Tardou ainda por algum tempo incontável, mas não demasiado que nos desesperasse. Soou uma outra buzina de navio indo para o mesmo lado do primeiro. Ouvimos o já conhecido chapinhar de pás, sentimos o farfalhar das roupas da multidão, talvez ansiosa, acendeu-se a trêmula luz vermelha de uma lanterna e o batel encalhou na areia. Desceu o barqueiro vestido da mesma maneira monacal que os anteriores, o rosto recoberto pela sombra de uma dobra de tecido — e dentro dela um brilho desagradavelmente avermelhado e solitário.
As pessoas que estavam na praia se dirigiram até ele, automaticamente e sem pressa. Passavam devagar, depositando o que levavam na bolsa que ele tinha à cinta. O barco, como da primeira vez, não parecia reclamar do peso. Ao contemplar a cena, eu sentia temerariamente perto aqueles grupos de olhos que abominara da primeira vez que vira. Eles, mais do que qualquer outra coisa, me comandavam a criar coragem e embarcar, mesmo tendo medo de que também embarcassem.
Por fim, quando a maioria deixara a praia, cresceu demais o medo dos grupos de olhos e resolvemos subir. Aproximamo-nos do barqueiro, porém, de uma maneira muito irregular, a passos quase claudicantes. Ele abriu uma risada obscena ao ver-nos, mostrando uma leira desagradável de dentes pontiagudos e amarelados. Estendeu a mão para receber o preço e logo nos indicou o caminho, como um porteiro de hotel a um hóspede inesperado.
Subimos. O batel oscilou com nosso peso, fazendo com que vários rostos se voltassem, inclusive o do barqueiro, que teve alguma dificuldade para empurrá-lo de volta para a água. Depois disso, o batel não reclamou mais da nossa presença, deslizou facilmente pela água, impelido pelas remadas desferidas pela força impressionante daqueles braços inumanos. O batel, então, oscilou, indicando que estava solto sobre a líquida extensão daquelas águas infernais.
Ele remava de forma decidida, como um velho e curtido marinheiro. O batel se movia muito devagar, mas de forma perceptível, sobre a água densa e calma. Tive a curiosidade de provar sua natureza, estendendo a mão em sua direção. O piloto o percebeu, nada disse. Apenas me devotou instantes de atenção. Dentro da escuridão que era sua face, notei o brilho dos dentes anunciando um sorriso mau.
Levava a mão em direção à água, com as toneladas de receio que a Noite recomendava. Cada milímetro que meu braço avançava era mais pesado que o anterior. Sentia como se estivesse tentando empurrar uma montanha. Não porque estivesse realmente denso ou frio, apenas porque um medo desmedido me assaltava e crescia exponencialmente a cada centímetro de avanço. Já podia pressentir a umidade salobra que eriçava os pelos das costas da mão, mas não podia sentir água alguma. Então, de repente, alguma coisa brilhou no fundo de minha mente — intuição, aviso de um mane familiar, algo assim. Retirei o braço com toda a rapidez que pude imaginar, a tempo de salvá-lo de algo que saltou das profundezas, espalhando gotas geladas pelo ar, alguma coisa que subiu e caiu de volta com um baque surdo e estreito. O barqueiro riu:
— Não faça isto outra vez, garoto — mas não era preciso que o dissesse. Alguma coisa berrava dentro de mim que não deveria, jamais, de jeito nenhum, tentar aquilo de novo.
Chegamos a um navio horrorosamente recoberto de líquenes e mofos de toda espécie. Estava fundeado meio adernado e oscilou quando o barco começou a ser içado conosco dentro, mas por fim se equilibrou.
Estava cheio de uma sorte de gente de olhar estúpido e cansado. Quase todas muito velhas ou de aparência doentia. Passamos por um grupo especialmente catatônico, que pareciam pacientes de uma UTI ainda entubados, e fomos nos alojar junto a um grupo de jovens que conversavam com certa animação, sob uma tênue lâmpada de luz arroxeada que, estranho, da praia não se avistava. Mas mesmo neles pesava o gelo de decadência, o hálito de derrota. Era como estar entre as múmias de um museu de terrores ancestrais.
— Que diabo de navio é esse? — perguntei, tentando ser engraçado.
Um dos jovens, talvez o mais feio, mas o único que parecia capaz de sorrir, respondeu:
— O navio do diabo, ora.
