Duas notícias bombásticas marcaram a Feira Literária Internacional de Frankfurt, esta semana. A primeira foi o épico discurso de Luiz Ruffato (conterrâneo meu, ó que orgulho!), discorrendo sobre o ser escritor em um país como o Brasil. A segunda foi a revolta daquele a quem todos amamos, ou amamos odiar, o alquimista de ideias, mago pluvífero, doutor em ventriloquia cardíaca e etc.
Da primeira notícia, nada declarar pois seria supérfluo fazer mais do que recomendar a leitura do texto registrado pelo autor daquela obra genial, mas dura de ler, “Eles Eram Muitos Cavalos”. Prefiro, claro, dedicar-me a analisar as declarações e atitudes do mago das letras desde que se viu na lista dos indicados pelo governo para a representação pátria na terra da salsicha.
Paulo Começou expressando seu estranhamento pela lista, declarando não conhecer a maioria dos indicados, pondo em dúvida seu papel na literatura nacional:
> Dos 70 convidados, só conheço 20, nunca ouvi falar dos outros
> 50. São, presumivelmente, amigos dos amigos dos amigos. Um
> nepotismo. O que mais me aborrece: existe uma nova e excitante
> cena literária no Brasil. Muitos desses jovens autores não
> estão na lista.
Toda lista é polêmica, é claro. Toda lista terá “penetras”. Eu que estou acostumado a falar mal de concursos sei bem que toda seleção de escritores é meio arbitrária, mas sempre dá para manter a legitimidade da coisa com uma “massa crítica” de nomes legítimos, cada penetra será contrabalançado por outros inquestionáveis. Portanto, longe de mim dizer que a lista de indicados para a feira literária de Frankfurt necessariamente represente o que existe de melhor em nossa literatura. Mas a afirmativa de Paulo Coelho soou muito mal.
Pegou mal porque é falaciosa. Ele usa seu conhecimento como medida para a legitimidade dos nomes nela presentes, o que soa engraçado, para dizer o mínimo. Em primeiro lugar não existe nenhum autor que possa reivindicar o direito de ser um “metro” do valor do trabalho literário alheio de forma tão absoluta. Em segundo, o Paulo Coelho não se notabiliza por ter uma cultura literária digna de nota, mas por escrever livros simples e de fácil leitura, que vendem muito. Ele é só autor de “best sellers” e não um semiólogo pós-doutorado.
A opinião de Paulo Coelho sobre o valor literário de outros escritores tem o mesmo valor da opinião dos produtor do vinho Sangue de Boi num evento de enólogos. Sangue de Boi, assim como a literatura de Paulo Coelho, é um produto de massas que se notabiliza por vender muito, não por ser referência de qualidade:
> Dos 70 tipos de vinho desta feira, só conheço 20, nunca ouvi
> falar dos outros 50. São, presumivelmente, feitos por amadores
> em caves de fundo de quintal, indicados por amigos. Um
> nepotismo. O que mais me aborrece: existe uma nova e excitante
> variedade de vinhos nacionais, e esses não estão na lista.
Não queria ofender os honrados produtores do Sangue de Boi, que já regou muitas noites de minha juventude alcoólatra, mas é obvio que ele não é o mesmo tipo de produto que um Casillero del Diablo, por exemplo, e nem vou falar de marcas mais arcanas, porque não sou um enólogo. Produtores desses vinhos populares sabem que competem num nicho diferente e não fazem presepadas. Diferente do Paulo Coelho.
Vocês podem me achar ridículo por dizer estas coisas a respeito de uma pessoa tão bem-sucedida quanto Paulo Coelho, mas se tiverem um pouco de boa vontade e acompanhar o meu raciocínio, entenderão que foi o próprio que se colocou em um papel digno de riso. Ainda mais porque o fez por pura “inveja”.
Inveja? — vocês devem estar perguntando — como um autor que consegue vender milhões de exemplares por ano pode ter inveja de quem só vende alguns milhares, ou nem isso? Gente que ele nem conhece?
Inveja, sim. E eu explico o porquê.
Quando Paulo Coelho se contemplou na lista de Frankfurt, sentiu-se ofendido pelo fato de nela estar em posição secundária. Único dela que escrevia “best sellers”, percebeu que sua presença era indesejada pelos organizadores do evento e que só estava lá porque deveria haver algum tipo de exigência de público ou a ideia de que seu nome atrairia visitantes… para conhecer as obras dos outros.
