“A Fila Não Incomoda”: Um Manifesto Contra a Jornada do Herói e em Favor do Direito de Fazer Tudo Errado foi uma série de artigos que escrevi entre maio e junho de 2014, baseada em minhas leituras de alguns artigos críticos do conceito do monomito de Joseph Campbell. Estes artigos foram consolidados neste texto único, divido em partes usando a ferramenta do WordPress que eu só descobri hoje. Originalmente foram oito partes, mas eu acrescentei uma nona, e também uma conclusão e uma bibliografia. Os artigos originais foram removidos do blog e seus comentários serão, se possível, transferidos para esta página.
- Parte I – Você precisa seguir o evangelho de Campbell;
- Parte II – Campbell recebeu a luz e Vogler a traz até você;
- Parte III – Uma história para dominar todas as histórias;
- Parte IV – A Jornada do Herói não é a solução, é parte do problema;
- Parte V – Precisamos retornar à rebeldia;
- Parte VI – Heróis de verdade não são assim;
- Parte VII – A Jornada falha onde não devia falhar;
- Parte VIII – Existem outras formas de entender os mitos;
Você Precisa Seguir o Evangelho de Campbell.
Começou toda torta, a minha tentativa de contato com um certo editor, cujo nome preservarei. Um dia recebi um comentário, em um chat, a respeito de um trabalho meu que eu lhe submetera à apreciação:
Se você deseja publicar conosco, deve começar por aprender a construir suas histórias segundo a Jornada do Herói, de Campbell.
Em outras oportunidades eu já o vira defender este conceito em debates de redes sociais, mas não imaginei que ele levasse o monomito de Campbell tão a sério que o fizesse de bíblia em seu trabalho e que se recusaria a considerar originais que não tivessem sido desenvolvidos “ab initio” segundo o risco determinado pela Jornada do Herói.
Desde então, embora eu me mantenha salutarmente afastado de qualquer deliberada obediência a este ou a qualquer outro princípio “canônico” da literatura, eu venho percebendo que a ideia do monomito ganha seguidores, sem nunca ser seriamente criticada. Pois bem, acostumado a queimar pontes, e o meu filme, resolvi chutar esta porta e apresentar meus questionamentos, mesmo sem ter credenciais para tanto.
Em primeiro lugar eu vou dizer que meu conhecimento da Jornada do Herói é superficial porque eu não li toda a obra original de Campbell. Conheço dela o que os seus seguidores dizem que ela é. Mas esta relativa ignorância não é um problema para os propósitos deste artigo, pois eu não pretendo atacar o próprio autor, filólogo e mitologista; mas a versão rasa de seus conceitos que é divulgada por pessoas que nem sempre o leram. Aliás, o pouco que li dele e sobre ele me permitiu formar duas opiniões bastante sólidas:
- Parece ter sido um acadêmico sério e respeitado, apesar de seu trabalho sofrer várias críticas e não ser considerado válido justamente por aqueles que estudam as mitologias.
- Nunca pretendeu que seu trabalho fosse usado como “receita de bolo” para escrever ficção, embora possivelmente tenha se sentido lisonjeado quando começaram a fazer isso (a lisonja afaga o orgulho, este humaníssimo defeito).
Campbell é um dos que propuseram a ideia de que o estudo das religiões e mitos comparados1 poderia revelar padrões culturais profundos, subjacentes a todas as sociedades humanas. A ideia parece ter se originado em James Frazier, na obra O Ramo Dourado2, mas ganhara corpo com o trabalho de Jung em O Homem e Seus Símbolos3 e Richard FitzRoy Somerset, Lord Raglan, autor do famoso “perfil do herói”4.
Os três autores citados como precursores tiveram o cuidado de usar uma abordagem “descritiva” da realidade. Campbell também parece ter ido por esse lado, o seu radicalismo estaria em afirmar que os heróis seriam originalmente um único tipo de personagem, o que é o contrário do que afirmava Raglan, para quem os personagens heroicos são associados a certos elementos como parte do processo de construção de sua lenda, e se parece bastante com o conceito dos arquétipos de Jung. A transformação da Jornada do Herói em uma abordagem normativa para a ficção é um processo que ocorre fora da obra acadêmica de Joseph Campbell.5
Coube, então, aos fãs de Campbell a afirmativa de que, se todos os mitos provém de uma única fonte, deveríamos criar nossas histórias de acordo com as características desses mitos para esperar obter com isso o acesso fácil ao coração do leitor. Trata-se de uma ideia arriscada, pois, se as histórias de sucesso têm várias características em comum, não sucede que fazer histórias com tais características resulte em sucesso. Trata-se de uma falácia lógica chamada cum hoc ergo propter hoc (frase latina que pode ser traduzida muito bastardamente por “se acompanhado disso, então é por causa disso”).
Isso é muito diferente do que Lord Raglan propôs. Para ele, se queremos dar a um personagem um ar heróico, então devemos fazer com que ele tenha certas características. Mas Raglan não afirmou que todo personagem deva ser herói e o objeto de sua pesquisa era bem claro: Tradição, Mitologia e Drama. Ele abordou personagens históricos mitificados ou exaltados por razões políticas, personagens mitológicos e personagens de dramas trágicos. O recorte mais estrito do trabalho de Lord Raglan o protege da controvérsia que Campbell causa ao propor a ideia do monomito.
Mas isto não quer dizer, de forma alguma, que o trabalho de Campbell não seja respeitável. Minha crítica à Jornada do Herói não se aplica ao seu conceito enquanto ferramenta para entender as mitologias do mundo — ainda que existam muitas críticas ponderosas às suas ideias — mas sim à sua aplicação diluída e convencional como uma “receita de bolo” para escrever ficção com apelo comercial.
O trabalho de Campbell começou a se popularizar com o grande público quando George Lucas e Richard Adams, respectivamente, confessaram ter empregado a Jornada do Herói como guia para a escrita, respectivamente, do roteiro original de “Guerra nas Estrelas” e do romance infantojuvenil Watership Down. O grande sucesso que ambos alcançaram com estas obras foi atribuído ao poder sugestivo que o emprego da Jornada do Herói lhes teria dado, disso resultou que vários outros autores resolveram seguir o mesmo padrão deliberadamente, o que explica, em parte, porque os best-sellers e os blockbusters estão cada vez mais parecidos.
No meio editorial, particularmente, a ideia do monomito cai como uma luva entre os editores voltados para filões mais comerciais, pois supostamente as histórias construídas segundo o padrão da Jornada do Herói tocariam nos arquétipos mais profundos da humanidade, o que significaria que teriam apelo de público e venderiam mais. Estruturar uma história desta forma seria mais “seguro” enquanto empreendimento comercial do que criar uma história aleatoriamente e confiar em fatores igualmente aleatórios para chegar ao sucesso. Histórias escritas segundo a Jornada do Herói não apenas agradariam mais ao público leitor como teriam o potencial de criar fãs e obter publicidade espontânea.
Campbell Teve a Luz e Vogler a Traz Até Você.
Em essência, a Jornada do Herói propõe uma estrutura prefabricada para a ficção. Um esqueleto básico, com alguns elementos opcionais, que deveria ser guarnecido de “carne” verbal pelos autores. As obras feitas por tal esquema seriam bem-sucedidas porque o que o ser humano deseja é seguir a jornada mística de um herói, ainda que vivamos em uma época tão secularizada e distanciada em relação aos rituais da tradição.
