A última coisa que vi na noite escura de 26 de abril de 1967 foram luzes azuis e vermelhas no retrovisor. “Malditos milicos, nos acharam!” — pensei e acelerei na vã esperança de fugir, mas logo perdi o controle em uma curva fechada da estrada para Araruama. Jurema gritou e se encolheu, o carro atingiu a sebe com um baque e um farfalho, tudo muito rápido, e caímos pela ribanceira. Apenas tive tempo de pensar que muitos anos depois da ditadura talvez nos considerassem mártires estudantis e dessem indenizações a nossas famílias. A ironia disso me fez suportar tudo sorrindo, enquanto o rádio do Aero Willys tocava Beatles rumo ao abismo: She’s got a ticket to ri-i-i-de, but she don’t care…
Houve um clarão e acordamos em uma praia vazia, numa noite sem lua que parecia a morte. A areia na e seca parecia a de um deserto, não a do litoral norte, e estávamos deitados de costas, como cadáveres em um velório. Quando nos erguemos, não havia nem sinal do carro por perto, nenhum ruído de metal nem brilho de chamas. Apenas o breu espesso, entremeado de suaves golpes de frio. Não havia sombra de estrelas no céu, sequer um movimento do ar que denotasse a frente fria prevista pela meteorologia.
Não sei como nos enxergávamos. Talvez apenas soubéssemos da presença um do outro pelo calor dos corpos, ou por outra forma oculta de sentido. Eu sabia que Jurema estava lá comigo, mesmo sem delinear sua silhueta contra qualquer plano de fundo.
Engoli em seco, pigarreei para tentar saber se ainda ouvia. Esperando um eco, um tossido, um espirro, um “oi” gritado no escuro. Alguma coisa que me certificasse de que estava vivo. Nada.
— Onde estaremos? — perguntei sem esperança de resposta.
Jurema parecia ainda catatônica, recuperando aos poucos os sentidos. Tremia e mexia as mãos mecanicamente enquanto seus olhos perscrutavam no ar denso alguma informação utilizável. O brilho deles, como duas pequenas faíscas isoladas no meio de um toldo uniformemente preto que cobria os meus olhos, indicava alguma tênue luz concentrada em suas retinas e refletida fantasmagoricamente naquela visão: distantes relâmpagos delineavam à direita, muito distante, o contorno escuro de uma montanha ou ilha.
Aquele silêncio medonho apertava a garganta e o ar pesado dificultava o esforço dos pulmões, ardia nos olhos e rugia nos ouvidos com o vento que começava a soprar, estranhamente morno, de várias direções. O céu estava mais escuro que uma noite de lua nova e aquele vento redemoinhando daquele jeito nos fazia lembrar uma caverna imensa, uma cratera, um porão, uma sepultura.
Logo Jurema cedeu, começando a chorar. Ouvi-la soluçar me agredia mais do que o meu próprio medo porque, apesar de crenças heterodoxas, ainda estávamos de acordo em muitas coisas, tínhamos entre nós aquele egoísmo burguês, aquela possessividade reacionária a que se chama futilmente de “amor”. Estendi os braços na direção daquelas duas brasas mortiças que brilhavam diante de mim como olhos de fantasmas. Tateei o ar vazio com medo de encontrar coisas terríveis, mas acertei seus ombros, frios e seminus. Apertei-a contra meu corpo, tentando certificar-me de nossa materialidade naquele pesadelo. Ou tentando cruelmente roubar o pouco de calor que ela emitia.
— Onde foi parar o Aero? — ela perguntou em seguida.
— Não sei, Juju. Acho que fomos lançados fora. Aliás…
Justo naquele instante, quando acabara de surgir uma questão capaz de levar-nos a reflexões relevantes sobre a situação em que nos encontrávamos, fomos interrompidos pelo primeiro som distinto que ouvíamos desde que acordáramos: um navio. Sinalizou não muito longe da praia, um pouco além de onde ouvíamos a maré, e depois ouvimos alguma coisa bater na água de uma forma que apavorava. Sinalizou o navio uma outra vez, naquele som espectral que cortava o silêncio, violento, alto e vibrante, fazendo esquecer momentaneamente o Aero Willys, nossas próprias vidas e tudo mais que nos preocupasse.
O som, grave e potente, soou uma terceira vez, “huuuuuuummmmmm”, e umas pancadas metálicas sugeriram uma âncora ou o desativar de algum tipo de motor que não ouvíamos. Como alunos que ficam alertas numa sonolenta manhã de segunda-feira quando ouvem a sirene do intervalo, abandonamos nossas considerações e olhamos o horizonte, ou onde deveria haver um, perdido no negro painel que era tudo o que enxergávamos.
