Vladimir contemplou um raio de sol nadando no copo de cerveja e sentiu a leve pontada de um pequeno espinho no peito, que o fez tropeçar nas batidas como se o relógio histórico tivesse uma engrenagem empenada. Era tarde já, embora ainda nem fossem sete da noite. Tarde para sonhar com Dolores.
Então ouviu a voz dela no rasgo de um sorriso e teve vontade de pagar conta e sumir, ou ir embora deixando tudo na pendura, pondo pelo menos uma rua entre ele, Dolores e a praça. Mas era preciso resistir, mesmo porque não haveria nenhum consolo nas paredes nuas do apartamento, não naquela noite fria de junho, que amanheceria vestida de branco e perto de zero.
A voz rouca de Dolores ecoando na praça da cidadezinha, brincando com suas dores no peito, seu hálito pentrante e sua alma amarga. Ela, porém, não era doce, mas ácida. Subitamente deu-se conta de estar sorvendo o vento de dentro do copo extinto. Entornou mais da garrafa e pediu alguma coisa salgada para acompanhar, alguma coisa que ajudasse a morrer cedo.
Então ela entrou, pinoteando como uma lebre, indecente como só as jovens sabem ser. Maldita! Virou o resto da cerveja e impostou a voz para pedir a conta, surpreendendo à balconista:
— Não vai esperar a porção de salaminho?
— Fica para outro dia, está piorando muito rápido, esse frio.
Dolores saiu levando alguma garrafa colorida e ele recebeu o troco com um gesto de coitado e a calma de quem não vai dormir tão cedo nem acordar tão tarde. Vladimir nem lembrava mais porque pedira a conta, queria poder ficar, mas não queria que o achassem estranho, não mais.
Saiu do bar e não viu sinal na praça que restasse dela. Mas em algum lugar reverberava a risada rouca. Na lembrança, ou também por perto? Dolores mesma, ou a sua assombração na culpa sufocada da alma de Vladimir, mais velha que o corpo e menos predisposta à calma.
Então deu de ombros, soltou um suspiro como se exalasse uma doença e foi andando devagar para casa. Sentia-se pequeno, enrugado, imundo e triste. Tomou o caminho mais longo, como quem procura um cemitério. A casa de um solteiro sempre tem um ar funéreo.
Ia distraído, contemplando os detalhes de todas as flores e de cada laje da calçada, não ouvia nenhum passarinho e sentia falta de borboletas. O chão andava frio e a sola do sapato era tão fina que sentia o chão enregelar sua carne quando pisava. Mesmo assim, a cada passo, os pés se arrastavam mais naquele chão. Quanto mais longe, menos Dolores e menos calor. O sono viria cedo, viria frio, seria o medo e amanheceria despenteado na larga cama. E era tarde, muito tarde.
— Olá, Humberto!
Voltou-se para ver Dolores sorrir diante de si e era como se ela o percebesse.
— Não sou nenhum Humberto, ó Dolores.
— Não faz mal. Para mim você sempre vai se parecer com o tio Humberto.
Vladimir sentiu algo tremer na carne ao ouvir a curta, mas nociva, relação de parentesco. Estava começando a ter traumas disso.
— Ora, não me chame pelo nome de seu tio, por favor!
— Não gosta de Humberto?
— Ó não, não é que eu ache feio o nome…
— Então deixa eu te achar parecido com o meu tio Humberto.
— Por que você não pode me achar parecido comigo mesmo?
Dolores riu sem peso e o foi acompanhando em seus patins. Na calçada regular quase não se ouvia as rodas.
— Vem cá, gostou do cachorro quente?
— Cacho… Ah, sim, gostei. Você me viu?
— Claro que vi.
— Não havia ninguém na rua naquela noite.
— Mas eu não estava na rua naquela noite, dãã!
— Então…
— ‘Tá, fala logo se gostou!
O pedido dela era uma ordem.
— G-gostei, claro.
— Então volta lá para eu poder lhe preparar um do meu jeito.
— E como é o seu jeito?
— Com muuuito molho…
— Prometo que apareço.
— Mas você vai gostar do que eu vou fazer?
O pobre Vladimir olhou-a de frente, sem saber como responder a tal pergunta. Claro que gostaria. Gostaria de tudo que ela lhe fizesse, embora nem estivesse pensando em cachorros quentes naquele minuto. Porém segurou a emoção escoiceante, assentou-se de novo em sua caretice protocolar e se asseverou de que ela só lhe faria um lanche, nunca nada mais. A provocação só existia em sua mente torpe. Olhando de soslaio, fingindo interesse transcendental e metafísico por uma árvore igual a dezenas de outras da cidade, disse apena que:
— Sim, Dolores, prometo que vou gostar do que você fizer.
— Então venha logo, que eu quero lhe mostrar tudo que sei fazer.
Ela provavelmente falava da variedade de sabores e salgados, mas ele passava em outras coisas com a sua mente rodopiante, como se nas presas houvesse, mesmo depois de quarenta anos, um veneno jovial capaz de lhe dar forças. Quarenta anos, a idade que teria quando Dolores deixasse de ser crime.