Enquanto pesquisava sobre música soviética, em relação àquele post maluquinho sobre a música do jogo Super Mario World ter sido baseada no Hino da União Soviética, fui tendo contato com o universo musical comunista e entendendo como era sufocante a vida cultural então. Certamente nem eu e nem você gostaríamos de viver aquilo. Imaginemos então o nosso herói, o Yuri, um exímio guitarrista, que estudou guitarra clássica no conservatório e atravessou a adolescência ouvindo discos contrabandeados de Black Sabbath, Beatles, Bee Gees, Pink Floyd e outros. Enquanto isso temos sua amada Natasha, que sempre admirou o seu talento e seria o que em termos ocidentais modernos nós chamaríamos de “tiete”.
O grupo “Zdravstvuy, pesnya” tocando um sucesso na televisão
Falemos da música. Para poder exercer a rigorosa censura que havia, o sistema não admitia música ao vivo. Tocava-se playback em todo lugar, até mesmo em festivais de música e em shows “ao vivo”. E você aí reclamando que sua banda favorita fica dublando quando aparece na televisão. Imagina que coisa tosca a Natasha em um festival de música, vendo o Yuri e os outros caras dublarem no palco e o som saindo de caixas de som distribuídas entre as cadeiras da plateia.
Bem, seria mesmo difícil imaginar isso porque seria extremamente improvável Natasha estar lá. Como os festivais eram transmitidos ao vivo pela televisão, tudo neles era rigidamente controlado e ensaiado. Se os artistas tocavam playback no palco, imagine como não era a plateia! Bem, você já deve ter concluído que a plateia era formada por pessoas escolhidas a dedo: membros confiáveis do partido, devidamente vestidos conforme a moda (as roupas fornecidas pela televisão e os penteados e maquiagens devidamente providenciados). Mas a Natasha é uma rabotnitsa descolada e conseguiu estar na plateia do festival musical de Vladivostok como prêmio por ter a maior produtividade na fábrica de motores de caminhão onde trabalha. Então Natasha voou para o Extremo Oriente russo, ganhou um vestido cor de salmão, um penteado cheio de laquê, um colar de contas de plástico, brincos banhados em prata e uma maquiagem pesada para disfarçar suas sardas. E lá está Natasha vibrando na plateia quando a banda de seu amado Yuri sobe no palco. Bem, não.
As plateias eram também ensaiados sobre quando e como se manifestarem durante as apresentações (geralmente o “quando” era nunca) e como e quanto aplaudirem após. As cenas histéricas da beatlemania nunca aconteceriam na União Soviética. Nos shows ao vivo, em praça pública ou estádios, sendo mais difícil escolher a plateia a dedo, o remédio era infiltrar polícia à paisana, e como consequência era mais fácil ser investigado por mascar chicletes durante um show de música do que por ser iniciado entre os “bandidos segundo a lei” (os mafiosos soviéticos). Uma consequência pitoresca deste uso do playback era que os fios e amplificadores dos instrumentos eram praticamente desnecessários. O que, obviamente, significava que eles nem seriam postos no palco, para economizar alguns preciosos rublos.
A vida para Yuri, por sua vez, não era fácil. Começando pelo fato de que os músicos não tinham o direito de compor a própria música. Havia um sindicato de músicos e um sindicato de compositores. Teórica, mas raramente, era possível ser membro de ambos. Somente compositores licenciados podiam compor — e mesmo assim as suas obras eram censuradas previamente. Só depois de devidamente aprovadas as composições ficavam disponíveis para gravação, e quem definia quem gravaria as obras aprovadas não eram os músicos, mas os seus produtores, que, logicamente, eram membros de uma terceira guilda. Os melhores produtores obtinham para seus pupilos as melhores composições, mesmo que tivessem sido compostas por gente que a banda nem conhecia. Teórica, mas raramente, uma mesma pessoa podia estar licenciada simultaneamente nos três papeis, mas nesse caso ela quase certamente tocaria em uma banda, produziria outra e comporia sabe Deus para qual.
O resultado disso é que os músicos tinham um envolvimento emocional próximo de zero com aquilo que estavam cantando (o que explica as caras “de madeira” que vemos nos videoclipes da época). Yuri, por exemplo, ficava extremamente frustrado porque só poderia tentar divulgar sua música se a publicasse através de um compositor autorizado, que seria automaticamente considerado seu “parceiro” mesmo que nada fizesse. Havia, efetivamente, músicos autorizados que nada faziam a não ser publicar músicas dos outros. Alguns deles eram verdadeiros escroques, mas muitos eram pessoas de boa fé, que emprestavam o próprio nome para que a música de autores proibidos fosse tocada, e repassavam os royalties destas composições aos seus verdadeiros autores. Estes caras, inclusive, inspiraram a ideia dos “coletivos criativos” presentes em certos grupos esquerdistas.