Tentei rir também, mas não pude. Meu ceticismo estava trôpego, o materialismo histórico deixara de ser uma possibilidade. Olhei à minha volta e uma agonia infinita começou a tomar conta de mim, risadas hediondas ressoavam nos porões da embarcação, mãos duras, ou patas, batiam no convés, provocando-me, fazendo o arrepio da espinha aumentar, eu quase tendo vontade de pular para não sentir tão perto de meus calcanhares aquelas batidas tétricas.
De onde vinham a noite eterna, a ausência de estrelas, a fantástica tropa de deserdados que se transportava naquela embarcação esculhambada? Como explicar a pantomima melancólica que tantas pessoas desempenhavam, as misteriosas e ferozes coisas que nadavam na água que o navio singrava? Aquela praia larga demais para ser de verdade? Se não fosse mesmo o navio do diabo, era um pesadelo muito real, ou uma dessas experiências que os americanos dizem que acontecem com quem está morrendo.
— Onde estamos? Fala sério.
— Estamos na Barca do Inferno, amigo. Eu nunca falei tão sério — atalhou um idoso de barba meio malfeita e meio arrancada. Vamos na Barca que atravessa o Mar da Morte levando as almas que chegam à Praia do Limbo.
— Levando para onde?
O rapazola se divertia, como se nada daquilo o atingisse:
— Para Dite, a metrópole de Lúcifer. Lá.
Apontou com o seu dedo magro a montanha onde ocasionalmente relampejava. Assim dita, a frase parecia casual , mas em mim ela ecoava de uma forma muito diferente. Jurema aproximou-se a tempo de ouvi-la perguntar o que significava tudo aquilo. Engoli um pigarro maior que uma bola de tênis. As coisas começavam a criar forma em meu raciocínio. Eu ainda hesitava, sem querer dar uma resposta:
— Mas, tinha outro barco. Um indo na direção contrária. Quantas linhas percorrem o mar?
— Ah, sim, claro. A Barca do Purgatório.
Alguma outra coisa acendeu dentro de mim, com a percepção de que algo estava muito errado, muito mesmo. Jurema interrompeu minhas comiserações objetivamente perguntando o que eu teria acabado por perguntar ao fim da hesitação:
— Estamos no inferno?
— Não, não. Ainda não. Isto aqui — o homem fez um gesto amplo, querendo abarcar toda a invisível distância que nos engolfava — é o Limiar, ou como preferirem, o meio-termo entre os mundos. Este é o mar da morte, os que o cruzam não retornam. Lá era o Limbo propriamente dito, o lugar das almas que ainda estão indecisas.
— Explique essa história direito, estamos mortos?
— Talvez. Ou talvez não. Enquanto estavam no Limbo certamente ainda estavam vivos, ou só recém-mortos. Mas ainda se podia voltar. Este barco os está levando além do Limiar, que é precisamente Lá — e ao dizê-lo, apontou para um trecho de mar à frente onde brilhava palidamente um de fogo-de-santelmo.
— Quero voltar! — gritou Jurema.
— Eu também, Jurema, mas como?
— Vocês não vão voltar! — gargalhou o jovem feioso, cuja face, àquela luz tão desbotada, se revelava nalmente, dotada de uma estranheza que eu não sabia explicar — vocês estão na Barca do Inferno, acabou a linha para vocês!
— E a outra embarcação? Como faço para entrar nela?
Um velho vestido como o sacerdote de alguma igreja minoritária — e desconhecida — tomou a palavra e me explicou:
— Agora não dá mais, já fez a sua escolha. Todos podem entrar de graça na Barca do Purgatório. Só não entram os que sabem ser culpados. Porque sabem que, mesmo indo aos portões do Éden, os seus pesados corações não permitiriam que suas almas subissem aos céus, montadas em borboletas. Aqueles que trazem o peso de uma vida de erros só conseguem entrar nesse barco, feito para suportar o peso de pecados, pagam o peso de seus erros como tarifa e chegam leves ao Inferno, onde passam uma eternidade entre seus semelhantes. Somente no inferno os maus conseguem a paz de espírito, sofrendo a exclusiva companhia de outros como eles, a guerra eterna de cada um contra todos e todos contra cada um, alianças que nunca se mantêm, objetivos que nunca são concluídos pois estão, todos, devotados a destruir, a sabotar, a impedir.