Estruturas prefabricadas substituem o trabalho de planejar, inventar e descobrir. Se você tem esquema pronto, não precisará testar soluções a esmo até achar uma que resulte em uma obra aceitável. Seguir soluções prontas serve para produzir coisas em série, desprovidas de individualidade e calor. Coisas como parafusos precisam ser iguais, por exemplo, mas por que deveríamos padronizar tudo? O que seria do mundo se todas as pessoas construíssem casas parecidas? É verdade que “casas” são compostas de elementos básicos, como paredes, teto, janelas, portas, corredores, chão, laje etc.; mas isso não quer dizer que todas as vezes que empregarmos esses elementos teremos de produzir casas em que necessariamente a varanda fique na frente, a garagem do lado, os quartos nos fundos e o banheiro dando para um corredor.
Nesse sentido, a aplicação deliberada da Jornada do Herói tem um efeito atrofiante sobre a criação literária. A ideia de que todas as histórias são uma mesma história desestimula a criação de histórias variantes. Se as histórias de mais sucesso são as que seguem o padrão, fugir do padrão é garantia de fracasso. O resultado disso é o equivalente literário a um conjunto habitacional. É exatamente isso que pensam alguns editores, como o que me mandou voltar à estaca zero e aprender a escrever minhas histórias seguindo a Jornada do Herói. Autores que não o fazem conscientemente não seriam sequer publicáveis, segundo pensa tal gente. Autores que o fazem inconscientemente deveriam fazê-lo de propósito para não correrem riscos.
Para além da sensação de superioridade que isto dá ao editor, que pode ensinar ao escritor como ele deveria escrever e ainda usando a autoridade de um acadêmico de renome (e ainda por cima gringo, o que é um selo de qualidade na visão de certa gente!), precisamos nos perguntar se realmente isto tem os resultados que se diz ter.
Se for verdade a interpretação recente do trabalho de Campbell, as histórias de maior sucesso no cinema e na literatura seriam quase todas baseadas na Jornada do Herói e apenas por exceção uma obra chegaria ao sucesso sem seguir este caminho. Mais do que isso, as obras tidas como “exceções” teriam uma aplicação incompleta, mas não inexistente, da Jornada do Herói.
Esta não é uma afirmação facilmente testável.
Podemos levantar estatisticamente os filmes e livros de maior sucesso e verificar quais se baseiam na Jornada do Herói e quais não. Infelizmente não será um levantamento isento. Antes da popularização das ideias de Campbell, as obras literárias e cinematográficas apresentavam padrões muito variantes em relação à Jornada do Herói. Algumas obras de evidente sucesso aparentemente a seguiam, mas outras não. E é difícil saber se as obras apontadas como exemplos desta poderiam ser realmente classificadas assim ou se esta classificação é uma categorização a posteriori. Até que ponto a adesão à Jornada do Herói é um exercício de pareidolia?
Posteriormente à popularização das ideias de Campbell, ocorrida nos anos 1990, a maioria dos filmes de sucesso passou a segui-la. Mas isto quer dizer que ela é eficiente para produzir filmes de sucesso ou que hoje é mais difícil obter grande financiamento para obras que não sigam a Jornada do Herói? Se considerarmos que Christopher Vogler, o maior divulgador da aplicação do trabalho de Campbell no desenvolvimento de narrativas de ficção, é um executivo da indústria americana do cinema, devemos nos perguntar até que ponto a “popularização” da Jornada é uma imposição da indústria americana de “enlatados” culturais, que, como se sabe, emprega as mais variadas técnicas de propaganda ideológica. E o herói é um conceito claramente ideológico. Perigosamente ideológico, como veremos.
Infelizmente, algumas das obras de maior sucesso na história, por exemplo, não seguem a Jornada do Herói. Excluindo as obras protagonizadas por mulheres (que não podem ser acomodadas no mito do herói de Campbell — e isso é um problema significativo, como também veremos), podemos citar filmes epicamente famosos como Chinatown (Roman Polanski), Jornada nas Estrelas (a série original e os primeiros cinco filmes) e A Bela e a Fera (desenho da Disney) como exemplos que desafiam a interpretação segundo a Jornada do Herói. Outros exemplos, que analisaremos mais em detalhe nos próximos capítulos, são a Odisseia e a Divina Comédia. Se a Jornada do Herói fosse tão importante quanto dizem os seus defensores, não deveria ser possível fazer tão grande sucesso ignorando-a tão solenemente.
Ocorre que ninguém parou para questionar fatos que deveriam ser óbvios:
- Campbell não era escritor de ficção, ou mesmo crítico literário, mas estudioso de mitos e
- A essência da arte é questionar os modelos preestabelecidos, portanto, a partir do momento em que a Jornada do Herói é proposta ela se torna um ídolo a ser derrubado por novas gerações de escritores.
A popularização do trabalho de Campbell, feita por Vogler, é também um poço de inadequações, pois se trata de diluição “pop” de um estudo acadêmico sério, pretendo aplicar os conhecimentos produzidos por Campbell em uma área totalmente diferente da sua intenção. Isto é uma característica recorrente da autoajuda, que recorre a elementos científicos, preferencialmente os controversos, para propor abordagens explicativas para questões práticas. Neste sentido, a ideia de que uma boa história precisaria seguir o modelo de Campbell tem forte cheiro de pseudociência.
Por fim, não custa lembrar que, como Joseph Campbell era um antropólogo, e não um escritor de ficção, a sua interpretação pode ser válida no campo da antropologia, mas a sua aplicabilidade em outros campos, como a estruturação de histórias de ficção, precisa ser provada. Considerar que as credenciais acadêmicas de Campbell validam a Jornada do Herói como modelo para a literatura de ficção é um apelo falacioso à autoridade, tão evidente quanto achar que José Luís Datena entende de segurança de motociclistas.
Uma História Para Dominar Todas as Histórias.
A Jornada do Herói segundo popularizada nos atualmente se baseia na interpretação dada ao trabalho de Campbell por Christopher Vogler, um executivo dos estúdios de Hollywood, que escreveu uma obra cujo título traduzido é A Jornada do Autor: Estrutura Mítica para Escritores. Antes disso, as teses de Vogler haviam sido difundidas como “orientações” internas aos roteiristas dos principais estúdios de cinema.
Vogler resumiu a Jornada em três “atos”, compostos de doze “cenas”:
Ato 1 – em que o cenário é estabelecido e o herói começa sua jornada.
- Mundo normal. A história começa com o herói em sua existência normal, sem saber do que lhe acontecerá. Isto ancora o herói como um ser humano, para que possamos nos identificar com ele.
- Chamado à aventura. O herói presencia um malfeito, um problema ou desafio que deve enfrentar. Seja o rei procurando quem salve o reino de um inimigo, um detetive recebendo uma cliente com um caso ou o encontro de um estranho em um bar.
- Recusa do chamado. O herói se acovarda diante da tarefa ou hesita em recebê-la. O problema parece muito grande ou o conforto do lar parece mais atraente do que o “lá fora”. Esta é a resposta que daríamos, então isto nos ajuda a ter ainda mais envolvimento emocional com o herói. Serve também para evidenciar que o herói não é alguém que busca aventuras levianamente.
- Encontro do mentor. O mentor aparece para ajudar o herói a se preparar para o que enfrentará. Assim Gandalf, Obi-Wan Kenobi e uma miríade de outros mais velhos e mais experientes aparecem para ensinar ao herói as habilidades que precisa ter e dar-lhe o discernimento que precisará usar para sobreviver.
- Ultrapassagem do limiar. O herói então está pronto e ultrapassa os limites do seu cenário inicial, entrando em sua jornada pelo desconhecido.
Ato 2 — em que ocorre a parte central da ação, enquanto o herói sobrevive à estrada e atinge seus objetivos iniciais.
- Testes, aliados e inimigos. Uma vez solto no grande e selvagem mundo, o herói se confronta com uma série de desafios cada vez mais difíceis, de pequenas escaramuças até obstáculos geográficas e fenômenos da natureza, passando por enigmas, contratempos e traições que derrotariam uma pessoa comum. Assim o caráter do herói é desenvolvido e ressaltado. Uma vez que estamos identificados com o herói, sentimos prazer em suas vitórias.