Mas ainda podia ser pior. Às vezes acontecia dos rostos públicos da “banda” serem de gente totalmente diferente da que participava das gravações. Se algum dia te disseram que Mili Vanilli foi algo comunista, saiba que não estava totalmente errado. A não ser pelo vocal principal, que era muito fácil de identificar, era comum os instrumentistas usados em estúdio não serem todos membros da banda. Pense em “convidados especiais”, só que não eram convidados e nem eram listados nas fichas técnicas. Aliás, “ficha técnica”? O que é isso, camarada? Então nosso amigo Yuri poderia ser obrigado a tocar no disco de uma banda rival que ele detestava, ou ver o “seu” trabalho ser, de fato, feito por um membro dela. Então o Yuri subiria ao palco para tocar sua música publicada em nome de um outro cara e gravada por outro. Então a coisa ficava ainda mais frustrante. Tudo por dinheiro, não é?
Não, na verdade os músicos tinham salários e não ganhavam muita coisa com as vendas de seus discos. Ganhavam salários, que eram maiores se fossem muito populares e participassem de muitos festivais, e ganhavam a fama, e só. Muitos artistas populares da União Soviética se viram pobres quando a URSS se desintegrou porque já ninguém mais queria ouvir “sua” música depois que descobriram que não era “sua” e eles não haviam juntado bastante dinheiro durante suas carreiras porque não ganhavam dinheiro — e porque “juntar dinheiro” era coisa de burguês decadente e não era vista com bons olhos.
E já que falamos de balalaica não custa lembrar que a música soviética não era exatamente muito variada em temas. Além das canções de cunho político, exaltando o Exército Vermelho, a força da União Soviética, as maravilhas do socialismo, a importância do comunismo como farol para o mundo, etc.; você não tinha muito sobre o que cantar. Certos temas, como o amor romântico, jogos de palavra de duplo sentido e a religião só eram tolerados em canções folclóricas — o que explica a imensa fertilidade do folclorismo soviético, que “descobriu” mais canções folclóricas russas e ucranianas na segunda metade do século XX do que russos e ucranianos foram capazes de compô-las em um milênio, se é que você me entende. Se a música era “folclórica”, então ela definitivamente não continha nada ofensivo ao regime ou aos costumes soviéticos, então era possível até mesmo pegá-la e “adaptar” para os tempos modernos, dando-lhe um arranjo popular ou até mesmo transformando-a em “rock” ou “funk”. Foi no arranjo que os músicos soviéticos, aliás, se especializaram, pois não havia censura quanto a isso. O que explica porque temas folclóricos “ucranianos” do “século XVII” acabaram numa roupagem rockabilly ou até mesmo em arranjos à la George Clinton.
Então, se o nosso amigo Yuri quisesse fazer um galanteio para a Natasha, ele provavelmente teria que “descobrir” uma canção folclórica russa do século XVIII, apresentá-la a um compositor para que ele a submetesse a censura e, se aprovada, provavelmente seu galanteio seria cantado para Natasha pela voz do Sergei, um cara lá de Tashkent, que ele nunca vira na vida — e que por sorte a Natasha também não. Outra consequência do tema folclórico era os músicos subirem nos palcos vestindo roupas que imitavam trajes históricos. Nem sempre imitações exatas, nem sempre roupas de qualidade. O mau gosto imperava. E o Yuri lá estava na televisão usando botas de cano alto, calças de algodão e camisas bordadas em estilo bielorruso, cantando uma canção “folclórica” da Carélia. Mas ele era siberiano de Cheliabinsk e os caras da banda eram, quase todos, moscovitas. A essa altura você já teria ligado o “foda-se” e estaria num “blá-blá-blá” ao microfone (que já estava desligado mesmo). Mas Yuri tinha muito medo de ir para o gulag, então ele tentava parecer sério. Só não conseguia parecer descontraído nem alegre. Era difícil, com aqueles agentes da KGB do lado do palco.
Mas alguém deve estar pensando: se o cara quisesse apenas ganhar a vida como músico, em vez de fazer política, ele poderia ter um trabalho seguro no sistema, não é mesmo? Sim, mas não era fácil chegar lá. Para começar, havia um conservatório em cada cidade, e todos os anos milhões de pessoas concluíam cursos avançados de uma grande variedade de instrumentos. O que significava que você não precisava apenas ser bom, precisava ser ultra-black em termos de habilidade musical. Se o Camel fosse uma banda soviética o Andy Latimer teria passado semanas tocando Ice até conseguir executar os dez minutos da música sem errar aquele único acorde no minuto final. Isso se não chamassem o Eric Clapton para tocar para ele. Os músicos que chegavam a formar parte de uma banda eram todos de um nível maestro de filarmônica para cima. E eles não podiam compor nada para si! E frequentemente tinham de tocar composições inferiores feitas por pessoas que detestavam.
