Confesso que tive durante muito tempo uma certa resistência preconceituosa contra a tatuagem. Coisa de marinheiros, de presidiários, de maconheiros, de nefelibatas, de mafiosos japoneses que amputam os próprios dedos. Nada que caiba no quadrado perfeito em que inscrevo minhas opiniões. O tempo, porém, foi me educando mais a respeito do tema e eu fui percebendo que há tatuagens e tatuagens… Algumas eu posso apensa desconsiderar, outras são realmente desprezíveis, algumas eu devo temer e a maioria é simplesmente sem sentido.
Mas eu comecei a perder meu preconceito graças a Fernanda. Eu tinha vinte e cinco anos de sonho e de sangue e de América do Sul quando ela anoiteceu na minha vida, com seus cabelos longos, seu nariz comprido, seu olhar perdido e seu pescoço grosso entre os ombros. Tinha também uma tatuagem de uma lua crescente no braço direito, justo sobre a marca da vacina da varíola, “para disfarçar que a cicatriz é muito feia”. Eu teria dito que feia era a tatuagem, mas só fui saber dela quando meu juízo já se perdera por Fernanda, e então eu já não acharia feio nada que existisse nela.
Certa vez, era tardinha, tomávamos uma cerveja ao anoitecer de sexta feira, lá no D’Ângelo, quando ouvimos falar do prêmio alto que pagariam na loteria. Ela me atiçou a apostar:
— Um bilhete só, querido. Exponha-se ao azar de ficar milionário.
— Ora, Fernanda, ficar rico é muito bom, mas é algo que se deve fazer sem testemunhas.
— Não se preocupe, é só dizer a todo mundo que o bilhete premiado da cidade não foi o seu.
Assim, de brincadeira, fomos parar na casa lotérica e eu peguei um volante para marcar seis números aleatórios. Não vale a pena descrever os métodos heterodoxos para escolha das dezenas, mas resultou um palpite que nunca mais esqueci: 11, 13, 31, 43, 45, 54. Feita a aposta, enquanto entrávamos no carro para ir embora jantar em casa, ela me perguntou:
— Vai conseguir guardar de todo mundo o segredo? Aguenta segurar a notícia por quanto tempo?
Naquele momento, sem pesar muito o que estava dizendo, eu fiz um comentário leviano:
— Consigo guardar o segredo por toda uma vida se eu encontrar uma forma de contá-lo para todo mundo, o tempo todo. E poderei contar, se for de uma maneira que ninguém entenda.
— Tente pichar a confissão em búlgaro no muro de sua casa.
— Tem que ser algo melhor do que isso, nunca se sabe quando um búlgaro aparecerá nesta cidade. Tenho uma ideia melhor: se ganhar prometo que faço em meu braço a tatuagem de uma cobra com asas.
Fernanda caiu na gargalhada, aquela gargalhada sem freios que ela tinha e que me assustava, aquele jeito de espojar-se no riso como uma vilã de contos de fada. Vestida de preto e cheia de maquiagem como estava, parecia ainda mais bruxa má.
Ela nunca acreditou em mim, achava-me careta demais. Meu palpite não foi premiado naquela semana, nem na seguinte. Se ela chegou a contar para alguém a história, mesmo depois de terminarmos, é certo que ninguém mais se lembrava do caso, de forma que eu mesmo não me lembrava dele, a não ser quando repetia a aposta, geralmente nas ocasiões em que o prêmio acumulava. Mas então aconteceu.
Era de manhã e eu acordara sonolento e preguiçoso. Estava cochilando na rede cochilando quando um vento ainda mais frio soprou da rua, balançando as folhas das árvores. Senti a pele encolher em vão, os músculos repuxaram e os dentes bateram.
Levantei sobressaltado e fui para dentro de casa preparar-me um café para espantar a sonolência. Sentado à mesa, contemplava alternadamente a paisagem das montanhas, na estreita janela da área de serviço, filtrada pelo vapor que subia do caneco de alumínio em que estava fervendo a água. No vapor começou a se desenhar, lentamente, a figura de um bicho com asas largas, asas de pomba, mas um corpo comprido e saliente, corpo de serpente.
Esfreguei os olhos e a serpente voadora não estava mais lá. Olhei o relógio e vi que eram apenas dez da manhã. Ainda dava tempo. Tomei aquele café com pressa e pães de queijo, vesti-me e fui ao centro da cidade marcar meu bilhete.
À noite vi embascado o noticiário da televisão anunciar meus números. Não fora nada tão extraordinário quanto ganhar sozinho um concurso acumulado, ficar rico de ter dezenas de milhões, mas eram 12 respeitáveis pacotes, mais dinheiro do que eu conseguiria carregar.
Certa vez, de brincadeira, enquanto marcava um bilhete de loteria na presença de uma namorada, eu tinha dito que, se ganhasse, mandaria tatuar no meu braço uma cobra com asas. Ela nunca me perguntou o porquê e nem eu refleti muito sobre, até aquele dia em que vira a sombra de uma serpente alada no vapor da água do café. Devia ter dito a Fernanda que eu queria desmentir que Deus não dá asas a cobra.
Desliguei a televisão e me enrolei nas cobertas, sem conseguir dormir. Meus olhos estavam arreganhados, vidrados, e enxergavam no escuro fantásticas sombras que voejavam, compridas e ondulantes, pelas paredes e sombras do quarto e do mundo.
Virei para um lado, puxei a coberta e rolei para o outro lado, puxei e rolei de volta, prendendo-a dos dois lados debaixo do meu corpo, apertando. Ergui os pés, deixei que a ponta sobrasse debaixo dos meus calcanhares. Estava empacotado como um picolé dentro do invólucro. Pernas e braços estendidos, duros, dentro daquele casulo cilíndrico formado pela coberta em torno de meu corpo. De repente tive vontade de erguer novamente as pernas, e de abaixar, e de rolar para o lado, e para o outro, cair da cama, sair do quarto, seguir o mundo, mas não tinha asas.
Dormi uma noite de sonho inquieto, represando sentimentos contraditórios, querendo morder minha própria língua, que secava no ar enquanto o silêncio da noite ia enchendo os meus ouvidos.
Por fim, lá pela madrugada velha, compreendi o que devia fazer:
— Segunda feira, em vez de trabalhar, passo no tatuador e faço essa da promessa.
E ri, quase engasgando em meu próprio veneno.