Em algum lugar dentro mim eu gritava um “puta-que-o-pariu” e lágrimas imateriais escapavam aos borbotões de meus inexistentes olhos. Uma vertigem me fazia enjoar:
— Preciso sair desse barco!
— Esqueça isso — repetiu o feioso jovem — desse barco você só sai a nado!
A lembrança do que ocorrera durante o transbordo no batel me fez entender que esta não seria uma opção: havia algo na água, algo que definitivamente metia medo. Mas Jurema não notara nada do que me acontecera então, distraída em seus pensamentos. Não sei se por desespero ou pela maldosa sugestão daquele cara detestável, ela virou-se e saltou na água tão rápido que não tive tempo de gritar-lhe que não o fizesse.
Escutei o baque de seu corpo na água, e no silêncio daquela cavernosa escuridão as suas braçadas se ouviram, rápidas. Logo outro som apareceu, maior, mais forte. Alguns indícios de luta, os sons desapareceram, substituídos por outro, um estalo parecido com o de uma toalha molhada agitada no ar. Uma lufada de vento passou, e então apareceu, caindo da profundidade preta que se espalhava sobre nós, uma fantástica criatura alada de corpo vagamente humano trazendo Jurema em seus braços, com algumas marcas de feridas, especialmente um par de pequenas perfurações na altura do pescoço. Estava imóvel, aparentemente sem consciência de si. Foi acomodada pela criatura sobre um rolo de cordas naquele canto do tombadilho — e nenhum dos passageiros ousou aproximar-se dela. Nem eu.
A visão destes fatos me abateu totalmente. Percebi que era inútil tentar qualquer coisa e me conformei em enfrentar uma eterna e abissal tristeza. As gargalhadas de alguns dos passageiros não soavam como sons de gargantas humanas, mas como maquinações sobrenaturais de seres desprovidos de piedade. E quanto mais olhava para Jurema, menos vontade tinha de qualquer coisa, parecia que já ansiava pelos suplícios futuros.
O barco se aproximava de uma margem, pouco além do fogo-de-santelmo. Ali brilhava a luz avermelhada de uma cratera de vulcão, iluminando precariamente uma praia de areia negra onde pobres infelizes se exauriam, escravos, em tarefas estúpidas como rolar pedras ou suportar vergastadas. Eu me agarrava à amurada como se fosse meu último elo com a realidade e Jurema, pobrezinha, desesperada, envolvera-se em posição fetal e exprimia-se em convulsões terríveis.
O rapaz feioso com que conversara, de repente, despiu sua camisa, revelando em suas costas um horrível par de membranosas asas, semelhantes às de um morcego. Da mesma forma outros dos passageiros o fizeram e começaram a bater essas asas pestilentas, como se quisessem voar. Um coro de dezenas de vozes roucas de barítono gargalhou malevolamente e eu vomitei uma refeição que meu corpo comera. Minha cabeça girava como uma piorra e eu não conseguia concentrar o raciocínio em coisa alguma, como se estivessem me drogando, batendo ou me fazendo morrer, sozinho, em um lugar distante e solitário onde ninguém velaria meu cadáver. Quando os seres alados voejaram sobre o barco, perdi os sentidos, percebendo o cheiro de seus corpos.
Então, de repente, fez-se a luz. Um policial rodoviário massageava meu peito, uma enfermeira punha soro em minhas veias. Vultos de pessoas transitavam em volta, mas eu os enxergava como se fossem folhas de celofane agitadas ao vento, e suas vozes eram como se estivessem além de uma parede. Vomitei de novo, uma enfermeira limpou meu peito. Ergui a cabeça e consegui me ver: estava aparentemente bem. Havia sido removido das ferragens e jazia em uma maca. Tentei mexer os dedos dos pés para certificar-me deles e senti alívio ao perceber sua fricção contra o solado da bota. Sem vísceras à mostra, sem grandes fraturas. Apenas um golpe na cabeça e um corte não muito extenso sobre o peito. Para acidente tão grave, as consequências eram pequenas.
— Jurema?
Não ouvi resposta. Tentei mover a cabeça, mas meu pescoço doía demais. O guarda rodoviário terminava de fazer as bandagens em meu peito. Reuni minhas forças, apertei a garganta e tentei gritar. Tudo o que consegui produzir foi um leve sussurro:
— Jurema?