Isso, claro, supondo que eles se gostassem, o que não era certo de forma alguma. Ninguém formava uma banda de garagem e passava meses tocando e compondo. Fazer isso era crime. Yuri praticara no conservatório, sob supervisão de seus mestres até se formar e, como lhe notaram um talento realmente grande, teve a chance de fazer um teste para entrar para a banda. Poderia ter sido qualquer banda em formação, ou para substituir um membro que havia saído de alguma banda ou sido retirado dela. Você não se juntava com amigos, você era reunido a outros caras de todas as partes do país (um país duas vezes e meia maior que o Brasil) para tocar música composta por outros caras. Assim, foi realmente uma sorte Yuri ter arranjado uma banda de Moscou, e não de Yakutsk ou Alma-Ata.
Banda “Ariel” em um festival de música
O talento era o que importava, isso era uma coisa boa. O músico precisava ser excelente — não precisava ser bonito. Isso significava que pessoas que não se encaixavam no padrão de beleza estavam nas bandas de maior sucesso (veja isso nos vídeo da banda Ariel, que eu anexei no post). Explica também a maioria de nerds entre os integrantes dos grupos musicais.
Chegar a ser músico, compositor ou produtor não era nada fácil, por outros motivos também. Mesmo os microfones estando desligados o tempo todo, você era monitorado o tempo e tinha que ter um comportamento exemplar, porque você era um exemplo para a juventude. Um toxicômano ou uma pessoa de personalidade autodestrutiva seria silenciosamente demitida de sua banda e enviada para o gulag (ótimo lugar para quem gosta de se autodestruir, por falar nisso). Se o serviço fosse bem-feito, calhava até de arranjarem um sósia para o lugar do demitido (o que explicava que muitas vezes quem tocava no estúdio era uma pessoa diferente da que aparecia no show). Mas o sistema não queria estes transtornos, por isso selecionava pessoas que pudessem ser confiáveis, e nesse ponto o talento começa a ficar em segundo plano, e novamente entendemos porque gente diferente tocava no estúdio. Se o Yuri não tivesse sido considerado “bom comunista” poderia não ter autorização para aparecer em público como membro de banda, poderia se tornar músico de estúdio, tocando músicas para outras bandas fazerem playback em seus shows. Isso, claro, supondo que houvesse escassez de mão de obra qualificada e de confiança — o que não havia.
Então nosso amiguinho Yuri provavelmente atravessou a vida inteira sem jamais conseguir fazer algo simples como chegar na beira do palco, jogar uma flor uma moça e lhe dizer: “esta eu fiz para você”. Não só porque ele mesmo não poderia tocar a própria música, mas porque os shows eram pelo país todo, e seria improvável sua amada estar na plateia. Natasha, por sua vez, não poderia seguir tiete de seus shows por muito tempo: ela não escolhia a quais festivais ir, como operária que era, tinha de trabalhar a maior parte do ano e só ia em festivais quando ganhava entradas como prêmio por seu trabalho, ou nas férias, se tivesse uns rublos de sobra e coincidisse do Yuri estar tocando relativamente perto.
O Yuri, porém, tinha uma grande esperança: a glasnost prometia acabar com esse sistema podre. Quando Gorbachev fosse bem-sucedido os músicos teriam liberdade para compor e tocar, e ele finalmente poderia revelar, à la George Harrison, todo o trabalho que reservara durante anos. Seria glorioso. Yuri se sentiu maravilhado quando a Cortina de Ferro começou a cair, em 1989, sua hora estava chegando.
Foi uma pena que em 1991 aconteceu tudo aquilo, a Rússia emergiu como um país empobrecido e fortemente influenciado pelo ocidente. Natasha perdeu o emprego na fábrica, e a essa altura já era uma matrona gorda e mal-humorada, com as mãos cheias de calos. Estava casada com um uzbeque mal humorado chamado Ruslan e todos tiveram que fugir do Uzbequistão para a Rússia por causa do regime implantado pelo louco do presidente que assumiu lá. Enquanto isso o Yuri, tendo acesso a toda a música pop ocidental, viu que suas composições eram ingênuas e jamais fariam sucesso no mundo real. Sua banda foi dissolvida, ele voltou para Cheliabinsk querendo trabalhar no conservatório, mas descobriu que o salário era uma merda e que havia bem menos gente querendo estudar música. Para cúmulo de tudo isso, seu visual de óculos fundo de garrafa e seu status de ex guitarrista de uma banda símbolo de uma época que todo mundo queria esquecer. Ainda bem que existia a vodca, e ela era barata, ainda.