Houve um tempo em que a epítome da injustiça poética era julgar o livro pela capa. Não só esse julgamento ficou mais difícil hoje, dada a proliferação das facilidades para produzir belas capas, como se tornou mais violenta a briga em torno dos acessórios. Afinal me parece que, no mundo editorial, faz-se de tudo para não ter que lidar com literatura, afinal [sic].
Por acessórios eu me refiro a tudo aquilo que se espera que os escritores façam, além de escrever. Não basta o cara escrever bem, ele tem que falar bem, tem que ter “boa aparência” (ehem), ser “descolado”, bem relacionado, etc. Talento histriônico faz falta: você pode ser convidado a fazer coisas como “cosplay” de seus personagens ou abanar o rabinho para ganhar um osso diante um editor (que nem sempre escreve, mas julga o que você escreve) ou dos leitores.
Tomei conhecimento hoje de uma entrevista do Rafael Draccon, responsável pelo selo “Fantasy”, da editora Casa da Palavra, dada ao portal G1, na qual esses conceitos adquiriram um caráter emblemático. Não é impossível que no futuro as pessoas mencionem que certa pessoa é “um draccon” do mesmo modo como se referem a “um romeu”, “um tartufo”, “um malasartes” ou outro personagem fictício que encarnou algum tipo de ideal. Claro que, de contrabando neste parágrafo, expresso minha dificuldade em acreditar que Rafael Draccon exista.
A fala dele expressa tudo que vai errado na literatura brasileira e mundial: a falta de criatividade, a coisificação do autor e de sua obra, a ênfase no acessório em vez do essencial, a primazia da promoção sobre o produto etc. Cada uma das falas de Draccon, sedimentadas sobre as vendas de centenas de milhares de exemplares, como o jornal enfatiza, contém um insulto a cada escritor desse país, mesmo àqueles que aceitam abanar o rabinho.
É preciso que sua história de vida e sua personalidade sejam tão impactantes quanto a fantasia que você criou.
Essencialmente isto quer dizer que Draccon não anda atrás de literatura, mas de pessoas que encarnem um estereótipo de autor “moderno”. Ele não seleciona bons textos, mas pessoas interessantes, mesmo que escrevam porcaria. Talvez escrever romances capengas seja um pecadilho se você souber fazer chover ou se tiver amputado o próprio braço para escapar da morte após um acidente num penhasco.
Esta busca do autor “impactante” é fruto do vazio existencial do público leitor para quem Draccon escreve e para quem seleciona livros. Uma juventude enjaulada, sem contato com a natureza ou com o contraditório, não quer o impacto apenas no terreno da fantasia, quer ter a sensação de que este impacto é real, encarnado na pessoa do autor, que viveu ele mesmo a história.
O que Draccon não sabe (pois, aparentemente, literatura não é algo que lhe interesse muito) é que essa postura não é nova. Ao longo de toda a história de nossa civilização autores que não eram tão impactantes quanto as suas obras foram sendo deixados de lado, enquanto outros ganharam notoriedade pelo próprio fascínio de sua personalidade. O autor “maldito” sempre existiu, nunca foi selecionado por editores como Draccon e muitas vezes só teve seu valor reconhecido postumamente. O que significa que gerações de leitores foram privadas da leitura de seus melhores contemporâneos graças ao gênio dos draccons de cada século.
Vida e personalidade interessantes significam uma vida e personalidade que não desafiem as convenções. Nos anos 1920 os cariocas não se interessavam muito por um negro alcoólatra e esquizofrênico que escrevia textos realistas inspirados nos ficcionistas ingleses. Como esse negro tivera a sorte de passar num concurso público, pôde custear a publicação dos próprios livros, e por isso hoje nós o conhecemos. Se dependesse dos editores de sua época, ele jamais chegaria aonde chegou — e nem foi longe. Para usar uma frase que anda na moda, Lima Barreto não tinha “cara de escritor” e sua vida e personalidade não eram impactantes.
Vida e personalidade interessantes significam também uma vida dedicada a ser interessante. As pessoas que têm de estudar e trabalhar, levando vidas “comuns”, “suburbanas” ou “caretas” não serão nunca interessantes. De início, Rafael Draccon já está excluindo a quase totalidade dos autores amadores, que não têm tempo para desenvolverem um lado interessante.
Isso não deixa de ser a expressão de um ideal literário elitista, cujo modelo é o próprio Paulo Coelho, um sujeito que nasceu em berço de ouro, praticamente nunca trabalhou na vida, teve a sorte de ser amigo e parceiro de Raul Seixas no momento de maior glória e depois usou todo o dinheiro que herdou e ganhou para promover seus livros e seu estilo de vida, criando um mito em torno de si. Algo que é impossível exigir de alguém pobre e nascido no interior. Essa pessoa não é interessante. Ser pobre não é interessante. O Brasil não interessante. Os EUA e Nárnia são.
Infelizmente Draccon atende a um público. Ele não tira essas ideias de trás da orelha: ele lê os conceitos e preconceitos daqueles que compram livro nesse país. A imaturidade de Draccon é calculada para dar pasto a esse tipo de ideias imaturas e superficiais que são a essência de nossa modernidade.
