Deparei-me hoje com a campanha do Literatura Fantástica Brasileira contra o que consideram má literatura e me confesso meio espantado com o teor desta. Primeiro porque sou cético quanto a critérios absolutos para avaliar a qualidade de produções artísticas: como todo mundo que conhece a história da literatura, tenho uma saudável sensação de que a exclusão de algo por ser ruim soa como academicismo, que já fez muito mal à arte no passado. Segundo porque a ideia de queimar um livro ruim me agride a sensibilidade como algo que lembra os autos de fé da Inquisição ou a Alemanha nazista.
Hoje foi o dia do livro, quem quis aderir à campanha já aderiu, então minha postagem será inócua para salvar das chamas alguma obra preconceituada como criatura de um charlatão. Escrevo, porém, na expectativa de algumas das pessoas envolvidas nisso ponham a mão na cabeça e reflitam sobre o que dizem.
Autores como “charlatães”.
Suponho educadamente que o autor do texto em questão conhece o significado do termo (supor diferente seria insultuoso), então tenho de ver nesta discriminação a tentativa de dizer que alguns autores cobram dinheiro dos leitores para resolver seus problemas, ou que, supostamente, vendem algo que não entregam. Não me parece uma forma correta de analisar o mercado, mesmo que consideremos a literatura de auto-ajuda como uma espécie de engodo para pessoas inseguras.
Charlatanismo é crime, então a acusação é grave. Não no sentido de ensejar reparação judicial, mas grave no sentido de agredir profundamente a reputação de quem a recebe.
O problema de chamar um autor de “charlatão” não está na ofensa em si, mas na arbitrariedade envolvida em qualquer juízo de valor literário.
Não foram poucos os autores desprezados em seu tempo que tiveram reconhecimento póstumo, e nem raros os que começaram a ser esquecidos antes que seu cadáver acabasse de esfriar. Quando você chama um autor de charlatão, corre um grande risco: o de passar a história como um Sílvio Romero, que dedicou a vida a difamar Machado de Assis. Você pode estar criando obstáculos para o desenvolvimento e o reconhecimento de alguém que tem um talento maior que o seu e ficar como vilão na história. Ou pode vir a ser chamado futuramente de “charlatão” por suas teses sobre o valor literário das obras não terem valor.
A Necessária Humildade
Escritores, como os que cooperam no Literatura Fantástica Brasileira, precisam ter uma dose de humildade ao comentar o trabalho alheio, porque é sabido que a especialização é uma regra entre os literatos, sendo raros os capazes de tudo. Na especialização encontramos os grandes romancistas, como Machado (que como crítico foi bom a ponto de desancar Eça de Queirós), e de outro um Otto Maria Carpeaux, que nada escreveu de ficção.
Então, se os bons autores que militam no LitFanBr se acham bons no que fazem, não devem se arrogar muita autoridade para desqualificar a porcaria que outros façam, porque raramente algum Mário de Andrade haverá por lá (que foi bom em poesia, ficção, estudo folclórico e crítica). Se não tiverem humildade correm o risco de cometer injustiças ou, pior, fazerem afirmações absurdas que no futuro deporão contra sua reputação.
Mesmo assim eu nem escreveria este texto caso se limitassem a dizer que há escritores charlatães. Porque, embora não cite nomes (tampouco eles citaram), também penso que há gente por aí vendendo livro a quilo.
A Proposta
O que me convidou a escrever é o convite para queimar, com a desculpa de que é preciso evitar a leitura do livro ruim:
Hoje, dia 23 de abril, comemora-se o dia do livro e nós do blog não poderíamos deixar uma data tão importante passar em branco.
Ainda que os veículos de comunicação tenham ignorado completamente a data (fato compreensível uma vez que o tema não se relaciona à nenhuma minoria discriminada) nós cumpriremos, novamente, nosso papel em prol da “limpeza” do meio literário.
Tenho medo de quem se propõe a limpar o mundo, porque a sujeira é algo subjetivo. Hoje queremos excluir do mundo os livros ruins, amanhã poderemos redefinir ruindade literária, outro dia poderemos pensar em perseguir obras imorais (vejam a campanha contra o funk, que procura criminalizar a incultura do povo). Apesar de concordar que há muito livro que não merece ser lido (e que o funk é algo que devemos eliminar de nosso seio, em nome dos valores da civilização), acho que as campanhas de limpeza são fascistas. Não devemos “queimar” o que é sujo, devemos criar um mundo no qual a sujeira não faça sentido.
Até meia-noite (falta pouco, mas dá tempo) queime aquele livro terrível, mal escrito, mal revisado ou que simplesmente você tenha odiado.
Inicialmente a ideia era queimar os livros objetivamente ruins, mas logo o autor se deixa seduzir pelo ímpeto normativo e passa a redefinir a ruindade absoluta como afim a ruindades relativas ou divergências de gosto. Que mundo é esse no qual somos convidados a queimar os livros dos quais simplesmente não tenhamos gostado? Será que outra pessoa não poderia gostar? Será que a incompetência do revisor ou do editor anula o valor literário do texto entregue pelo autor? Devemos queimar o autor porque não teve a sorte de ser bem editado? Será que já não tivemos fogueiras demais, de livros e de gente, nesse mundo tão intolerante?
Evite que outra pessoa, assim como você, percam seu tempo lendo uma porcaria enquanto poderiam assistir Ana Maria Braga, Vídeo Show ou alguma novela.
