Onde algo é sacralizado, é natural que surjam os contestadores. O iconoclasmo é uma espécie de rito de passagem para os jovens e uma marca de “independência” dos mais maduros. Provocar essa irreverência é uma maneira eficaz de manipular as pessoas: tendo um judas para chutar o indivíduo acredita que é um contestador, e obedece aos comandos, subreptícios ou explícitos, e segue mais ou menos na direção que interessa ao provocador. Identificado um alvo tido por muitos como sagrado, é muito fácil reunir uma turba de pessoas para cuspir nele, com a desculpa de que estão fazendo a revolução.
Não, eu não estou falando da religião. Estou falando do conceito de nacionalidade. Durante muito tempo nos foi vendida a ideia de que o nacionalismo era uma espécie de “doença infantil” dos estados, e que a adesão a uma irresistível “globalização” marcaria nossa transição desta metafórica infância para uma posição em pé de igualdade diante das nações “adultas”. O grande exemplo era o da Comunidade Europeia, onde nações separadas por séculos de ódios estavam se juntando para cooperarem rumo a um futuro comum. Ser um nacionalista era algo como ser fascista ou, pior, um equivalente moderno ao homem das cavernas hirsuto e renitente diante das propagandas da Gillette.
Pois bem, o tempo passou, a Comunidade Europeia entrou em crise, países mais afoitos em sua crença acabaram liquefeitos e entregues às harpias. Democracias jovens e instáveis, como as da Grécia e da Espanha, se revelaram jogos de cartas marcadas e a suposta irmandade dos povos acabou abrindo as portas para o saqueio em favor de nações mais estáveis, especialmente a Alemanha e a Grã Bretanha. Tendo renunciado às suas moedas e fronteiras nacionais, países como Itália, Grécia, Portugal, Espanha e Irlanda acabaram incapazes de controlar a mobilidade de pessoas e de capitais, expondo-os, sempre instantaneamente, aos humores de um mercado financeiro que trabalha a prazos cada vez mais curtos, chegando a consumar compras e vendas a intervalos de minutos para obter ganhos de milésimos de centavos por lote de papeis.
Os estragos desse corte impensado da cerca que dividia espaços desiguais não foi restrito à economia, porém, a cultura sofreu e sofre com esse impacto, através da intensificação do impacto da cultura de massas. Se até os anos 1980 um best-seller americano ou britânico demorava meses ou anos para chegar às livrarias brasileiras, hoje ele está aqui em poucas semanas. As traduções, que eram feitas, muitas vezes, por escritores de renome (como Clarice Lispector, Nélson Rodrigues, Autran Dourado, Orígenes Lessa, Monteiro Lobato, Adonias Filho e outros), passaram a ser feitas, muitas vezes, por gente que não sabe nem conjugar o pretérito mais que perfeito. Como resultado, uma obra dispensável (como essa em que você está pensando, mas que não vou nomear para não atrair a ira dos fãs) chega ao nosso mercado antes que saia de moda, revelando sua irrelevância. Antes tínhamos acesso aos livros que mostravam ser sucessos duradouros, mesmo que literariamente sofríveis. Hoje qualquer peidinho que venda alguma coisa na Barnes and Noble recebe uma tradução nacional. E não são escritores que estão sendo convocados para fazer essas traduções, mas gente que ganha centavos por lauda e cujo trabalho é revisado por outros que não sabem nem para que serve uma vírgula. A qualidade péssima das traduções é um fato. A pressa é inimiga de qualquer parâmetro de qualidade.
E ninguém acha que isto está errado porque há um desrespeito generalizado pela língua portuguesa. Desrespeito que se aproveita desse iconoclasmo seletivo e fácil e que alimenta uma cultura de submissão. A tradução não é mais vista como uma recriação literária de um texto, mas como um trabalho reles de interpretação destinado aos boçais que ainda não sabem falar inglês. O ideal seria que todos lêssemos os originais, isso até facilitaria para as editoras multinacionais, que poderiam simplesmente importar os livros impressos nos EUA ou na Grã Bretanha, sem terem o incômodo de traduzi-los para nossa língua primitiva. Ler no original é um distintivo de alguma forma de superioridade. A língua estrangeira, por ser excludente, torna-se uma ferramenta política de valor.
O desrespeito ajuda a colonização cultural, mas porque ele ajuda a manter relações de classe , distinguindo entre os recém chegados ao consumo cultural e os que obtiveram uma educação bilíngue, ele acaba sendo alimentado. O iconoclasmo parece promissor porque o ensino de português no Brasil é uma coisa odiosa, praticada por ignorantes pseudocientíficos que brandem a gramática de uma forma que parece que as regras foram feitas para humilhar os outros. “Professores” preconceituosos, reacionários, idealizando um idioma mumificado em livros, desatentos aos fenômenos linguísticos em curso e obcecados em negar algo que a ciência já sabe há mais de oitenta anos: a dicotomia entre a língua escrita e a falada. É muito fácil odiar o Professor Pasquale e seu DOPS linguístico, o Professor Napoleão e o seu nazismo gramático, vários outros com seus preconceitos, limitações e desprezo pelo povo.
Desprezar o povo e desprezar a língua são atos contínuos. Não é possível respeitar o primeiro desprezando o segundo, e nem vice versa. O suposto respeito que os gramáticos normativos têm pela língua idealizada em que creem traz embutido o desprezo pelo povo que a “corrompe”. Mas o desprezo pelo povo significa o desprezo pela verdadeira língua, em nome do amor a uma entidade abstrata, calcificado em dicionários e antologias. O amor ao que não existe é um comovente testemunho do conservadorismo ignorante.