Os adolescentes são ávidos, estão sempre passando por descobertas e questionamentos. Para eles, a literatura fantástica é uma metáfora do que está acontecendo em suas vidas. Por isso, o escritor precisa ter um conteúdo para transmitir e precisa saber se apresentar em público também. Esse autor introspectivo, que passa o dia dentro de casa escrevendo, não existe mais. Rubem Fonseca, hoje, não seria publicado. Ele é de outra escola, outra época.
Talvez o maior dos erros de Draccon esteja neste parágrafo. Ele escreve para um público, o adolescente, avalia este público, mas ousa, com base nisso, tecer um comentário sobre o público em geral. Os autores que escrevem para adolescentes sempre foram um tipo de bicho diferente em relação aos demais, ainda que houvesse trânsfugas entre os campos. Quando o Draccon diz isso do Rubem Fonseca ele cria uma indagação: está achando que Rubem Fonseca é um escritor para adolescentes, ou que a literatura para adolescentes substituiu a literatura como um todo? De certa forma, vivemos, sim, um processo de infantilização dos indivíduos, cada vez menos autônomos, cada vez mais dependentes de soluções prontas, cada vez menos ávidos por novidades reais, e mais propensos a pequenas mudanças. Isso se nota no próprio gênero fantástico que, com raras exceções, vem requentando há anos uma série limitada de temas e formas — até mesmo quando tenta inovar, como nessas tentativas de adaptar o folclore brasileiro segundo o jeito anglo-americano de fazer fantasia.
Participo de eventos de literatura de fantasia no Brasil todo e estou sempre acessível na internet. Se o cara ainda não chegou até mim, é porque ele não está pronto para o mercado.
Os gregos tinham um nome bacana para esse sentimento: hybris (lê-se úbris). A convicção de estar no centro das coisas. Foi esta confiança que levou Ícaro a ir perto demais do Sol, que fez Ulisses desafiar Poseidon e vagar dez anos perdido pelos mares, etc.
Draccon acredita que se alguém não chegou até ele é porque não está pronto para o mercado. Há duas coisas espantosas na frase. Primeiro, tratar o autor como uma mercadoria. Segundo, colocar-se no epicentro da vida literária, como uma espécie de Ilha Ogígia em que todos os gregos retornados de Tróia tem de pousar a caminho de casa. Uma posição receptiva e cômoda. Gostaria que meus leitores, porém, entendessem que Draccon está se referindo exclusivamente ao seu nicho. O problema é que este nicho, a literatura fantástica, adquiriu um volume excessivo, um ar de tumefação. Enquanto cresce o tumor da fantasia, o corpo da literatura padece. É esta tumescência que faz com que pessoas vinculadas a um mercado específico, e que só conhecem um raio pequeno do mundo, se coloquem como centro dele e queiram ditar regras para o resto. Os autores e editores de LitFan, que tanto sofreram com a crítica e as imposições da literatura mainstream não deviam tão avidamente comportar-se como os seus antigos algozes.
Longe de mim dizer que a literatura fantástica não deva existir, ou que os seus leitores tenham algum tipo de inferioridade. Apenas acho que ela tem um relevo excessivo, e neste excesso, sim, enxergo um sinal de crise, tal como o crescimento de um gânglio sugere a existência de algo errado no seu corpo. Tal como as células de um câncer se propagam, sequestrando recursos do organismo para a construção de mais células inúteis, a literatura fantástica se propaga, impondo seus valores, sequestrando autores, sufocando espaços, homogeneizando a literatura como um todo (você já ouviu falar da iniciativa “Jornada do Herói”, meu jovem?), e criando homens como Rafael Draccon, que falam como ditadores de seus feudos porque acreditam que aquilo que representam está substituindo aquilo que no passado foi representado por gente que ele não publicaria.
Fazemos uma varredura da vida online da pessoa. Se houver um post sequer dela falando mal de outro autor ou comprando briga na internet, ela é cortada na hora.
Há tanta coisa errada nesta frase única que é até difícil começar. Vou tentar me organizar. Primeiro, censura. Rafael Draccon “corta” autores que tenham em algum momento feito críticas a outros autores. Ele seleciona, intencionalmente, cordeiros e não pessoas de caráter forte. O que faz sentido, visto que ele não quer pessoas de caráter e talento, mas sujeitos descolados e “impactantes” a quem ele possa controlar. Obviamente um autor mais competente que ele não se dobrará às suas dicas e toques.
A ousadia intelectual e a polêmica, que já foram a marca da literatura, se tornaram qualidades indesejáveis. Polemizar é ruim para os negócios porque todos os autores são produtos e receberam investimento. Se você fala mal de um produto, dá prejuízo a um editor que nele investiu. Então é preciso proteger quem recebeu investimento, para que dê retorno do capital. Você pode ter que conviver dentro da editora com um autor horrível, então é melhor aprender desde já a não falar mal dele.
A mensagem que Rafael Draccon passa para os aspirantes a escritor é a mais nociva possível. Sejam covardes, sejam alienados, não critiquem, não tenham ideias próprias, não sejam propositivos, não critiquem. Rafael Draccon coloca como modelo de autor ideal um indivíduo desprovido de caráter, um sujeito intelectualmente neutralizado. Se ele faz isso com quem critica outros autores, imagina o que não faz com quem tem ideias políticas fortes. Duvido que ele publicasse um Jorge Amado, que vendeu bem, mas era comunista e ateu.