A primeira novidade que pressentimos foi o som de remos anunciando a chegada de um batel. Vinha alguém sozinho, pois era só de dois remos o marulho que se ouvia. Por fim foi acesa uma luz tênue, mecha de uma lanterna incandescente ou pavio de vela. A cena que vimos, iluminada pela precária luz, pareceu tão inatural que nem tivemos palavras. Tudo era tão desprovido das propriedades típicas das coisas que existem que achei que fosse apenas um sonho, ou um delírio que sofria. O barqueiro vinha envolto em panos escuros, de forma que nem se podia enxergar suas mãos, nem rosto, nem pés. Agia de forma metódica, mas não mecânica, e o seu porte parecia tão assustador que se poderia temer que fosse algum monstro fantástico nadando naquelas águas estígias.
Mas, apesar de ameaçador, era apenas o piloto de um batel em um mar irreal no qual estávamos, de alguma forma, vivendo um pesadelo. Fosse o que fosse estávamos indefesos no frio e desorientados. Nada tínhamos contra o desconhecido, a não ser ave-marias e salve-rainhas que Jurema começava a desfiar da forma atabalhoada como rezam os desesperados. Muito comunista ela…
O batel chegou à areia. À luz da lanterna precária percebemos melhor o hábito monacal escuro, de capuz caído sobre a face. Do corpo do ser que assim se vestia, a única parte real que se via era uma enorme e negra barba que voejava, desgrenhada, soprada ao vento daquele lugar. Depôs os remos dentro do casco, desceu, molhando os pés naquela água que não brilhava com a luz que a atingia, e arrastou o batel para a areia. Então ergueu a cabeça, deixando-nos ver brilhando, dentro do negrume mais acentuado oculto sob o capuz, uma solitária cintilação, ligeiramente mais avermelhada do que nossos olhos julgavam confortável.
O barqueiro então tateou dentro de uma dobra de sua vestimenta e de lá extraiu uma sacola de pano tão ordinário quanto as luvas que lhe ocultavam as mãos e gesticulou imperceptivelmente como se virasse a palma da mão esquerda para cima. Então percebemos que não estávamos sós.
Por alguma razão não percebêramos ainda nenhuma outra voz, mas naquele momento, tão logo o barqueiro fez o seu gesto, sentimos o estalar como de passos na areia, o ruflar de tecidos ao vento, e logo uma numerosa multidão começou a passar por nós, sem sequer um esbarrão em nossos ombros. Pessoas silenciosas e inodoras, que caminhavam sem pressa, dirigindo-se ao batel sem arrastar os pés no chão, sem olharem em torno, parecendo até que não se moviam, mas apenas deslizavam no ar. E aqueles estalidos de grãos de areia cresciam em nossos ouvidos como se fossem outra coisa.
Nenhuma das pessoas deram mostra de importar-se conosco ou com o nosso atraso. Nenhuma sequer suspirava, todas estendiam os braços em direção ao barqueiro, como para entregar algo. Não contei quantas foram, mas embarcaram bem mais do que aparentemente o batel exíguo suportaria, e mesmo assim ele não pareceu afundar na água densa de tão escura.
Logo imaginei que deveria haver mais bateis ocultos na treva, talvez com suas lanternas apagadas, ou talvez a neblina excessiva que adensava aquela escuridão ao nível do mar estivesse me impedindo de ver as outras embarcações. Essas tentativas de racionalização começaram a me cansar, como se os meus sentidos começassem a não valer mais.
De alguma forma, supus que também deveríamos embarcar. Fosse qual fosse o destino da barca fundeada pouco além, somente nela teríamos respostas sobre nossa situação, coisa que na praia, sozinhos, dificilmente encontraríamos. Jurema não concordou, absolutamente:
— Sérgio, tenho medo desse barco. Vamos ficar na praia e esperar.
— Que bobagem, Juju. Prefere ficar sozinha nesta praia estranha, sem saber onde estamos? Venha! O que pode dar errado?
— Alguma coisa me diz que não devemos embarcar. Vamos ficar mais um pouco na praia. Talvez o dia nasça, talvez algo aconteça.
— Tudo bem, se não quer ir. Mas ao menos perguntemos ao barqueiro alguma coisa que ajude a entender o que está havendo. Por que o medo?
Assim dito, Jurema concordou em me acompanhar. Aproximamo-nos com a naturalidade que notáramos nos outros, buscando embarcar. O piloto, no entanto, estendeu seu braço diante de nós, oferecendo uma barreira intransponível como uma cordilheira:
— Pague o preço — ele disse, com uma voz estranhamente carregada nas consoantes, que tinham o peso de estampidos, e alongada nas vogais, de um tom anasalado como se não conseguisse dividir o fluxo de ar corretamente.
