A Zona da Mata Mineira vive hoje uma crise – humana, econômica e ecológica. Por toda parte onde se vá, encontramos a descaracterização cultural, a perda das tradições orais, o esquecimento do artesanato (e da própria história) e, mais grave que tudo, uma absurda destruição da natureza que, de tão arraigada, deixou de significar apenas a remoção da vegetação nativa e agora está chegando à remoção do próprio solo e das montanhas: percorrendo a região vemos morros pelados, terra aparente, erosões, cursos d’água assoreados. A Zona da Mata deixou de merecer esse nome: hoje é uma região em processo incipiente de desertificação.
“No começo isso aqui era só mato, bicho e índio. Mas nós limpamos a terra e a fizemos produzir.” A frase foi dita, de verdade, por um proprietário de terras da Zona da Mata Mineira, em algum momento nublado de minha infância. Ele certamente não se lembrava de quando chegaram os primeiros colonos, procedentes do norte do estado do Rio de Janeiro ou dos Campos das Vertentes, mas a presença dos três elementos definidores – mato, bicho e índio – perdurou durante décadas depois, permaneceu no imaginário do povo até bem há pouco tempo. E eu sempre achei curioso como a gente de minha terra contava sua história.
Conheci pessoas que diziam que um ou outro de seus antepassados havia sido “índio pego a laço no mato” – uma referência oblíqua a indivíduos sobreviventes dos massacres dos grupos isolados de tapuias, puris, goitacazes e outros povos ameríndios que aqui viviam. Quando os colonos brancos vieram, trazendo seus escravos e seus machados, a presença dos índios foi sendo extirpada, junto com o mato e com os bichos. As três palavras foram sempre empregadas em um tom pejorativo.
“Mato” era, no português coloquial de antigamente, uma palavra carregada de negatividade. Dizer que algo “era mato” era como dizer que era vulgar, que era encontrado em qualquer lugar. O “mato” era, também, o lugar desorganizado, o caos primevo. “Bola para o mato, que o jogo é de campeonato” e “fugir para o mato” são expressões que mencionam esse sentido. Joga-se a bola para onde ela desaparecerá, para retardar o jogo. Foge-se para longe do alcance do braço da lei. No meu tempo de criança ainda corriam histórias de pessoas que fugiam das cidades e vinham “para o mato” trabalhar em terras de coronéis, e que não eram presas se esses não deixassem, porque a polícia não entrava nas propriedades. Remover o “mato” era um processo civilizatório. Lembro-me de como a professora leiga, de minha escolinha rural, me contou, embevecida, como seus antepassados “desbravaram” a terra. “Desbravar” é cognato de “bravio”. Envolve um sentido de “doma”. Desbravar é amansar a terra. É tirar o mato, o bicho e o índio. E eu me lembro até hoje do desenho que fiz, de um colono enxugando o suor da testa, apoiado em seu machado, no meio da lida hercúlea de derrubar árvores em um campo imenso.
Meus antepassados odiavam árvores. Tanto que construíam suas casas em clareiras lisas, os “terreiros”. O tamanho do terreiro estava vinculado ao poder do proprietário. Viver em uma casa isolada no meio de um terreiro imenso era para os coronéis, ou quem tinha dinheiro equivalente. Manter o terreiro limpo envolvia o trabalho de muitos homens, para remover as folhas do mato, arrancar as ervas que teimavam em nascer. O terreiro era também uma proteção natural contra emboscadas. À noite, mesmo sem lua, era mais fácil ver alguém tentando atravessá-lo para atacar a casa. Mais fácil do que seria se em vez de terreiro a casa fosse cercada de árvores.
“Bicho” tinha um sentido ainda mais forte. A palavra “animal” era reservada para as bestas domesticadas: cavalos, mulas, vacas, jumentos, cabras, ovelhas. Pequenos animais domesticados, ou que viviam próximos à casa – como gatos, ratos e lagartixas – eram chamados de “bichos”, assim como os insetos (bicho-de-pé, por exemplo). Os outros eram os “bichos do mato”, vistos como “invasores” e predestinados à caça ou ao mero extermínio porque interferiam na economia. E o colono sabia muito bem que remover o mato era uma maneira eficiente de afastar o bicho, sem ter que matar cada um, correndo risco. Por isso as grandes queimadas, por isso “desbravar” até mesmo encostas de ângulo impossível para a agricultura e a pecuária. Era preciso “limpar” a terra, para que o bicho não ficasse perto. A onça, o quati, o piriá, a jaguatirica, o guará, o guaxinim, o maracajá, o mão pelada, o caboclo d’água, a lontra – todos bichos que, embora fossem bonitos alguns, tinham o infeliz hábito de ver nas galinhas das fazendas uma caça mais gorda e mais fácil do que os magros e velozes pássaros “do mato”.