- Aproximação da caverna mais profunda. Acercando-se de seu destino final, o herói, ferido porém mais sábio com o que aprendeu durante a jornada, deve se preparar para o mais grave teste. Nas lendas antigas, a “caverna mais profunda” era a terra dos mortos ou um labirinto. É o covil de um inimigo terrível, onde não haverá ajuda possível e onde apenas a coragem salvará. Possivelmente haverá outro limiar a se cruzar nesse ponto, marcando a entrada da toca do dragão ou a boca da caverna mais profunda. Engolimos em seco, junto com o herói, ao pensarmos que tudo pode dar errado. Aproximar-se da caverna é contemplar a morte e ainda seguir em frente. Esta pausa serve para mostrar que o herói ainda é humano e serve para criar a tensão antes do clímax.
- Crise/Teste supremo. Enfrentando seus medos mais profundos, tipicamente em batalha contra um vilão terrível, o herói testa pela última vez suas habilidades. Aqui é onde a história realmente se realiza. Superando seus demônios e enfrentando seu inimigo predestinado. Nós tememos pelo herói e podemos sofrer com a ideia de que ele pode falhar ou morrer. Nós também enfrentamos e vencemos, em menor escala, nosso medo.
- Obtenção da recompensa. Derrotando o inimigo, o herói se transforma em outra coisa, seus medos são derrotados e ele se torna a pessoa mais destemida do mundo. A recompensa aparente pode ser o conhecimento, um tesouro, a mão de uma princesa ou um trono, mas a maior das recompensas é o ganho interior da experiência e da sabedoria.
Ato 3 — em que o herói transcende a humanidade.**
- O caminho de volta. Depois que a história ultrapassa o clímax, o herói transformado volta para casa. Tendo obtido o tesouro, ele não precisa e não quer mais aventuras, não tem mais nada a provar. Voltar para casa é o contrário de cruzar o limiar no começo da aventura. Em vez de esperar perigos, esperamos aplausos e descanso.
- Clímax/ressurreição. A história tem um último truque agora. Tendo nos confortado com a ideia de que o heroi está em segurança, um último desafio aparece. Talvez o vilão não foi vencido realmente, ou talvez outros inimigos no caminho de volta, ou talvez o herói se comove com alguém em necessidade. Assim, novamente somos expostos a um clímax quando já achávamos que a história estava resolvida. Em antigas histórias, o herói deveria ser purificado antes da volta. Depois das lutas na jornada e todo o sofrimento, depois especialmente de ter matado ele precisaria limpar-se destas culpas, o que poderia acontecer através de um renascimento em nova e bela forma.
- A volta com o tesouro. Finalmente o herói retorna à sua casa, dá o tesouro ao seu dono devido e recebe sua justa recompensa, seja ela a mão de uma princesa, o reconhecimento do povo ou apenas o descanso merecido. Nesta parte final todas as tensões são resolvidas e todas as questões não respondidas são esclarecidas, deixando o leitor satisfeito.
O problema com este esquema é que ele ignora as diferenças e se concentra nas semelhanças entre os grandes mitos e, de certa forma, exagera a importância destas semelhanças, mesmo quando não passam de detalhes secundários. Certamente uma história construída sob tais preceitos é eficiente, embora não seja a única forma eficiente de se contar uma história. E embora vários arquétipos sejam explorados aí, várias histórias conhecidas e antigas fogem ao diagrama proposto por Campbell. Então a Jornada, tal como delineada acima, falha como uma explicação universal das mitologias. Há toda uma série de histórias muito conhecidos que violam praticamente cada preceito da Jornada: Gilgamesh, Ulisses, Sansão, Davi, Ratatouille, Tropas Estelares, Amor Sem Limites (ambos de Robert A. Heinlein) e a maioria dos contos de Ray Bradbury.
Segundo Jim Hull6, a fuga mais fácil para essa dificuldade de explicar o sucesso de obras fora do padrão é argumentar que existem duas jornadas simultâneas narradas na história, ambas incompletamente. Isto é falacioso, pois viola o princípio da razoabilidade (“navalha de Occam”), segundo o qual não se deve aumentar a complexidade de uma teoria se for possível encontrar uma explicação mais simples que satisfaça os dados existentes. Este elegante princípio lógico foi formulado através da frase latina entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem (não se deve multiplicar os elementos sem necessidade).
Se eu não consigo explicar uma obra empregando a Jornada do Herói, supor a existência de duas jornadas simultâneas e entrelaçadas não é uma explicação melhor do que dizer que simplesmente não há jornada alguma narrada ali. A existência de duas jornadas invalida a excepcionalidade do herói e, por conseguinte, derruba toda a estrutura que se pretendia construir, uma vez que a jornada do herói se ancora justamente na excepcionalidade do protagonista.
A existência de grandes sucessos literários e cinematográficos que desafiam o padrão deveria ser um alerta de que o padrão talvez não exista ou que não se aplique fora do escopo original da obra de Campbell (mitologia comparada). Esta segunda interpretação é coerente com o espírito das ciências humanas, que dificilmente se aventuram a fazer predições com base em dados históricos e, quando o fazem, geralmente incluem ressalvas. Predições sem ressalvas, no campo das ciências humanas, são essencialmente falaciosas porque fatos passados não são repetíveis segundo um padrão óbvio. Campbell não foi falacioso, mas há aplicações falaciosas de sua obra. Uma delas é este artigo,7 que afirma que Jornada nas Estrelas, Guerra nas Estrelas, Matrix e Harry Potter são a mesma coisa porque possuem elementos em comum.
As Críticas Clássicas à Jornada do Herói.
Em geral só ouvimos falar da obra de Joseph Campbell pela boca de seus seguidores, nunca de seus detratores. Isto decorre de múltiplos fatores, entre os quais a hegemonia com que o discurso do monomito se impõe entre os editores e também o fato de que o tema, em si, é de pouquíssimo interesse para o público em geral. Temos então uma situação curiosa:
- Há um grupo de autores e editores que divulga o conceito do monomito porque ele se harmoniza com certa visão de mundo e da literatura que lhes interessa. Esses são os prosélitos naturais: a Jornada do Herói lhes serve.
- Quem não é prosélito em geral não se interessa pelo estudo da mitologia comparada. Quanta gente lê obras de antropologia afinal?
- Autores e editores costumam ter mais acesso à mídia do que antropólogos, linguistas e etnólogos.
Desses três fatores resulta que o proselitismo da Jornada atinge um público maior do que a crítica. Mas a crítica pelo menos existe?
Sim. Existe.
Podemos sumarizar estas críticas nas seguintes provocações:
- Film Critic Hulk: Why We Must Stop it With the Hero Journey Shit8,
- Charlie Jane: Cinco Razões Pelas Quais a Jornada do Herói é uma Merda9 e
- André Solo: Porque Não Gosto de Joseph Campbell10.
- Nem todo mito conta uma história só.
- Há padrões que são comuns a muitos mitos, mas isto ainda não significa que esses padrões estão a serviço de uma mesma história ou trazem a mesma lição. *Quando você escolhe um padrão que acredita ser o correto, é fácil ignorar os elementos que não se encaixam nele ou reinterpretar aqueles que só encaixam mal.* Muitas identificações da Jornada do Herói em obras de literatura são feitas à base de marretadas.
- A ideia do monomito solapa o que a mitologia tem de grandioso
- Os mitos trazem uma carga cultural tremenda. Toda a visão de mundo de uma sociedade, seus valores e suas mais altas aspirações estão codificadas em seus mitos. O valor-conteúdo é único à mitologia de cada cultura, e é isso que faz os mitos serem mágicos. Ao *focar nos elementos que se repetem entre diferentes culturas implica em ignorar o que cada uma tem de especial.*
- Quando você universaliza um mito, você não o faz.
