A pequena lanterna mal conseguia revelar toda a extensão daquele canal subterrâneo em que não havia mais sequer uma gota de seu fluxo pré-histórico. O fundo, profundamente erodido e pontilhado de rochas pontiagudas, tinha mais de mil metros de largura e o teto se curvava em direção a trevas impenetráveis. Explorando incertamente o fundo por uma curta distância, Haines e Chanler determinaram por sua descida gradual a direção que a correnteza seguira. Descendo nessa direção, caminharam resolutamente, rezando para que não encontrassem barreiras intransponíveis, ou precipícios de antigas cataratas que impedissem ou retardassem a saída no deserto. A não ser pelo perigo de serem seguidos, não conseguiam imaginar nenhuma outra dificuldade senão esta.
As curvas misteriosas do leito do rio os levavam primeiro para um lado e pois para o outro enquanto tateavam o caminho. Em alguns lugares a caverna se alargava e chegavam a praias amplas, escavadas em terraços marcadas pelo oscilar das águas. Acima de uma destas praias havia singulares formações que lembravam um tipo de fungo enorme que crescia nas cavernas abaixo dos canais modernos. Estas formações, que pareciam clavas de Hércules, erguiam-se a uma altura de um metro ou mais. Haines, impressionado pelas cintilações metálicas que emitiam sob a luz da lanterna, teve uma ideia curiosa. Embora Chanler protestasse contra o atraso, ele escalou os degraus rochosos para examinar um grupo delas mais de perto e descobriu, como suspeitara, que não eram florações vivas, mas estavam petrificadas e pesadamente impregnadas de minerais. Tentou arrancar uma, mas ela resistiu a todo o seu esforço de puxar. No entanto, batendo com um pedaço solto de pedra, teve sucesso em fraturar a base do talo, que caiu com um retinir de ferro. A coisa era muito pesada, com um inchaço na ponta que parecia mesmo uma clava, e seria uma arma muito efetiva em caso de necessidade. Ele quebrou uma segunda clava para Chanler e, assim armados, recomeçaram a sua fuga.
Era impossível calcular a distância que percorriam. O canal mudava a direção e serpenteava, descia abruptamente em certos lugares e em outros se partia em camadas que cintilavam de minerais alienígenas ou tinham manchas estranhamente brilhantes de óxidos azuis, vermelhos e amarelos. Os dois afundavam até os tornozelos em poças de areia negra, ou subiam laboriosamente barragens de rochas enferrujadas, imensas como menires empilhados. Frequentemente se detinham tentando febrilmente ouvir qualquer som que sugerisse uma perseguição. Mas o silêncio lotava o gélido canal, interrompido apenas pelo ruído e os estalos de seus próprios passos.
Por fim, com olhos incrédulos, viram diante de si o surgimento de uma luz pálida nas profundezas. Arco a arco, lúgubres como a garganta do Averno iluminada pelos fogos internos, a enorme caverna se tornou visível. Por um momento de exultação eles pensaram que estavam se aproximando da boca do canal, mas a luz adquiriu um brilho tétrico e inquietante, como as fornalhas flamejantes em vez da luz do sol penetrando uma caverna. Implacável ela se esgueirou pelas paredes e o fundo, empalidecendo o raio insuficiente da lanterna de Haines quando atingiu os espantados terráqueos.
Agourenta e incompreensível, a luz pareceu observar e ameaçar. Eles permaneceram assustados e hesitantes, sem saber se avançavam ou recuavam. Então, do ar inflamado, uma voz falou como se os repreendesse educadamente: a voz doce e sonora de Vulthoom.
— Voltem por onde vieram, ó terráqueos. Ninguém pode sair de Ravormos sem meu conhecimento ou contra minha vontade. Vejam! Enviei meus guardiões para acompanhá-los.
O ar iluminado não tivera nada para se ver e o leito do rio era populado apenas pelas grotescas massas e as atarracadas sombras das rochas. Então, cessando a voz, Haines e Chanler viram diante de si, a uma distância de três metros, a aparição de duas criaturas que não eram comparáveis a nada em toda a zoologia conhecida da Terra ou mesmo de Marte.