Constatou então que o seu nome ainda não foi engolido pelo “establishment” literário, e possivelmente nunca será. Mesmo vendendo livros aos milhões, continua sendo visto como um personagem secundário no universo literário, ignorado pela crítica, posto à margem dos currículos de estudos, tolerado apenas como um personagem curioso que atrai novos leitores.
Este entendimento lhe deu a dimensão exata de sua insignificância, mas esta constatação foi percebida por ele como um desprezo injustificado. As vendagens alimentam um ego que não aceita ser coadjuvante. Deve ter doído pensar isso, mas como dizia Buda, toda a dor vem do desejo. Paulo Coelho sofreu com esta ofensa porque pretende ser o que não é: um “literato”.
Há autores que são valorizados pela qualidade, pela inventividade, pela novidade, pela beleza, pela imprevisibilidade, pelo realismo, por qualquer qualidade que aos poucos se torna conhecida. Há autores vendem muito, e outros menos. A maioria vende bem pouco. Mesmo os que pouco vendem podem ser muito valorizados pela qualidade que se atribui aos seus textos e podem encontrar, desta forma, um meio de vida literário que as vendagens não sustentariam. O universo da literatura é bastante grande para caber vários tipos de carreira.
Mas há autores que apenas vendem muito. São os autores especialistas em “best sellers”: eles que se contentam em produzir obras que divertem muita gente. Não recebem nenhum reconhecimento da crítica literária, mas em troca vendem muito. São os que mais têm as obras adaptadas para o cinema e o teatro, e podem até chegar a ter reconhecimento, tardia ou postumamente. Não lhes importa que não sejam assunto de monografias: contentam-se com o caviar e os iates que a sua obra lhes proporciona através dos direitos autorais. Para esse tipo de autor, o “profissionalismo” literário, com todas as coisas gostosas e caras que proporciona, serve-lhes de consolo pelo Nobel que nunca ganharão. A troca é justa e, como diz o ditado britânico que vi num filme: “you can’t eat the cake and have it”.
Paulo Coelho poderia ser feliz como um autor desses e contentar-se com o apartamento de cobertura na orla do Rio de Janeiro, a mansão às margens do lago em Genebra e com o que mais tenha adquirido com os seus direitos autorais. Mas não, não lhe basta ser um dos maiores vendedores de livros do planeta: pretende ser reconhecido pelo que não é, um autor de “grande literatura” (aqui definida não como algo determinado mas como o que, por exemplo, costuma ser premiado com o Nobel e escolhido para representar o Brasil em Frankfurt). A mágoa de Paulo Coelho por não ser aceito no “Clube do Bolinha” não deixa de ser equivalente à do sapo que queria ir à festa no Céu.
Verdade seja dita, a pretensão coelhiana fica mais ridícula quando consideramos que ele praticamente não fez nenhum esforço em toda a sua carreira para atingir um patamar de qualidade que fosse aceito pela academia. Seus livros têm hoje mais ou menos os mesmos defeitos que os de vinte anos atrás. Não apenas o autor não evoluiu com a regência verbal e a pontuação, como tampouco passou a contar com melhor revisão de sua gramática. Sim, ele foi eleito para a caquética Academia Brasileira de Letras, mas muito antes dele esta instituição já havia destruído sua reputação, ao se curvar diante dos “talentos” de “autores” como Roberto Marinho, José Sarney, Aurélio Lira Tavares, Austregésilo de Athayde, Fernando Henrique Cardoso e Ivo Pitanguy; ao mesmo tempo em que desprezou nomes como os poetas Carlos Drummond de Andrade e Mário Quintana. A ABL já está marcada para sempre como a instituição que elege José Sarney mas pretere o Drummond por razões ideológicas. E em termos de atentados à língua pátria, José Sarney os cometeu mais graves, embora, possivelmente, menos numerosos (pela mesma razão de errar menos passes o time que tem 20% da posse de bola).
Esse desejo passivo de ser resgatado pela literatura, e ser aceito tal como é, sem precisar mudar, reflete o mesmo egocentrismo que o boicote à Feira de Frankfurt evidenciou de forma mais clara. Paulo Coelho imagina-se uma espécie de gênio incompreendido, reclama que ainda não tenham vindo buscá-lo, e tange a lira diante do incêndio da literatura universal declamando “que grande artista o mundo vai perder”. Quem se senta à espera das homenagens que merece não pode reclamar de nada. E Paulo Coelho até que recebe homenagens demais! E ainda assim consegue estar insatisfeito com o que consegue.