- Qualquer tentativa de definir um padrão universal entre coisas diferentes acaba definindo o viés do observador, especialmente nas ciências humanas, onde o problema da neutralidade é mais premente, e ainda mais especialmente nas pesquisas do tipo qualitativo, que não se baseiam em grandezas mensuráveis. No caso de Campbell, ele focou primariamente em figuras míticas masculinas e histórias que concordavam com as suas próprias visões teosóficas. O monomito é popular junto ao público ocidental porque foi escrito por um ocidental. Mais do isso, conforme o próprio Campbell declarou, não lhe interessava estudar as diferenças entre os mitos, mas as suas semelhanças. Isso equivale a dizer que você não encara as pessoas pelas suas características pessoais, mas pelo que têm de igual — e no fim de contas você reduz os indivíduos a uma contagem de narizes, dentes, membros, olhos e dedos.
- Os passos da Jornada do Herói não são significativos porque são simplesmente inevitáveis.
- Por exemplo, o momento em que o herói deixa a segurança de seu lar: é meio óbvio que se o herói não deixar o seu lar ele não encontrará aventuras, então é praticamente natural que uma história de aventuras envolva esse movimento. O movimento em si não pode, então, ser visto como algo significativo porque não se pode contar uma história sem ele. Afirmar que existe algo significativo na “saída do lar” é como dizer que todas as histórias se parecem porque todas têm começo, meio e fim e tem personagens, ou que dois indivíduos se parecem porque tem a mesma quantidade de pernas.
- Alguém tem que ser o protagonista.
- Não há história se não houver um protagonista e é natural que este seja um personagem que provoca a empatia do leitor. Uma das maneiras mais fáceis de criar esta empatia é dar qualidades ao protagonista. Uma vez mais, o herói surge como um personagem inevitável de acordo com o tipo de história que se conta, e não porque o herói em si seja um modelo universal. Outra vez, não é o rabo que abana o cachorro.
- Consagração do *Deus Ex Machina*
- O Elixir através do qual o herói é salvo milagrosamente nunca foi um elemento de qualidade das velhas histórias, mas uma maneira fácil e apressada de resolver um conflito intransponível. Esses filtros e objetos mágicos que resolvem milagrosamente as encrencas mais cabulosas sempre foram uma maneira preguiçosa e ignorante de resolver uma narrativa mal planejada. Através da Jornada do Herói podemos justificar essas soluções mal ajambradas.
- Difunde a ideia de que a guerra é uma forma de terapia
- A Jornada do Herói se baseia no preconceito de que os problemas são sempre desafios morais e só podem ser vencidos através de uma iluminação interior. Assim, o herói triunfa sobre o gigante por ter evoluído espiritualmente, não por ter matado o gigante. Esta confusão entre solução de problemas (muitas vezes de forma violenta) e crescimento espiritual não é realista e pode ser perigosa quando chega aos ouvidos das pessoas erradas.
- Campbell é um poço de pieguice
- Entre outros motivos, porque ele não era um escritor dotado de qualidades literárias, mas um acadêmico. Seguir os conselhos de um acadêmico na hora de escrever equivale a seguir os conselhos de saúde dados por um mecânico só porque supostamente o seu corpo é uma “máquina”. Vários de seus defensores citam frases suas que parecem saídas de um livro de autoajuda, como “o seu lugar sagrado é aquele onde você se encontra e se reencontra várias vezes” ou “siga seu prazer”. É o tipo de discurso “positivo” que se difundiu por conta do movimento hippie e da cultura new age, mas que dificilmente seria levado a sério por um público menos virginal. Talvez por isso Vogler tenha reescrito seus conceitos de uma maneira mais comercial, para evitar que essa pieguice afastasse aqueles que não fossem leitores do “Senhor dos Aneis” e de “Fernão Capelo Gaivota”.
- A universalidade do monomito é aumentada com interpretações forçadas
- Muitas das histórias que se diz serem baseadas no monomito apresentam uma estrutura muito diferente, mas os prosélitos ignoram a cronologia interna dos fatos narrados (assim ignorando a relação de causa e efeito das ações dos personagens) para enxergarem um padrão até mesmo onde não existe.
A Jornada Como Parte do Problema: Treze Evidências.
Os problemas com o conceito da Jornada do Herói são muitos, pelo que andei lendo. As críticas vem dos mais variados lados, mas eu as reduzi a somente dez principais, baseando-me nas citadas pelos provocadores citados na seção anterior.
1. É uma receita de bolo.
Em literatura, fórmulas tendem a ser limites. Claramente Campbell não estava pensando em dar receitas de bolo para ninguém. Ele pensava que estava descrevendo padrões inerentes aos grandes mitos da humanidade. Mas com o tempo, autores mais ou menos preguiçosos passaram a usar seu trabalho como uma espécie de receita. Especialmente depois do sucesso de Guerra nas Estrelas, que George Lucas disse ter sido inteiramente escrito com base no trabalho de Campbell. A aplicação de uma fórmula tende a tornar todas as obras parecidas, e tão chatas quanto videogame, que tem fases sequenciais, chefões de fase, pontos de salvamento, etc.
2. Desencoraja a criatividade.
O ser humano é preguiçoso por natureza e busca o caminho do menor esforço. Então se você disser que toda história é a mesma história, divergindo apenas em detalhes, você está encorajando os novos autores a plagiarem até o osso as histórias antigas e já em domínio público. Ninguém nunca mais inventará um gênero literário, um recurso estilístico ou um novo tipo de trama, todos estarão ocupados copiando o que já deu certo. Em vez de valorizar histórias que são diferentes, ou tentam ser, você fica tentado a achar que um chiclete como “Guerra nas Estrelas” é “mítico” porque é sobre um herói.
3. Sua aplicação é pseudocientífica.
Campbell trabalhou com o passado. Sua obra pode ser muito bem-sucedida como explicação dos antigos mitos (e não digo que sim ou não), mas daí não se pode inferir que ela seja um modelo eficiente para o desenvolvimento de novos mitos. Um ditado comum entre os estrategistas militares é que os generais não devem se preparar para lutar a última guerra, mas a próxima. Este ditado exemplifica o erro do historicismo: só porque o conhecimento do passado é útil para entender o presente, disso não decorre que se possa prever o futuro a partir do passado.
Os heróis descritos por Joseph Campbell, parte de culturas milenares, foram criados em um contexto histórico diferente. Os heróis que nossos tempos criam são diferentes deles. Uma literatura baseada na Jornada do Herói é uma literatura que nascerá anacrônica, pois em vez de captar o espírito de nossa época, se ancora no espírito de tempos idos.
4. Seus valores são datados.
Como dito acima, existem críticos que atacam o conservadorismo da Jornada como um grave problema. Para estes críticos, usar a Jornada como paradigma para escrever novas histórias é cometer o erro dos franceses em ambas as guerras mundiais: preparar-se para lutar a guerra anterior.
Priester11 ataca justamente o conservadorismo expresso pela Jornada (e pelo próprio conceito original de herói). Mesmo na cultura popular contemporânea, diz o autor, é possível encontrar exemplos de mudanças significativas de paradigma. Os filmes de faroeste dos anos 40 a 60, por exemplo, apresentam uma visão dos indígenas que hoje é inaceitável diante do conhecimento histórico e dos direitos civis conquistados por seus descendentes. Da mesma forma, obras icônicas, como “E o Vento Levou” expressam paradigmas racistas que hoje em dia são simplesmente criminosos; sendo esta uma das muitas razões pelas quais os filmes antigos raramente passam na televisão, mesmo fechada.
