ligação para o voto e detectei na hora de que se tratava.
Imagino que o meu amigo tenha razão para estar ofendido. Receber uma crítica é sempre ruim, porque de certa forma é como se alguém nos contasse que não somos geniais. E todo mundo se acha especial, genial. Mesmo uma crítica enviesada como essa, que só o atingiu na base do efeito colateral e da carapuça espontaneamente vestida.
Ao meu amigo só posso dizer que se acostume, e que aproveite. Viver para a arte é assim. Você se esforça e depois vem um idiota e diz que o seu trabalho é uma porcaria. Às vezes você passa a vida inteira sendo desvalorizado por idiotas e vira gênio depois que morre. Mas em muitos casos os idiotas têm razão e as pessoas ficam pensando porque você insistiu tanto, como o motorista da piada do barbeiro na contramão da Via Dutra.[^2]
No fim das contas é muito difícil quem escreve, compõe ou faz qualquer coisa artística conseguir ter uma visão clara e definida da qualidade do que escreve. Em geral esta visão só se consegue com o tempo. Com cabelos brancos que nos embaçam os olhos e nos fazem enxergar o valor real do que fazíamos aos vinte anos. Para sorte da literatura nós só adquirimos a sabedoria tarde demais, e temos tempo de ser ousados antes, para o bem e para o mal — mais frequentemente para o mal, mas os fracassos se perdem no esquecimento, então não há nenhum grande prejuízo, a não ser para quem se ilude.
Muito Nero morre tangendo sua lira, sem nunca entender porque as plateias não aplaudiam. Em alguns casos eram platéias estúpidas, mas esse é um julgamento feito pela posteridade, então o melhor que o artista faz é não se matar por causa disso, nem perder suas amizades.
Diz um ditado piegas que “com as pedras que me atiraram fiz o meu castelo”. Você não precisa fazer um castelo, mas se ficar jogando de volta não ganhará nada. Infelizmente esse tipo metafórico de pedras não serve para fazer castelos, o que é uma grande pena, mas serve para construir metafóricos muros mentais dentro dos quais o grande artista se isola com as pessoas que gostam do que ele faz.
Não sei se isso é errado, sei que não gosto. Queria que mais gente viesse me insultar aqui, enfiar o dedo nas feridas, gritar os meus defeitos.
As poucas coisas que aprendi na vida incluem uma constatação: se fazemos uma escolha certa desde o início é por mera sorte. Em geral deixamos de cair nos buracos porque alguém grita. Mas alguns têm a perseverança de ignorar a gritaria e seguir. Alguns são gênios, mas a maioria só fica teimando em coisas que ninguém quer, e que não sabe fazer direito.
Quem sou eu para julgar qual é o caso, mas reservo-me o direito de gostar do que escolho gostar. Quem vem me pedir que goste de outra coisa deve estar atento: não se pede a um atleticano que torça pelo Cruzeiro “só para ajudar”.
[^1]: O nome em português da *longsword* conhecida dos jogadores de RPG, Skyrim e outros jogos de guerra. O nome inglês evoca apenas o fato de ser comprida, em português se evoca o fato de ela ser tão grande e pesada que normalmente era usada apenas por cavaleiros (daí “montante”, a espada que se usa montado a cavalo). Guerreiros excepcionalmente grandes e fortes costumavam lutar usando montantes a pé para intimidar seus inimigos com sua força, mas isso era só uma exibição gratuita de ignorância, sem muito efeito bélico.
[^2]: A piada do motorista barbeiro na Via Dutra. Um motorista seguia pela Via Dutra, enquanto ouvia o rádio e xingava os outros motoristas por suas barbeiragens. O rádio deu a notícia: “Atenção motoristas que trafegam pela Via Dutra no sentido São Paulo/Rio, há um maluco dirigindo pela contramão na altura de Resende.” O motorista ouviu isso e comentou consigo mesmo: “Nossa, eles não sabem de nada! Um só!!!? Ahahah!”
Acredito que pessoas demasiado suscetíveis à potencial revelação, por parte de amigos, de que estão bem distantes do nível de genialidade que atribuíam a si mesmas devam confiar suas obras ao tempo. O tempo, em si, não é um crítico soberbo, mas transforma-nos em um. Nenhum amigo seu pode sentir tanta vergonha pelo que você escreve, hoje (e julga a opus magnum da literatura do século vigente), quanto a que VOCÊ MESMO terá, relendo essas páginas daqui a, digamos, dez anos. Em dez anos, todos seremos os melhores e mais ferozes detratores de nós mesmos. Acho que vem daí o atraso nas pesquisas sobre a criação de uma máquina do tempo: é proposital. Seria contraproducente, do ponto de vista da propagação da espécie, ter tanta gente querendo voltar ao passado e assassinar a criatura arrogante que foi, outrora. O paradoxo do avô é só uma fachada para o paradoxo do suicídio autocrítico.
Excelente texto, José Geraldo. E não, não lhe digo isso por que somos amigos.