E ressente-se da falta das homenagens que lhe negam, porque não se basta com todas as que já tem. Paulo Coelho, um dos literatos mais invejados do mundo, parece invejar que existam homenagens a qualidades diferentes das que tem (sim, ele tem qualidades). Se ele é o mais bem-sucedido autor brasileiro de “best-sellers”, fica magoado porque há homenagens a outras qualidades além das de vender. Então pega a si mesmo como exemplo, e vai medir o valor dos outros tendo por base o valor (único) que tem. Donde conclui que não são dignos de reconhecimento os autores que não vendem muito, que suas vendas escassas os tornam menos autores.
Mais do que desejar um reconhecimento que a sua categoria enquanto autor não merece, Paulo Coelho quer que tal reconhecimento se faça às expensas de escritores diferentes dele. Paulo Coelho deseja que se apaguem as estrelas de autores como Marina Colasanti, Luiz Ruffato, Miltom Hatoum, Patrícia Melo, Cristóvão Tezza para que se possa pôr no centro do palco os autores como ele, autores que vendem.
Tudo isto porque, com a agudeza de percepção que a idade nos traz, o velho mago percebeu que sua presença no meio dos autores não era senão uma concessão ao volume de leitores que tem. Concessão feita de má vontade porque não existe diálogo possível entre a obra rasa do mago que faz chover e a pretensão de profundidade que acomete a maioria de nossos estudiosos de literatura.
Logo após a bombástica recusa em participar da Feira de Frankfurt, iniciou um movimento para boicote o evento do ano que vem. Propõe-se a reunir 10 autores de sua escolha para participar de uma espécie de “comitiva pirata” em 2014:
> Ano que vem, me comprometo a levar 10 autores para Frankfurt.
> Não vai ser a lista do Brasil, vai ser a minha lista! E digo
> isso como futuro chefe de panelinha!
Os critérios para a inclusão na “panelinha” são simples, segundo o blogue Brainstorm9, que entrevistou o mago:
> Ele pretende estipular uma cota mínima de livros vendidos e
> selecionar os 10 mais relevantes. O conceito não é dele, a
> ideia foi dada por Eduardo Sphor (único dos citados que está
> na feira, por conta própria) e já foi tentada nesse ano,
> sem sucesso.
Em substituição a uma lista que inclui ganhadores de prêmios literários diversos, novas revelações, nomes consagrados e até mesmo a presença de autores de “best-sellers”, sem valor para a literatura tradicional; Paulo Coelho pretende escolher os “mais relevantes” (critério subjetivo) entre os que atingirem uma cota mínima de livros vendidos. Para um autor que criticou o “nepotismo” dos critérios de indicação para a Feira deste ano, o critério chega a ser cômico de tão incoerente.
Paulo Coelho tem todo o direito de gastar seu dinheiro, investir a sua fama como quiser, não podemos impedi-lo de fazer nada, somente se for ilegal. Mas quem goste de literatura tem quase obrigação de torcer para que este seu projeto dê com os burros n’água. Porque o projeto de Paulo Coelho é nocivo para a literatura brasileira, e é movido por dois baixos sentimentos: orgulho e inveja.
Orgulho porque, tendo lhe sido indicado um picadeiro lateral, pensou que isso era uma “falta de respeito” e resolveu partir para um boicote, denegrindo a imagem dos indicados e até mesmo a do país.
Inveja porque, vendo outras pessoas receberem homenagens que desejava, mesmo homenagens devidas a qualidades diferentes das suas, o mago simplesmente questionou o direito de tais qualidades serem as homenageadas.
Sua reação foi sectária, unilateral, antidemocrática. Manifestou o desejo da glória pessoal em detrimento da alheia. Não ficou inconformado pela falta de reconhecimento ao seu trabalho, mas porque o trabalho alheio foi reconhecido. A revolta não é contra a possível injustiça de não lhe homenagearem mais, mas contra terem homenageado outro. Se isto não é inveja…
Em sua mente egocêntrica, sua qualidade mais forte, a de vender os milhões de livros que vende, se sobrepõe às que outros possam ter. Alguém que vende milhões de livros não pode ficar fora da ribalta. Esta é uma mentalidade de senhor de engenho, que exigia a primeira fila da igreja na hora da missa, e se sentia ofendido quando algum incauto se sentava lá. Assim Paulo Coelho surtou, quando achou que o tamanho do palco não bastava para a grandeza de seu personagem. Foi assim que saiu de perto e disse que não brincava mais. E assim que decidiu organizar uma brincadeira sua, com as suas regras, com os meninos de quem gosta mais.