Elas se erguiam do chão rochoso até a altura de girafas, com pernas curtas vagamente similares às de dragões chineses e pescoços longos, espiralados como os nós de uma anaconda. Suas cabeças tinham três faces e eles poderiam ser as trimurtis de algum mundo infernal. Parecia que cada face era sem olhos, com línguas de chamas que saiam abundantemente das profundas órbitas abaixo das sobrancelhas oblíquas. Chamas também saíam em vômito incessante das monstruosas bocas de gárgulas que arreganhavam. Da cabeça de cada monstro um triplo pente vermelho fulgurava em pontiagudos dentes de serra, brilhando terrivelmente, e ambos tinham barbas que se desenrolavam em carmim. Seus pescoços e espinha eram cobertos de lâminas longas como espadas que diminuíam em fileiras de adagas ao se aproximarem das caudas pontiagudas e seus corpos inteiros, além de possuírem esse armamento temível, pareciam queimar como se tivessem acabado de sair de uma fornalha ardente.
Um calor palpável emanava daquelas quimeras infernais e os terráqueos recuaram apressadamente diante das manchas flutuantes, como retalhos de incêndio, que se desprendiam de seus olhos e bocas flamejantes.
— Meu Deus! Estes monstros são sobrenaturais! — gritou Chanler, abalado e confuso.
Haines, embora visivelmente assustado, se inclinava a uma explicação mais ortodoxa:
— Deve haver algum tipo de televisão por trás disso — ele disse. Embora eu não consiga imaginar como é possível projetar imagens tridimensionais ou como criar uma sensação de calor… De alguma maneira, porém, eu tinha a impressão de que nossa fuga era acompanhada.
Pegou um fragmento pesado de rocha metálica e atirou em uma das quimeras brilhantes. Mirado sem erro, o fragmento atingiu a fronte do monstro e pareceu explodir em uma chuva de fagulhas com o impacto. A criatura aumentou seu brilho e tamanho prodigiosamente, enquanto um silvo agudo se tornou audível. Haines e Chanler foram acuados por uma onda de calor capaz de queimar e os seus guardas os seguiram passo a posso pelo leito irregular do rio. Abandonando toda esperança de fuga, retornaram a Ravormos perseguidos pelos monstros através de areias traiçoeiras e junto às bordas e quinas.
Chegando ao ponto em que haviam descido ao canal do rio, viram que seu curso acima também estava guardado por mais dois daqueles terríveis dragões. Não havia outro recurso a não ser escalar os degraus até o túnel íngreme. Cansados de sua longa fuga e nervosos de um desespero acachapante, logo se viram novamente no salão externo, com dois de seus acompanhantes precedendo-os como uma infernal guarda de honra. Ambos ficaram paralisados pela compreensão dos horríveis e misteriosos poderes de Vulthoom e até Haines tinha ficado em silêncio, embora seu cérebro ainda estivesse ocupado em uma fútil e desesperada análise. Chanler, mais sensível, sofria todos os calafrios e terrores que a sua imaginação literária poderia infligir-lhe sob as circunstâncias.
Chegaram, por fim, à galeria colunada que circundava o vasto abismo. Na metade do percurso desta galeria as quimeras que precediam os terráqueos se voltaram contra eles subitamente, com um vomitar de chamas temíveis e, enquanto eles permaneceram paralisados de medo, as duas continuaram seu avanço em sua direção, com um satânico assobio de salamandras. Naquele espaço estreito o calor era como o do fogo de uma fornalha e as colunas não ofereciam nenhum abrigo. Do abismo abaixo, onde os marcianos labutavam perpetuamente, um trovão estupendo surgiu para assaltar ainda mais os seus nervos e a fumaça nociva foi soprada contra eles em anéis que se contorciam como serpentes.
— Parece que vão nos atirar dentro do abismo — Haines ofegava tentando puxar a respiração naquele ar ardente. Ele e Chanler se encolheram na presença dos monstros e enquanto ele acabava de falar duas mais daquelas aparições do inferno surgiram em chamas na borda da galeria, como se tivessem subido do abismo para tornar impossível o mergulho fatal que teria sido a única fuga.
Vulthoom – Clark Asthon Smith | Leituras Paralelas
Parabéns pela tradução!
Sei o quanto é difícil traduzir, pois também me enveredo por esses caminhos tortuosos traduzindo contos e livros pouco conhecidos ou ignorados na nossa língua inculta e bela.
Já traduzi Metropolis, algumas coisas de Phillip K. Dick e atualmente estou concluindo a tradução de A Desagradável Profissão de Jonathan Hoag de Robert A. Heinlein.
Bom trabalho, e continue assim! Lembre-se que sempre existirá alguém que ficará muito agradecido e será muito beneficiado com seu esforço!
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