Compreendi, então, porque os passageiros ao embarcar estendiam as mãos em direção ao piloto, e ficou evidente a função da bolsa que ele segurava na mão esquerda.
— Qual é o preço? — eu perguntei.
Ele não respondeu. Dentro das sombras projetadas pelo capuz brilhava alguma segunda coisa líquida e sutil. Um cheiro estranho, ardido e resinoso se desprendia de todo ele.
— Diga-me qual é o preço, ou não poderei pagar.
— Somente podem embarcar aqueles que têm seu preço.
E tendo dito isto, voltou-nos as costas e empurrou o barco para a água. Qualquer tentativa de atitude física desmaiou em meus planos quando vi a facilidade com que seus braços empurraram um batel grande o bastante para caber todos que haviam entrado. Era uma criatura quase monstruosa de tão forte. Intimidadora. Talvez monstruosa mesmo. Ou talvez apenas deformada por nossa percepção exaltada, ou alterada.
O batel entrou no negrume do mar e o som dos remos foi diminuindo até, por fim, ser trocado pelo arranque metálico. Então nossos ouvidos, já treinados conseguiram ouvir um som, não de motor, mas de algo muito diferente, de algo que singrou aquele mar, afastou-se de nós, deixou-nos sós naquela medonha praia, abandonados a coisas que haviam saído de nossas preocupações quando soara a buzina.
— Acho que vi um brilho metálico lá, refletindo a luz da lanterna. Pode ser um cromado do Aero Willys — observou Jurema, numa tentativa de me chamar de volta à racionalidade. Dei dois passos na direção apontada por Jurema, mas me detive:
— Não posso ir. Se for, me perco de você.
— Então vou contigo. Tenho medo desse mar.
— O que pode haver de maligno no mar, ora bolas! Só se forem tubarões!
Caminhamos na direção do brilho imaginado por Jurema. Pisando devagar, com o cuidado de testar por sumidouros de areia movediça, buracos, cacos, caranguejos ou coisas piores. Coisas que ferissem, ou que… nem era bom pensar. Suponho que andamos uns dez minutos, lentamente, talvez vencendo mais que duzentos metros. Não encontramos nem carro e nem sinal do fim da praia. Sequer mudança de inclinação, fazendo parecer que era uma praia absolutamente plana, ou ao menos imensamente mais larga do que qualquer das praias no norte do estado do Rio; ou mesmo do Espírito Santo.
Obviamente não encontrar o Aero Willys foi um problema, um obstáculo intransponível contra o qual a dialética marxista se debatia. Cada passo dado na esperança de trombar com a carcaça de metal, sem encontrar nada, a não ser mais daquela esquisita areia que estalava como cinzas frias quando pisávamos, fazia as esperanças se confundirem mais.
— Acho que temos que voltar, Sérgio.
— Sim, sim. Voltar — meu tom de voz, quase rendido, deve ter agido de forma ainda mais depressiva sobre ela. Por muito tempo não a ouvi dizer coisa alguma. Voltamos mais devagar ainda, com a pressa dos que se dirigem para uma tortura.
Chegamos à praia mais enregelados, tristes e menos informados. Por indefinidas horas tentamos esperar amanhecer, mas não aconteceu isso e nem as nuvens grossas que roubavam as estrelas deram sinal de ceder. Seguiu a noite preta sem lua, o negrume dos céus tornando inútil minha infância de escoteiro: não podia ler as horas nas constelações.
Em quieto desespero e nervoso silêncio aguardamos quase uma eternidade sentados lá, usando apenas o escasso calor de nossos corpos como defesa contra o frio. Por fim ouvimos outro som de embarcação, esta em direção contrária. Da mesma forma que da vez anterior, ouviu-se o som de remos na água, outro batel que vinha em busca de quem na praia estivesse. Outro bem-vindo transporte até onde encontrar respostas.
Outra criatura envolta em obscuros mantos o trouxe. Apeou com um murmúrio que era ao mesmo tempo assustador, familiar, respeitoso e melancólico. Um cantarolar que parecia nada dizer em língua alguma, mas apenas evocava lembranças que eu julgava perdidas. Lembranças que certamente Jurema também recordou.
Bem poucos subiram. O piloto olhou em volta, ergueu a lanterna tão rútila e emitiu um cantochão imemorial em vez de voz, como se convidasse os perdidos a aproximarem-se. Não ousei fazê-lo: de algum modo não queria, ou não podia, seguir com ele. Era evidente já, em algum lugar de meu raciocínio, que se o fizesse seria uma viagem sem volta. Por isso eu me fixei no chão, segurei com força a mão de Jurema, que parecia querer ir.