Uma análise do cinema americano que incluísse obras de todas as suas épocas fatalmente incluiria estes elementos como parte inerente ao seu caráter. Se tal obra servisse de referência para criar o paradigma de filme com potencial de sucesso, os filmes do futuro poderiam nascer presos a convenções que deveriam ter sido abandonadas por causa das mudanças sofridas pela sociedade. Assim, a pesquisa de Campbell, ao ser aplicada como modelo para a produção de novos elementos culturais, preserva preconceitos e ignorâncias de épocas passadas da humanidade que devemos superar em nossas próximas fases de desenvolvimento cultural e social.
5. O herói é politicamente reacionário.
A literatura não se limita a heróis. E o herói se tornou, afinal, um personagem anacrônico, e até reacionário. O herói não é um cara que resolve fazer o que qualquer um poderia fazer se tivesse a iniciativa. Ele não é feito pela ocasião: recebe seu chamado por ser, essencialmente, alguém especial. Ele é um aristocrata, os demais são plebeus e peões. O herói é um conceito que propaga a ilusão de que você pode ser secretamente alguém especial (veja o caso do Harry Potter e da legião de imitadores da ideia do adolescente sofrido que é na verdade um príncipe ou mago famoso, bléargh!). Ao mesmo tempo é um conceito que propaga a ideia de que você nasce especial e que ninguém pode tornar-se especial.
Isto é o tipo de ideia que vigorava no mundo durante a Idade Média, e deveria ter sido abolido gradualmente desde a Revolução Francesa. O herói é um instrumento de propaganda da nobreza contra a plebe. Em “Guerra nas Estrelas”, por exemplo, vemos claramente como o herói propagandeia a monarquia (ou, se prefere, um poder autocrático) como solução para os enganos de um regime representativo. Este é o mesmo tipo de propaganda, aliás, que se fez de Júlio César para justificar a abolição da República Romana.
6. O herói é um homem.
Não é preciso ser feminista para entender que um conceito que só é aplicável a personagens masculinos é, no mínimo, incompleto. Ou estamos querendo dizer que as grandes histórias precisam ter protagonistas homens (o que é simplesmente um machismo tosco) ou o paradigma só explica as histórias envolvendo homens. Mas o que há de errado nisso?
Se a Jornada só funciona para heróis masculinos, então ela vai falhar para explicar as histórias com personagens femininos, ou talvez isto explique porque tantos protagonistas femininos com atitudes masculinizadas apareceram em filmes e romances best-sellers. Mais do que propagandear a ideia de que o homem é heroico, a Jornada propõe que o heroísmo é uma atitude tipicamente masculina e a mulher é meramente um elemento acessório.12
7. O herói é um ingênuo.
Como ele é uma ferramenta ideológica, ele é esquemático, simplista e moralmente inocente. Não existem heróis na vida real. Os heróis que existem não se comportam como os heróis arquetípicos. As escolhas heroicas que acontecem na vida real nunca são precedidas das fases citadas no mito do herói.
Isto não é por acaso: o herói mítico não é um herói “de verdade”, ele é um personagem mitológico. Sua vida não é uma biografia, é a proposição de uma explicação teológica/mítica da vida. Suas atitudes são partes de um ritual. O herói passa por fases que supostamente simbolizam as diferentes fases da vida. Por isso é necessário que o herói encontre um mentor, que deixe a casa paterna, que enfrente o mundo e que morra no fim. Pois assim é a vida: saímos da segurança de nossos lares para, orientados por nossos mestres e amigos, enfrentar a dura realidade, que nos ensina e consome, até finalmente sermos derrotados por ela no fim e supostamente “renascermos” espiritualmente.
A Jornada do Herói, então, não descreve o heroísmo real, mas fases de um processo iniciático.
8. O conceito surge de comparações forçadas.
Campbell só se interessava pelas semelhanças entre os mitos, não pelas diferenças. Esta é uma atitude acadêmica controversa, que já fora denunciada por Platão, usando a personagem Sócrates, há mais de 2500 anos, em Atenas. Ao atacar os sofistas, Sócrates declarou que eles só se interessavam por dados que concordavam com suas ideias, o que significava que suas ideias não podiam ser destronadas pela realidade. Na prática, o sofismo produz um conhecimento idealizado e elegante, mas de pouca utilidade prática.
Os mitos existem para expressar valores que são caros aos seus criadores. Mesmo quando esses mitos possuem características em comum, estas semelhanças podem ser recursos empregados para expressar tais valores. Focar nas semelhanças em vez das diferenças silencia a mensagem específica de cada mito. Assim, a Jornada do Herói, ao representar o que muitos mitos têm em comum, se esquece do que cada um deles tem de especial.
9. Confusão entre espiritualidade e praticidade.
Como o herói era originalmente um personagem mitológico (ou seja, religioso, pois segundo o próprio Campbell disse, “mitologia é o nome que damos à religião dos outros”), a sua história de vida não era senão uma justificativa teológica dos fatos que abordava. Isto quer dizer que o herói não é um homem de ação. Ele é um homem de religião. A sua ação não é mais do que um ritual.
Claro que, às vezes, para derrotar um grande mal você precisa aprender lições importantes e crescer como pessoa. Mas nem sempre. Normalmente, para derrotar um grande mal você só precisa bater nele com toda força, quantas vezes for necessário até que ele pare de respirar. Basicamente foi o que se fez com Hitler, por exemplo, enquanto certos pacifistas acreditavam que era possível despertar a empatia dos nazistas. Não há tempo e nem clima para encontro com a deusa ou para um retiro espiritual de crescimento pessoal enquanto se luta contra um inimigo real. Quando você voltar de sua egotrip, o mundo já poderá estar destruído.
A ideia do monomito é irrealista porque confunde guerra com uma espécie de ioga e o inimigo real com uma espécie de oponente no xadrez, que espera seu próximo movimento. Por mais que o conceito seja belo, isto não se aplica à realidade.
10. O trabalho de Campbell é eurocêntrico.
Vamos colocar isso de forma bem rude: Nos anos 40 um americano branco escreveu sobre os mitos de outras culturas e decidiu que entendia o seu significado melhor do que essas próprias culturas.10
11. Seguir a Jornada Não Leva a uma Boa História e não Garante o Sucesso.
Isto deveria ser meio evidente, mas é preciso que alguém diga.12 Há muitas histórias que seguem religiosamente a Jornada do Herói e que não são nem de longe boas e muito menos comercialmente bem-sucedidas. Se fossem bem-sucedidas comercialmente, ainda que ruins, ainda haveria argumentos para defender a adesão à Jornada, mas o que se pode dizer em defesa de filmes como “Marte Precisa de Mães”, “Van Helsing” e “Battlefield Earth”?
12. A Jornada é, no fundo, niilista.
Isso quer dizer, basicamente, que alguém que realmente creia que a Jornada do Herói é a única (ou mesmo a mais sensacional) forma de se narrar uma história fatalmente acabará por crer que não vale a pena narrar novas histórias, pois todas são a mesma coisa. Ainda que eu concorde que o mundo se beneficiaria se pelo menos dois terços dos escritores se dedicassem a outro ofício, como, por exemplo, pintar paredes ou cuidar de vacas; também creio que a castração mental a que estes coitados foram submetidos é o que explica que sua produção seja tão sem sabor.
13. É um clichê já exaurido.
Nem é preciso dizer que eu, por exemplo, só estou escrevendo esta parede de texto aqui porque sou um entre muitos que já se cansou de ler histórias que não só parecem iguais, mas cujos autores acreditam que são iguais.
Precisamos Retornar à Rebeldia.
Vimos, portanto, que a Jornada do Herói não foi pensada originalmente como um modelo para a construção de narrativas ficcionais, mas como uma tentativa, um tanto controversa em seu próprio campo, mas erudita e embasada, para encontrar padrões comuns a diferentes mitologias, inserindo-se no contexto da busca antropológica pelo arquétipo, busca esta que incluía outros autores como Frazier, Jung e Raglan.