Obviamente a alusão a esses péssimos programas de televisão é feita por humorismo, ainda que não tenha graça. O Brasil é um país onde as pessoas acham engraçado ofender os outros, você xinga alguém indefeso e chama isso de “humorismo”. Nada é mais engraçado que um cachorro morto, na cabeça de quem o chuta. Mas que sentido há em fazer humor com a alusão de que ver televisão seria melhor que ler um livro ruim? Já não temos suficiente desestímulo à leitura nesse país? Será que até na hora de fazer “humorismo” a gente deve depreciar a leitura, especialmente considerando que muitos maus leitores não perceberão a ironia?
Queime também na internet, divulgue para seus parentes, amigos (e por que não para os inimigos também?) e conhecidos aquele livro péssimo que fez você se arrepender de ter lido.
Não gostar de uma obra agora é justificativa para iniciar uma cruzada contra o autor. Não limitada a opinar, mas também incluindo uma campanha de divulgação negativa.
Resumindo: queime o escritor lazarento que o convenceu a comprar a desgraçada obra que hoje sequer serve para limpar o traseiro pela qualidade do papel em que foi impresso!
Por metonímia, o objetivo é queimar o escritor, não a obra. Não se trata de atacar a qualidade insuficiente de um livro mal escrito, mal editado ou mal impresso, ou apenas mal amado. A proposta é a de ir além, destruir a reputação do infeliz autor, não importa se foi enganado por uma editora que parecia competente, não importa se os defeitos de uma estreia não chegam a anular o brilho de um talento que ainda pode ser polido, não importa se sua rejeição pode ser questão de gosto! Queimemos o lazarento!
O que mais espanta nesta convocação é que o convite é para queimar obras que foram lidas, mas de que o leitor não gostou. Parece claro que o convite reflete mais a frustração de encontrar um final insatisfatório ou uma trama que não atende aos anseios do leitor. Um livro realmente ruim não consegue levar o autor pela mão até o fim: eu dificilmente chego a vinte páginas se a obra for realmente ruim. Se o livro chegou a ser lido, é porque o autor teve a competência de trazer o leitor consigo até o ponto final. Então o livro não é “ruim” que mereça ser queimado.
O Leitor Ruim
O leitor, mesmo que também seja escritor (ou pense ser), não tem o direito de se sentir assim. O autor não escreve pensando em satisfazer cada um dos milhões de egos que o lerão. Quem pense nisso gastará mais tempo refletindo sobre o que deveria escrever do que escrevendo. Se você achou frustrante a obra que leu, isto, claro, pode significar que ela é ruim, mas pode também significar que você é um leitor ruim.
Um leitor ruim é aquele que não seleciona o que lê, que aceita ser enganado por um “charlatão” porque não tem a capacidade de abandonar uma leitura insatisfatória porque respeita excessivamente o fetiche do livro. Precisa ir até o final para concluir que a obra não presta, tal como a vítima do charlatão chega a lhe entregar imóveis e fortunas em troca de promessas de curas ou prazeres, antes de se convencer de que talvez ele não seja mensageiro de Deus. O leitor ruim é aquele que acha que todas as obras precisam satisfazê-lo superficialmente, atendendo aos rumos que ele queria que a história tomasse.
O Livro Ruim
Mas nem toda frustração com um livro é resultado da ruindade de quem lê. Livros ruins não são lenda. Muito embora alguns sejam tão ruins que causem câncer. Porém toda frustração com um livro reflete uma postura acrítica, uma falta de distanciamento em relação à obra.
O leitor ruim não consegue criticar com propriedade porque ele acha que o livro é um remédio para suas carências (afetivas ou emocionais) e que a falha em supri-las é um crime (daí achar que o autor é um charlatão). Por isso, antes de queimar os livros de que não gosta, convido-o a doá-los a uma biblioteca. Os que realmente forem ruins não serão lidos, ou lá encontrarão um merecido algoz. Do espaço aberto em sua prateleira o leitor dependente poderá fazer bom uso, com vasos de flores ou estatuetas de cerâmica. Não aumentemos a temperatura do mundo queimando aquilo que achamos que não presta. Chamas não são argumentos, a não ser contra os que as acendem.
Uma Proposta Melhor
Em vez de reclamar que muitos de seus livros são ruins, que tal começarmos um exercício de julgamento antes de empatar dezesseis horas lendo um romance mal escrito? Se tem uma coisa na qual os livros ruins são realmente bons é na ruindade: ruindade não precisa de costume, você enxerga o abantesma em poucos parágrafos, às vezes até na sinopse. Se você escolhe casar com o livro e depois se frustra, é porque não escolheu bem no começo, deixou-se levar pelo que era acessório (como capas, meu Deus, como se vende livro pela capa!) ou pelo que era ilusório (como campanhas compradas de divulgação).
Em nome da paz e da reciclagem de papel (e de ideias), não queime. Mas continue gostando e não gostando do que quiser. Apenas reconheça que todos nós podemos estar enganados. Nós só damos ao mundo a certeza de que realmente estamos quando procuramos impedir tudo que de nós discorde.
Tanta gente por aí queimando a roela, queimando fumo e sei lá mais o quê, que mal há em queimar um livro que mal serve para limpar o rabo?
Quem disse que eles não citam autores? Citam, sim. Está lá nos “marcadores”.