E o “índio”, por fim, era o “bicho” por excelência. Dotado de uma inteligência “quase humana”, reunia a ferocidade e a matreirice. Por isso o ódio que despertava no colono, de forma espontânea e natural. Se algum era capturado e trazido à fazenda, era para ser simplesmente morto ou escravizado. Poucos comentam, mas os antepassados pegos a laço eram, em geral, mulheres. Estuprar a índia e fazer filhos nela era uma forma de subjugar este animal estranhamente humano que vivia em torno das regiões de colonização incipiente. Mas uma vez trazido à civilização, se “aprendesse a falar” (o que geralmente só acontecia com crianças) e conseguisse aprender uma profissão, o índio não era mais um inimigo, apenas outro elemento subjugado, na estrutura de poder da grande fazenda.
Não podemos esquecer essa mentalidade se quisermos entender o desastre. Os colonos removeram a mata para afastar o bicho e para exterminar o índio. Removeram a mata até mesmo nos lugares onde isso nem era necessário, como encostas de pedreiras com ângulo de sessenta graus. No lugar da mata plantaram monoculturas que não ofereceram cobertura ao solo, as mais recentes são o eucalipto e a brachiaria. O uso frequente da queimada enfraqueceu a terra, salinizou-a, acidificou-a. Queimada proposital, ou queimada acidental, causada por balões, raios, acidentes domésticos ou, em dias excepcionalmente quentes, pedaços de vidro perdidos em moitas secas. Nos lugares mais queimados já não cresce mais nada: a terra está pelada, mostrando sua derme, vermelha ou amarela. Sem cobertura a chuva arranca e arrasta: surgem erosões imensas. A terra solta vai para os riachos, que ficam rasos e largos. As nascentes são sufocadas, riachos secam na estiagem, coisa que nunca se imaginou acontecer por aqui.
E este desastre acontece aos poucos, sem que ninguém proteste. Os jornais não comentam. A televisão não fala. O cadáver vai apodrecendo e é como se ninguém sentisse o cheiro. As pessoas dirigem pelas estradas olhando exclusivamente para o asfalto, sem ver as feias marcas de destruição que perfilam ao redor. Tal como, nas cidades, ignoram os mendigos, ao sair delas ignoram a destruição.
Ninguém quer ver, porque ninguém quer admitir que tem alguma responsabilidade. Não fomos nós, foram nossos pais, avós e bisavós. Nossos netos e bisnetos também dirão que não foram eles, mas que fomos nós – mas nós estaremos mortos então, o que significa que não veremos seus dedos apontados em nossas caras, e não precisaremos ter vergonha da acusação. Por isso podemos ficar inertes, sem nada fazer, sem nada dizer.
Nascemos em uma cultura violenta, uma cultura de genocídio, estupro, desmatamento, queimada e depredação. Matamos ou “pegamos a laço” os índios, arrancamos as árvores, secamos os brejos, queimamos os montes, destruímos os sinais de tudo que houve antes de nós. Tomamos posse da terra através da terraplenagem e da espólio. Esfolamos a terra, tiramos sua pele, para que crescesse outra, nova, nossa. Agora vemos essa pele que nasceu, ressecada, feia, cicatrizada, e não a queremos. Eis o fruto da ira e da cobiça de nossos antepassados. Até quando os desculparemos, até quando nos desculparemos?
Eu poderia também estar quieto, mas me dói cada vez que vejo uma nova erosão, que noto que esqueci outra cantiga que fez parte de minha infância. Dói quando vejo que a colonização continua, sempre em novas vagas, cada uma determinada a suplantar a que havia antes, sob camadas sucessivas de esquecimento. Rompendo a continuidade, para que tenhamos a ilusão de que o mal lá fora não é fruto nosso: queremos ser novos, fingimos ser outros, porque não queremos saber que matamos os bichos, que laçamos os índios e que limpamos o mato.
Eu não estou quieto porque todo escritor é consciência de sua era. Eu sei muito bem que a perfeição, possível ou não, é apenas um ideal vazio, apenas outra forma de não olhar lá para fora e ver o vazio, de árvores, de bichos e de índios, que o nosso passado produziu. Se eu ficasse obcecado apenas em contar, do melhor modo possível, as histórias e os sentimentos que agradam aos outros, eu estaria sendo apenas outro colono, que vive aqui, mas tem a cabeça no Rio de Janeiro ou em qualquer outro lugar. A mentalidade do colono é transitória. Ele não ama a terra, ela não tem família: seu coração está em outro lugar, para onde quer ir ou voltar, quando arrancar da terra o que seja preciso para viver lá como patrão, ele que veio como ladrão. O colono não é um cidadão.
Então eu começo, aos poucos, a falar disso, e de outras coisas que sinto, da raiva que sinto. Posso estar escrevendo mal, mas cada dia que passa tenho mais definida esta sensação de que é preciso vocalizar esta frustração. Falar em nome das árvores, dos bichos e dos índios. Falar em nome do que esta terra foi antes de ter sido reduzida ao que é.