Por que, então, esta obra acabou sendo empregada de uma forma que o próprio autor não imaginava?
Talvez porque seja útil ao modelo de negócios e à ideologia que permeiam a indústria do entretenimento. Por mais que seja possível construir narrativas de sucesso completamente alheias ao modelo da Jornada, acredita-se que as narrativas construídas segundo ela teriam mais impacto sobre o inconsciente coletivo, por manipularem aspectos profundos da psique humana, os tais arquétipos de que Jung falava. Até que ponto isto é verdade ou apenas wishful thinking é algo que não pretendo discutir. O que pretendo discutir é porque devemos nos rebelar contra isso.
A Jornada do Herói é parte de uma nova onda de academicismo. Houve uma época em que as artes se baseavam em convenções e modelos prontos. Esta época foi chamada de “classicismo” ou “academicismo” e durou do fim da Idade Média até o início do século XX, compreendendo fases como o Renascimento, o Barroco e o Neoclassicismo. Foi preciso o concurso de muitos homens e mulheres de gênio para conseguir derrubar a força conservadora da Academia e libertar o artista para criar livremente. Mas em outro momento falaremos sobre a obsolescência do modernismo.
A Jornada do Herói empobrece o discurso literário. Quando a maioria dos autores segue um mesmo padrão de criação, torna-se cada vez mais difícil imaginar a possibilidade de um padrão desviante. Assim, o discurso literário tende a se estreitar. Quando o empobrecimento foi imposto pelo Estado, como no caso do Realismo Socialista ou da Arte Genuinamente Alemã, artistas de qualidade gritaram. Por que devemos nos conformar quando isto é imposto pelos donos das estruturas econômicas de poder?
A Jornada do Herói reflete um programa político. Trata-se do neoconservadorismo e suas implicações nazifascistas, que incluem a noção de indivíduos superiores, pessoas predestinadas ao poder e grandes conflitos aos quais os “comuns” não tem acesso senão como expectadores ou vítimas. O discurso elitista é evidente em “Guerra nas Estrelas”, por exemplo.
A Jornada do Herói é uma forma de colocar os jovens autores sob o estrito controle da autoridade. O próprio conceito de “mentor” parece talhado para que os jovens se conformem em fazer tudo o que seus editores lhes mandam fazer. Esse autoritarismo justificado pela suposta “ciência” de Campbell acaba impedindo que os jovens testem seus caminhos espontaneamente. Em vez disso eles se educam repetindo padrões predeterminados, o que diminui as oportunidades para novas descobertas. Não é de espantar que, nos últimos anos, a maioria das obras da cultura pop, como os filmes blockbusters se tornaram cheias de clichês a ponto de os críticos dizerem que o público se infantilizou.
A Jornada do Herói infantiliza o leitor. Porque emprega o mesmo tipo de apelo místico e religioso dos mitos milenares. Apela ao irracional, ao arquétipo em vez do discurso. À tradição em vez da descoberta. O tipo de conhecimento que preconiza não é o conhecimento da descoberta, mas o conhecimento revelado, que é transmitido pelo status quo espiritual. O herói não é alguém que se faz, mas alguém que é moldado. Ele não é sujeito da ação, mas sujeito à ação. O chamado é irresistível. O herói não quer, mas é obrigado a cumprir o seu papel. Este, aliás, é um tema recorrente na tragédia.
A Jornada do Herói é fatalista. Ao negar a possibilidade da construção de discursos válidos que não sigam o protocolo, ela se coaduna com uma visão determinista da criação artística. Esta visão, aliás, tem muitos pontos de contato com a teologia calvinista da “predestinação” que, por sinal, é muito popular nos Estados Unidos. Podemos dizer, então, que o conceito do monomito reflete a formação cultural de seu autor.
O artista não é alguém preocupado com receitas e projetos básicos. Autores, por exemplo, devem aprender a estruturas e depois esquecê-las, tal como os grandes cozinheiros não precisam consultar o caderno de receitas da vovó antes de baterem cada ovo ou flambarem cada crepe. Embora não seja absurdo sugerir a um iniciante que conheça a estrutura, propor a Jornada do Herói como paradigma para as obras acabadas é como exigir que o chefe de um restaurante consulte um caderno de receitas para fazer cada prato.
Sabedores da importância de resistir, cabe-nos perguntar se é viável resistir. Afinal, o escritor, tal como o herói, também enfrenta um chamado à ação, no caso, o chamado a fazer a sua própria obra, em um mundo determinado a calar sua voz, a impor-lhe paradigmas limitadores, a derrubar sua iniciativa. Ideologias niilistas existem em várias formas, e todas negam essencialmente a validade do conhecimento. A obsessão pelo monomito me parece uma destas formas de negação. Desta forma, o monomito tal como expresso nesta versão simplificada do trabalho de Campbell é uma abordagem anti-intelectual da cultura. Algo que fala muito forte aos corações daqueles que temem o poder dos intelectuais. Ergo: é uma ideologia reacionária com forte elemento de controle social.
Heróis de Verdade Não São Assim.
Como já foi bem dito, a Jornada do Herói não é sobre heróis, mas sobre personagens de mitos. O herói mítico não é aquilo que popularmente se chama de “herói”, mas uma espécie de sacerdote que se auto-imola na busca do conhecimento ou da salvação de seu povo. A morte do herói é importante justamente porque o mito heroico é uma lição de religião.10
Mas se você claramente disser ao seu leitor estas coisas, ele se sentirá escandalizado, especialmente pelo caráter pagão da Jornada. E o preconceito religioso nem será o item mais causador de rejeição: nós aprendemos a separar a religião de nossa vida cotidiana e a maioria das pessoas não procura deliberadamente uma atividade religiosa como lazer.
Heróis de verdade são diferentes dos heróis míticos porque não veem no sacrifício um fim em si. Diferente do herói mítico, que se imola com um objetivo, o herói comum encara o autossacrifício como um efeito colateral de seu objetivo. A ideia não é morrer, mas arriscar a vida para realizar um feito. A realização do feito é o que mais importa. A morte é algo a se evitar, na medida do possível.
Mas o trabalho de Campbell não tem nada a ver com heroísmo de verdade, mas com personagens literários que, mesmo quando inspirados em heróis reais, receberam grande dose de mitificação, a ponto de em muitos casos ser difícil discernir o homem debaixo da lenda. E o que faz Campbell? Ele estuda a lenda, como se ela fosse mais importante do que o homem. Se você quer entender o heroísmo, deveria estudar o herói, não os simulacros ideológicos construídos em torno dele e que, muitas vezes, existem para colocar o heroísmo original a serviço de projetos políticos ou religiosos posteriores. Veja o caso de Joana d’Arc, por exemplo, que foi queimada pela Igreja mas hoje é santificada pela mesma Igreja que a queimou. Seria certo estudar Joana d’Arc a partir das hagiografias escritas pela Igreja que hoje a cultua?
Heróis históricos são muito diferentes dos heróis mítico-literários estudados por Campbell. Raramente o chamado à ação vem encontrar o herói sossegado em seu canto. Normalmente o herói já é um sujeito de natureza irrequieta, que está percorrendo o mundo em busca de aventuras, como Che Guevara, T. E. Lawrence ou Tadeusz Kosciusko. Por fim, não existe nenhuma insistência em transformar o candidato a herói naquilo que ele acaba por ser. O herói é realmente dono de seu tempo e caso se recuse a lutar, como a maioria recusa, não terá segundo convite. O heroísmo é uma escolha que, na maioria das vezes, deve ser feita no passar de um segundo.
