Quase desmaiando, os terráqueos perceberam vagamente uma mudança nas ameaçadoras quimeras. Os corpos incandescentes passaram a perder o brilho, encolher e escurecer; o calor diminuiu, os fogos se apagaram nas bocas e olhos. Ao mesmo tempo, as criaturas se aproximaram com carícias nojentas, revelando línguas esbranquiçadas e olhos de ébano.
As línguas pareceram dividir-se… ficaram mais pálidas… eram como as pétalas das flores que Haines e Chanler tinham visto em algum lugar. O hálito das quimeras, como um vento suave, soprava sobre as faces dos terráqueos… e o hálito era um perfume frio e temperado que haviam conhecido antes… o perfume narcótico que os subjugara após sua audiência com o mestre oculto de Ravormos… Minuto a minuto, os monstros se transformaram em flores prodigiosas, os pilares da galeria se tornaram gigantescas árvores no glamour de uma aurora primitiva, os trovões do poço foram abafados até se reduzirem a um soluço distante como o dos suaves mares de costas edênicas. Os abundantes terrores de Ravormos, a ameaça de um destino sombrio, eram como coisas que nunca tinham acontecido. Haines e Chanler, esquecidos, se perderam no paraíso da droga desconhecida…
Haines, acordando ainda meio cego, descobriu que estava deitado no chão de pedra na colunada circular. Estava sozinho, e as quimeras flamejantes tinham desaparecido. As sombras do desmaio opiáceo foram rudemente dissipadas pelos ruídos que ainda subiam do abismo próximo. Cada vez mais consternado e horrorizado, ele se lembrou de tudo que acontecera.
Ainda tonto ele se pôs de pé, olhando em volta na semiobscuridade da galeria à procura de algum sinal de seu companheiro. A clava de fungo petrificado que Chanler carregava permanecia onde caíra de sua mão quando fora subjugado, bem como a de Haines. Mas Chanler sumira e Haines chamou-o aos gritos sem obter resposta nenhuma a não ser os ecos sinistramente prolongados pela arcada profunda.
Impelido por uma sensação urgente de que precisava encontrar Chanler sem demora, recuperou sua pesada clava e começou a percorrer a galeria. Parecia que a arma seria de pouco uso contra os serviçais sobre-humanos de Vulthoom, mas de alguma forma o peso metálico daquele porrete tranquilizava.
Aproximando-se do grande corredor que seguia até o centro de Ravormos, Haines ficou muito feliz ao ver que Chanler vinha ao seu encontro. Antes que pudesse chamá-lo ou lhe dar um cumprimento alegre, ouviu a voz dele.
— Oi, Bob. Esta é o meu primeiro aparecimento televisual em forma tridimensional. Muito bom, não é? Estou no laboratório privado de Vulthoom e ele me persuadiu a aceitar a sua proposta. Tão logo você tenha decido a fazer o mesmo nós vamos retornar a Ignarh com instruções completas a respeito de nossa missão terrestre e fundos da ordem de um milhão de dólares para cada um. Pense outra vez e verá que não há mais nada a fazer. Quando estiver decidido a se juntar a nós, siga o corredor principal de Ravormos e Ta-Vho-Shai o encontrará e o trará até o laboratório.
Ao término deste discurso chocante, a figura de Chanler, sem parecer esperar qualquer resposta de Haines, deu um passo além do limite da galeria e flutuou entre os vapores que se contorciam no ar. Ali, sorrindo para Haines, ela desapareceu no ar como um fantasma.
Dizer que Haines estava fulminado seria um eufemismo. Em tudo a figura e a voz tinham sido idênticas às do Chanler de carne e sangue. Ele sentiu um calafrio sinistro diante da taumaturgia de Vulthoom, que podia produzir uma projeção tão verossímil a ponto de enganá-lo daquela maneira. Estava, também, chocado e horrorizado além da conta pela capitulação de Chanler, mas por algum motivo não lhe ocorreu que houvesse qualquer impostura em curso.
— Aquele demônio o pegou — pensou Haines. Mas eu não poderia crer nisso. Não acho que ele era esse tipo de cara, de jeito nenhum.
Tristeza, ira, confusão e surpresa o preenchiam alternadamente enquanto percorria a galeria e nem mesmo quando entrou o salão interno ele foi capaz de decidir um curso efetivo de ação. Ceder, como Chanler comprovadamente o fizera, era algo inimaginavelmente repugnante. Se pudesse encontrar Chanler outra vez, talvez conseguisse persuadi-lo a mudar de lado outra vez e voltar a fazer decidida opinião à entidade alienígena. Era uma degradação pessoal e uma traição à humanidade que qualquer terráqueo se prestasse aos desígnios mais do que duvidosos de Vulthoom. Além da planejada invasão da Terra e da distribuição daquele estranho e sutil narcótico, haveria a cruel destruição de Ignar-Luth quando o navio etéreo de Vulthoom rompesse seu caminho até a superfície do planeta. Era seu dever, e o de Chanler, prevenir tudo isso, se fosse humanamente possível prevenir. De alguma forma os dois deveriam impedir a ameaça incubada naquelas cavernas — ou ele sozinho, se fosse preciso. Duramente honesto, não tinha intenção alguma de contemporizar, mesmo por um instante.
Ainda carregando a clava mineralizada, ele ainda caminhou por vários minutos, com o seu cérebro preocupado com o terrível problema, mas impotente para chegar a qualquer solução. Através do hábito de observação que era mais ou menos automático em sua formação de piloto espacial veterano, olhava através das portas das várias salas por que passava, onde os cadinhos e retortas de uma química estranha eram manipulados por colossos velhíssimos. Então, sem premeditação, ele chegou à sala deserta onde estavam os imensos receptáculos que Ta-Vho-Shai chamara de Garrafas do Sono. Lembrou-se do que o Aihai lhe dissera a respeito de seu conteúdo.
Em um lampejo de inspiração desesperada, Haines bravamente entrou na sala esperando que não estivesse sob a vigilância de Vulthoom naquele momento. Não havia tempo para refletir ou adiar, se quisesse executar o audacioso plano que lhe ocorrera.
Mais altas que sua cabeça, com os contornos bulbosos de grandes ânforas e parecendo vazias, as Garrafas brilhavam na luz imóvel. Como o fantasma de um gigante inchado ele viu a sua própria imagem distorcida aparecer no vidro curvado quando se aproximou da primeira.
Vulthoom – Clark Asthon Smith | Leituras Paralelas
Parabéns pela tradução!
Sei o quanto é difícil traduzir, pois também me enveredo por esses caminhos tortuosos traduzindo contos e livros pouco conhecidos ou ignorados na nossa língua inculta e bela.
Já traduzi Metropolis, algumas coisas de Phillip K. Dick e atualmente estou concluindo a tradução de A Desagradável Profissão de Jonathan Hoag de Robert A. Heinlein.
Bom trabalho, e continue assim! Lembre-se que sempre existirá alguém que ficará muito agradecido e será muito beneficiado com seu esforço!
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