O policial me olhou. Trouxe a mão sobre meus olhos e os fechou. Não respondeu. Alguma coisa me foi dada para cheirar.
Acordei no hospital, amarrado à cama. Um homem de uniforme verde e capacete branco vigiava a porta do quarto. Eu estava sozinho.
— Jurema?
O policial ouviu e se aproximou. Era pouco mais velho do que eu, recruta da PE. Sua cabecinha de adolescente desaparecia sob o enorme capacete.
— O que disse?
— Jurema?
— Sua namorada?
Com apenas o aceno da cabeça, assenti. Ao fazê-lo, uma imensa tristeza me esganava. Ele fez o aceno oposto, me fazendo arregalar os olhos e perder o controle. Então, do fundo do esquecimento gritou a verdade que ainda não percebera e tive de soltá-la:
— Jurema ficou no barco! Jurema ficou no barco!
Debati-me, talvez pensando que, ao libertar-me das correias que me prendiam, pudesse de alguma forma minorar o sofrimento que me matava por dentro.
— Jurema ficou no barco! Jurema ficou no barco!
O soldado se desesperou também, despreparado para aquela reação tão brusca do homem que fora mandado a guardar. Recuou desajeitado, pôs a cabeça para fora da porta e gritou por ajuda, como um menino assustado:
— Enfermeira! O subversivo está louco!
Duas entraram correndo no quarto.
— Calma, calma! Está tudo bem! Tudo vai se resolver depois que falar com o delegado!
— Vocês não entendem! Jurema! Jurema ficou no barco!
— Que Jurema? Que barco? Vocês fugiram da blitz da polícia num carro!
— Vocês não entendem! Fui eu que levei Jurema para o barco! E ela ficou no barco! Eu saí e ela ficou! Por que foi que eu saí?
Chorava como nunca chorara na vida. As imagens da praia queimavam meus olhos como ácido e a culpa de ter induzido minha pobre amada a embarcar para o Inferno me davam uma vertigem que não passava. Meu coração batia pesado, o sangue corria tão apertado que eu ouvia o barulho da sua fricção contra as paredes das artérias. Uma enfermeira, a um aceno da outra, pingou algo em meu soro que me fez começar a amolecer. Então as coisas adquiriram tons leitosos, as tintas começaram a vazar pelos limites dos objetos e tudo se misturou como num imenso quadro abstrato, como se tivessem jogado terebintina em uma pintura.
Acordei de novo, já vestido, em uma sala escura. Estava amarrado a uma cadeira. Diante de mim um homem de bigodes louros. Sobre a mesa o seu quepe: Aeronáutica. Naquele tempo todos sabíamos reconhecer insígnias, uniformes, distintivos.
— O senhor é um homem de muita sorte, camarada Sérgio Fernandes.
— Jurema ficou no barco! — foi tudo quanto pude sussurrar.
— Ora, não seja infantil. Já faz duas semanas que o senhor só fala nessa Jurema. Rapaz, se ajeite, oxente. Ela morreu, infelizmente, mas agora tenha tenência de homem, pare de chorar que eu tenho até vergonha de bater num cabra chorão como você.
— Mas fui eu quem a pôs no barco! — insisti.
— Escute aqui, seu caga-n’água! Não tem nenhuma porra de barco na história! É melhor você parar de se fazer de louquinho, eu não tenho remorso de bater em maluco não…
— Jurema entrou comigo no barco. Só eu saí.
O louro bigodudo me deu um forte tapa no rosto. Não muito forte, o suficiente para me fazer ver estrelas. Os seguintes foram, aos poucos, ganhando força. Ele sabia progredir em violência com uma calma de sommelier, não desperdiçando o sabor dos momentos.
— Tome tenência de homem, cabra!
— Eu só queria que Jurema tivesse saído do barco…
— O único barco em que vocês estavam era o barco furado da subversão, rapaz. E agora ele afundou. Você está aqui comigo e tenho a missão de saber quem você é e o que estava fazendo naquele carro.
— Só eu saí, ela ficou. Foi tudo culpa minha.
— Muito bem, temos um subversivo que admite a culpa… — ele parecia rir, mas era impossível saber o que sentia — Diga-me, Sr. Fernandes. De que exatamente é culpado?
— Eu levei Jurema para o barco…
Alguma coisa bateu com tanta força em minha cabeça que eu perdi os sentidos.