Quase todos os elementos da Jornada do Herói se apresentam como contraproducentes em situações reais, e é por isso que raramente as vidas fascinantes de indivíduos reais custam a chegar aos cinemas. Em geral só chegam quando, após sua morte, os roteiristas podem fazer deturpações suficientes para mitificar o personagem e enfiá-lo a marteladas no esquema pré-fabricado.
Mas no fim de contas: “um padrão literário não é um herói” e um contador que compara seu sofrimento no segundo grau ao estágio da “barriga da baleia” ainda é apenas um contador.
A Jornada Falha Onde Não Devia Falhar.
Se, como propõem os defensores da Jornada, o arco narrativo proposto por Campbell explicasse eficientemente a narrativa de cunho mitológico e heroico, as obras deliberadamente desviantes deste padrão deveriam ser de importância secundária ou mesmo irrelevantes. A descoberta de uma única obra relevante para a literatura mundial e não baseada na Jornada do Herói já seria uma ameaça significativa ao conceito. Sei muito bem que há bem mais do que uma história que desafia o paradigma, mas seria pleonástico estudar mais de uma, especialmente se analisarmos uma de grande repercussão e importância. Analisaremos então a “Odisseia”. Embora a obra dispense apresentações, farei uma, bem breve, para benefício dos jovens leitores que acaso não a conheçam.
Trata-se de um poema narrativo (épico) escrito originalmente em grego arcaico, datado de antes do século VII a.C., porém mais recente que a “Ilíada”, de que é uma sequência. Ambos são atribuídos a Homero, o lendário bardo cego de Atenas. Mais do que uma epopeia antiga, trata-se de uma obra literária de qualidade maiúscula, fundadora de uma grande quantidade de tradições literárias, que até hoje ainda inspira nossa cultura.
Narra a história de Ulisses (Odysseous, em grego) em sua jornada de volta para casa logo após a queda de Troia (Ílion) e sua destruição pelos aqueus e argivos, que se haviam unido para vingar o rapto de Helena. A viagem de volta seria relativamente simples, pois Ítaca, o reino natal de Ulisses, localizado no mar Jônico, poderia ser atingida após uma viagem de poucas semanas, com escalas nas ilhas do Egeu e fazendo o périplo do Peloponeso. No entanto, Ulisses levará dez anos para concluir a viagem, por expiar os muitos pecados que cometeu durante a conquista de Tróia.
O primeiro destes pecados foi a guerra em si, pois Troia era uma cidade protegida por Poseidon, o deus dos mares, o mesmo a quem os gregos adoravam. Atena, protetora de Ulisses, também se volta contra ele pois, para conquistar a cidade, ele empregou um ardil desonesto (o cavalo de Troia), ofendendo a deusa da Sabedoria e da Verdade. O derramamento de sangue de irmãos helenos, que falavam a mesma língua e cultuavam os mesmos deuses, também irou a Zeus, que pretendia unir os gregos em uma grande nação (e desse desejo surgiram o culto olímpico e as olimpíadas).
Os deuses, inicialmente sem que o saibamos, decidem que Ulisses deverá purgar seus pegados e sobreviver para servir de exemplo à humanidade. Mas os seus soldados, que tinham o sangue troiano diretamente em suas mãos, todos pereceriam.
Ao tempo em que acompanha as desventuras de Ulisses, Homero também narra os sofrimentos de sua esposa, Penélope, e de seu filho, Telêmaco, que convivem com a insolência de homens determinados a desposar a rainha e assumir o reino.
Contada de forma não linear, alternando entre cenários, e focando exclusivamente nas palavras e atos dos personagens, sem jamais analisar psicologicamente seus motivos, a Odisseia é um texto antiquíssimo, mas que rompe revolucionariamente com todos os cânones literários criados depois, INCLUSIVE, E PRINCIPALMENTE, A JORNADA DO HERÓI.
Na Odisseia não existe um “chamado à aventura”. A história já começa no meio da ação, com Ulisses vagando pelo mar. Mesmo quando ele narra em retrospectiva os fatos que o levaram a tal situação, nota-se que ele não “foi chamado”, ele fora, de fato, um dos iniciadores do movimento que produzira a Guerra de Troia e a sua jornada presente é uma viagem de volta. Estar perdido no mar era parte do castigo purificador que os deuses lhe infligiam por ter sido desencadeador da grande hecatombe da guerra por um motivo fútil, o rapto de Helena. Em momento algum Ulisses se recusou a ir, e os deuses o punem, mantendo-o afastado do lar e do leito conjugal, por ele ter se disposto a tão facilmente ter se afastado deles.
Não há cruzamento do limiar (a travessia da Hélade para Troia sequer é narrada), não há guardião do limiar a ultrapassar. Sim, há Poseidon, mas a história inteira se trava sobre o limiar que ele guarda (o mar) e travessia não tem caráter místico, mas meramente prático. As provações de Ulisses não o preparam para uma espécie de santidade, mas o punem por seus atos contrários às convenções da guerra justa.
Não houve iniciação alguma e há múltiplos encontros, com múltiplas deusas, em alguns casos é difícil discernir qual mulher é deusa e qual é uma tentação para que Ulisses nunca retorne. Então não há “encontro com a deusa”. Bem, não de forma individualizada. Os gregos aprendem muita coisa, inclusive com deuses, e encontram várias deusas várias vezes ao longo da guerra. Mas nenhum desses encontros tem a simbologia potente e individualizada que a Jornada do Herói supõe. Em alguns momentos Ulisses é de fato tentado: por Circe, que o enfeitiça para tê-lo como marido e quase o leva a cometer canibalismo, pela princesa dos feácios, que quase o convence a se tornar rei, pelas Hespérides… Enfim, Ulisses se encontra com várias mulheres, em vários lugares, e embora uma ou duas tenham apresentado intenções malignas, de tentação deliberada, a maior tentação está dentro do próprio Ulisses em alguns casos.
Se supusermos que o mar seria a trilha de lágrimas de Ulisses, posto que os diferentes episódios se sucedem em perigo até finalmente todos os tripulantes de sua embarcação terem sido mortos, notamos que não existe nenhum inimigo a ser derrotado, a não ser a natureza, personificada em Poseidon, e considerar esse deus como um “guardião do limiar” é forçar a barra, porque no esquema original da Jornada o limiar não poderia ser o mar inteiro. A vitória de Ulisses é simplesmente conseguir voltar para casa, e isto ocorre meio que por acaso, após ele ter conseguido, meio sem saber como, aplacar a ira dos deuses. Mas a esta altura os leitores sabem: os deuses saciaram sua vingança.
Ulisses não traz nenhuma recompensa de sua viagem. De fato a Odisseia inteira narra a sua volta para casa, e ele retorna com a roupa do corpo, envelhecido e esquecido. Tampouco podemos dizer que ele adquiriu “sabedoria” com o tempo: a forma como trata os pretendentes ao trono, e como posteriormente trata sua mulher Penélope, evidenciam que ele continua o mesmo bruto machista que causou uma guerra genocida por causa do rapto de uma mulher.
Assim, ao término da leitura da Odisseia, vemos que o nosso herói é um personagem muito mais complexo e multifacetado do que o modelo unidimensional da Jornada do Herói nos faz crer.
Outro exemplo de obra literária muito relevante que ignora totalmente o modelo da Jornada é a Divina Comédia, de Dante Aligheri. É verdade que aqui temos um chamado à ação e temos um protagonista que tenta resistir ao chamado. Mas o chamado ocorre quando o personagem já está há muito afastado da segurança do lar. Existe, sim, um mentor (a sombra de Virgílio), e temos alguns limiares a serem cruzados, mas isto é apenas algo óbvio, visto que a história em si busca descrever o inferno, o purgatório e o paraíso. Seria impossível que não houvesse limiares, subterrâneos e seus guardiões. Tão impossível que a sua presença se torna irrelevante para dizermos que são elementos da Jornada do Herói.