Então, sabendo que o ensino formal da gramática normativa é uma violência, fica fácil usá-lo para desqualificar não o reacionarismo linguístico de gente que considera a língua coloquial uma “corruptela”, mas a própria língua. Isso nos conduz a um caldo de cultura no qual muitos jovens crescem desprezando o português pelos mais variados pseudomotivos, simultaneamente a uma valorização exacerbada do inglês e até mesmo de idiomas estrangeiros que parecem tão alheios a nossa realidade, como o japonês ou o alemão.
Dada a importância atribuída à língua estrangeira, chega-se ao absurdo de confinar o português a um papel estritamente doméstico, o que foi exatamente o processo através do qual línguas antes pujantes, como o galês, o basco, o dálmata e o gaélico entraram em extinção. Dizem que precisam do português para comunicarem-se com o vizinho, mas do inglês para falar com o mundo. No fundo sonham com o dia em que poderão falar em inglês com o vizinho. Sente-se que para muita gente ainda ter que falar português é só um incômodo necessário.
Os argumentos políticos são os mais absurdos. Há pessoas que acreditam que não devemos resistir à imposição da cultura de massas anglo americana e seu idioma somente porque, em algum momento do passado, o português nos foi também imposto. O encontro desse “pecado original” de nossa identidade nega o seu valor diante de um processo que pode suprimi-la?
Para diminuir ainda mais a importância do português como veículo de identidade nacional, há pessoas que procuram negar a realidade do predomínio da colonização portuguesa, dizendo que “a maioria” dos colonos brancos do Brasil é de italianos, alemães e outros povos europeus. Claro que este argumento só existe onde existe muita ignorância ou então em cidadezinhas do interior onde predominam tais comunidades de colonos. Uma pessoa com conhecimento amplo do país sabe muito bem que o elemento luso é o único que está presente em todas as regiões, predominando na maioria das cidades, exceto naquelas onde houve um influxo excepcional de colonos europeus. Nossos sobrenomes são evidência disso.
O tal iconoclasmo a que me refiro se expressa quando se procura justificar a aceitação da imposição cultural estrangeira com uma negação de uma suposta “obrigação moral de ter alguma espécie de amor pela língua portuguesa”. Obviamente não podemos esperar que todos tenham as mesmas fidelidades e cumpram igualmente suas obrigações morais, mas uma pessoa que rejeite tais sentimentos em relação à sua própria língua os rejeita também em relação a si mesmo, pois nega o valor de algo que lhe é próprio enquanto empresta tal valor a algo que é alheio. Não é indício de maturidade aceitar a submissão a outrem.
A evidência de que os mesmos que negam esses laços afetivos com o português os transferem para o idioma estrangeiro se revelam quando essas pessoas dizem que o inglês tem “palavras mais legais” que o português, o que é uma forma de dizer que se sentem mais tocadas em suas sensibilidades pela fonética e pela morfologia de outro idioma. Para essas pessoas, o português é uma língua “desengonçada” e “difícil”. E por temerem soar desengonçadas e difíceis elas procuram usar o inglês o máximo possível, em seus nomes (muitas vezes escrevendo errado), em suas gírias, no que puderem.
Outros justificam seu desprezo enxergando no inglês qualidades que o português supostamente não teria: “uma rica literatura” (argumento muito usado por pessoas que não têm muito hábito de ler literatura, claro), uma tradição mais antiga (argumento muito usado por quem não pesquisou a história de ambos os idiomas, e portanto não sabe que o inglês moderno remonta ao fim do século XVI enquanto português moderno data do início do século XV) ou uma maior adaptabilidade.
Entre essas qualidades do inglês estaria a sua “facilidade”, enquanto o português seria muito difícil. Certamente facilidade é um conceito plástico, que se moldará à mão de quem o manipule. Dependendo de quais características resolvamos comparar, é possível provar que quase qualquer idioma é mais fácil que outro. Mas é fato que a percepção do português como uma língua extremamente difícil é algo que existe mais na cabeça do brasileiro do que na realidade prática. Estudos internacionais sempre classificam o português como uma das doze línguas mais fáceis de se aprender para falantes de qualquer língua indo-europeia. As razões para isso são várias: vocabulário predominantemente derivado do latim, resultando em grande número de cognatos com vocábulos internacionalmente conhecidos, sistema ortográfico simplificado, gramática sem declinação nominal e sem distinções honoríficas, alfabeto latino, abundância de material de estudo etc. As pessoas que acham português difícil certamente nunca nem tentaram aprender línguas como alemão, russo, estoniano, húngaro, grego, polonês, árabe, coreano, mandarim, hindi, finlandês, irlandês, tcheco ou romeno.
Sabendo que o português é internacionalmente reconhecido como uma língua fácil de aprender, conclui-se que vê-lo como difícil é pura má vontade, desinformação ou manifestação de uma dificuldade para o aprendizado de línguas que se manifestaria em relação a qualquer outra língua. Mas não podemos nos esquecer, como já disse em artigo recente, que o nosso sistema educacional possui um status de verdadeira praga do Egito e que, como começamos dizendo acima, a praga do gramatiquismo normativo grassa sem freios por suas campanhas.
O certo é que, no frigir dos ovos, não interessa ao Brasil e nem aos brasileiros que a nossa língua seja relegada a um plano secundário, que nossa literatura não seja defendida e que nossa cultura seja descartada. Precisamos trazer o português para mais perto de nosso dia a dia, dar mais peso à nossa literatura e defender nossa cultura. Isso, claro, não se fará com leis, nem cotas e nem exigências. Precisamos é consertar nosso sistema educacional, para que futuras gerações de jovens frustrados por não conseguirem aprender corretamente sua língua não cresçam com desprezo por ela e sua tradição.