Ele nos viu. Sem tirar um pé de dentro do batel ele nos mirou com a escuridão que tinha sobre os ombros, propiciada pelo albornoz que levava.
— Venham. Não posso esperá-los muito — disse numa voz que parecia a de um coveiro conversando na nave de uma igreja.
— Não vamos — eu disse — não temos como pagar o preço.
— É verdade. De fato não têm como. Mas venham. Há os que são, eles mesmos, o preço.
— Não vamos…
— Vamos, vamos! — Jurema me interrompeu.
— Não! — disse-lhe em um cochicho — não me cheira bem essa história de ir sem pagar. Jurema concordou e silenciou. O piloto deu de ombros.
— Muito bem. Mas se querem meu conselho, não se demorem aqui por muito tempo. Outro de nossos barcos não demora. Até lá, mude de ideia e embarque.
E assim dizendo, com certa dificuldade, empurrou o batel de volta para a água e remou para dentro da escuridão de piche que afogava nossos olhos, apagando a lanterna tão logo afastou-se da praia, como se temesse alguma coisa. Ao longe, novas luminosidades alaranjadas tremulavam no ar, delineavam a montanha que víramos mais cedo.
Uma nota de apreensão passou por minha mente naquele momento em que o piloto remava fazendo um marulho triste na água silenciosa, afastava-se por aquela escuridão inenarrável, murmurando sua cantiga arquetípica, até não mais se ouvir.
Permanecemos na praia por mais eternas horas, ou minutos. A noite continuava, sem indício de aurora ou sequer a lâmpada de um avião passando. O tempo era frio, uniforme como o ar de um porão fechado, e não havia mais vento, em lugar dele crescera silêncio, mais ou menos como aquele que surge na rua de uma cidadezinha quando acabou de passar a primeira rajada de chuva, brilhou o relâmpago e ainda vai ribombar o trovão.
A praia começou a se encher de outra gente. De todos os lados chegavam passos secos que soavam na na areia como patas de algum animal de pés peludos. Meus olhos, há tanto tempo acostumados ao escuro, quase podiam vê-los. Não divisei muitos, apenas os mais próximos, mas a multidão que vi era como uma plantação de pequenos brilhos em pares, mas alguns brilhos vinham em trios, outros em grupos, raros eram solitários… Esses me faziam sentir um arrependimento terrível de não ter ido no barco anterior.
Aqueles que estavam mais perto eram em sua maioria pessoas simples, normais, muito velhas quase todas. Tinham rostos amolecidos pelas pancadas do tempo e não vinham de mãos vazias: carregavam pacotes que continham moedas, pedras, joias, coisas disformes e estranhas também, tudo parecendo pesar muito. Eram tão silenciosos quanto os primeiros, pareciam evitar dolorosamente usar a voz. Eu me sentia feliz que assim fosse: não queria ouvir que tipo de sons viriam das fileiras de trás, daqueles lugares onde via aqueles estranhos alinhamentos de olhos.
— Está pensando o que estou pensando? — perguntei num cochicho quase inaudível.
— Tenho medo também — disse Juju.
— Não é isso. Refiro-me às bolsas desses infelizes.
— O que quer dizer, Sérgio?
— Vamos expropriar estes burgueses de parte de seu patrimônio e usar para pagar nossa passagem. Assim não precisaremos de abusar de nenhuma benevolência.
A simples perspectiva de haver algo prático a se fazer reacendeu em Jurema o fogo revolucionário. Já não desfiava mais as ave-marias e salve-rainhas, recuperara o jargão do movimento e pensava em todos os conhecimentos de guerrilha urbana que tinha em mente:
— Companheiro, boa ideia. Mas não vamos nos separar. Vamos juntos, de mãos dadas, porque tenho cada vez mais medo.
De mãos dadas, casualmente, como dois namorados, saímos no meio da multidão, como se tivéssemos destino, sempre evitando aproximarmo-nos de onde houvesse qualquer alinhamento de olhos que fosse diferente de um par simétrico. Sempre que algum maço de notas ou saco de moedas aparecia à vista, subtraíamos uma cédula, ou um níquel. Era tão fácil quanto roubar mangas do vizinho. Por fim, saímos de dentro da multidão para contar o resultado da expropriação: dez cédulas ásperas e grandes e seis moedas que não reconhecíamos ao tato. A escuridão nos impedia de saber quanto fora a pilhagem, mas a facilidade de serem números pares facilitou as coisas:
— Cinco notas e três moedas para cada um?
— Correto, companheiro — e isto dito, ficamos combinados de pegar o barco seguinte, conforme dissera o segundo barqueiro.