Não existem testes, aliados ou inimigos. Em momento algum o herói está sujeito a qualquer perigo. A sua aventura não é para arriscar a própria vida, mas para contemplar os frutos das vidas alheias até compreender a justiça de deus e poder se reunir com a sua amada Beatriz no paraíso.
Este aprendizado é a sua recompensa e o seu elixir. Mas ele só o obtém após percorrer os dez círculos do inferno, os sete degraus do purgatório e as nove esferas celestiais.
Este breve exemplo nos mostra como a Jornada do Herói falha para explicar o mito de Ulysses, como falha para diversos outros. Desta forma, não podemos considerá-la um modelo comum a todas as histórias, a não ser que resolvamos desconsiderar, definitivamente, o que as histórias tenham de específico e comparar à força o que parecer semelhante.
Existem Outras Formas de Compreender os Mitos.
Antes de Joseph Campbell, FitzRoy Richard Somerset, o quarto Lord Raglan, escreveu “O Herói: Um Estudo na Tradição, no Mito e no Drama”, uma obra que certamente esteve entre as leituras de Campbell antes e durante os seus estudos de mitologia comparada. Raglan foi bastante mais comedido que o autor americano, pois em vez de enxergar que todos os mitos se resumiam a um só, uma afirmativa por si só polêmica, ele preferiu dizer que existem certos elementos que costumam estar presentes nas biografias dos heróis míticos, sejam estes elementos originais ou adições posteriores com o objetivo de dar mais “heroísmo” ao personagem.
Raglan também chegara a um retrato muito diferente do herói. Enquanto Campbell está mais interessado no ciclo de suas ações, Raglan contempla o personagem em si, procurando responder a uma pergunta muito mais delimitada: o que torna um personagem “heroico”? A resposta estaria em um conjunto de vinte e dois elementos que, quando presentes na biografia (verdadeira ou mitificada) de um personagem, tenderiam a lhe dar um status de herói:
- A mãe do herói é uma jovem de sangue real (às vezes virgem);
- Seu pai é um rei;
- Possivelmente um parente próximo de sua mãe (às vezes a relação é até incestuosa, criando uma “maldição” para o herói);
- As circunstâncias de sua concepção são incomuns;
- Por isso ele é tido como sendo, na verdade, o filho de um deus;
- Ao nascer, sofre um atentado, perpetrado por seu pai, avô ou outro parente próximo;
- Mas sobrevive miraculosamente e é levado de seu local de nascimento;
- Então ele é criado por pais adotivos em uma província distante ou em um país estrangeiro;
- Pouco ou nada sabemos de sua infância;
- Mas ao chegar à idade adulta ele retorna ao seu futuro reino, às vezes contra a vontade de sua família adotiva;
- Ao vencer uma batalha contra um rei, gigante, dragão ou fera;
- Ele noiva e se casa com uma princesa, que pode ser filha de seu predecessor (às vezes sua irmã);
- E se torna rei;
- Por um tempo ele reina sem grandes problemas;
- Cria leis;
- Mas perde o favor dos deuses ou do povo;
- E é expulso do seu trono e da cidade;
- Após o que ele morre misteriosamente;
- O que quase sempre ocorre no topo de uma colina;
- Seus filhos, se os teve, não o sucedem;
- Seu corpo não é enterrado;
- Mas mesmo assim ele tem vários túmulos sagrados.
Raglan faz questão de dizer que a presença destes elementos na biografia de um personagem, mesmo a presença de todos eles, não é indício de que o personagem seja realmente mitológico, mas estes elementos conferem ao biografado um status espontâneo de heroísmo. Em alguns casos, quando a biografia de um personagem é manipulada por razões políticas (“endeusamento”), isto inclui a adição de alguns dos elementos da lista de Raglan. Segundo os estudiosos da obra de Raglan, os seguintes personagens históricos e mitológicos teriam as seguintes pontuações na escala heroica:
- Mitridates VI do Ponto, Édipo (22);
- Krishna (21);
- Moisés, Teseu (20);
- Artur e Jesus (19);
- Hércules, Rômulo, Maomé (17);
- Perseu (16);
- Beowulf, Jasão e Buda (15);
- Nicolau II, D. Pedro I e Zeus (14);
- Sansão, Robin Hood (13);
- Itamar Franco, Juscelino Kubitschek (12);
- Apolo (11);
- Aquiles, Getúlio Vargas (10);
- Ulisses, Harry Potter (8).
O trabalho de Lord Raglan tem algumas vantagens sobre o de Campbell, uma das principais sendo que, ao contrário da Jornada do Herói, as características do herói padrão podem ser associadas facilmente a personagens femininas. Vários estudos de feministas conseguiram criar padrões equivalentes, que utilizam as mesmas categorias de Raglan, acrescentando ou retirando no máximo um ou dois elementos. Mesmo as categorias de Raglan não modificadas podem encontrar eco em vários personagens mitológicos e históricos do sexo feminino, tais como Penélope, Helena de Troia, Genebra, Nefertiti, Semíramis, Joana d’Arc, Cleópatra e a Princesa Diana.
Mas o motivo de citar o trabalho de Raglan na conclusão deste artigo não é o de argumentar que o nobre britânico foi mais inteligente, sábio ou letrado que o mitologista americano, mas sim exemplificar que, mesmo para quem pretende estruturar sua literatura moderna sobre bases conservadoras e trabalhar com os arquétipos da humanidade, existem outros modelos além da Jornada do Herói e que não, não há necessidade de se impor esta estrutura narrativa como se fosse o modelo perfeito e acabado para a construção de roteiros de ficção.
Conclusões
Em primeiro lugar, todas estas críticas aqui elencadas já foram rebatidas por prosélitos do monomito. Mas em geral as refutações precedem as críticas, preventivamente, o que significa que aqueles que chegam a conhecer a Jornada do Herói já ficam prevenidos contra as críticas que ainda nem leram. Isto, claro, porque o proselitismo do monomito é muito mais prevalente que a sua crítica. Este artigo pretende ser uma gotinha diferente a mais nesse oceano.
Mas quando chegamos às conclusões de um artigo o que geralmente queremos é uma resposta do tipo “que fazer?”
Como este não é um artigo normal, escrito por um autor normal (neste blog eu faço questão de escrever com liberdade), eu farei a minha conclusão elencando “o que não fazer”.
- Não acredite que seja possível resumir toda forma de narrativa a uma estrutura única. Continue tentando aquilo que você quer fazer, mesmo que alguém diga que, no fim, ficou parecido com a tal estrutura que lhe dizem existir. Lembre-se que algumas histórias escritas antes de Campbell já se encaixavam no padrão sem que seus autores tivessem lido Campbell e elas nem são melhores e nem piores do que as escritas depois (eu tendo a crer que são melhores, mas concedo o benefício da dúvida).
- Não dê protagonismo ao que é secundário só porque alguém lhe disse que isso é importante. Não, não há necessidade de ser mais enfático ao descrever o momento em que o seu personagem sai de casa a fim de enquadrar melhor no monomito. Dê importância ao que realmente é importante para a sua história. Lembre-se que em muitas histórias reivindicadas pelos prosélitos do monomito há elementos faltando ou narrados brevemente.
- Não avalie a qualidade de uma obra pela sua aderência ao padrão do monomito. Isso é algo que um fanático religioso faria, ou um imbecil (mais ou menos a mesma coisa). Campbell não é um profeta, Vogler não é um sacerdote e o monomito não é uma religião. Tanto há obras boas e ruins entre as que seguem e as que não seguem o monomito.
- Não use *Deus Ex Machina*. Soluções mágicas e arbitrárias impressionavam ao público greco-romano de dois mil anos atrás. Se você escreve para esse público, não se importe com esse conselho, porém. Ou, claro, use esse recurso conscientemente e de propósito, em geral com o objetivo de fazer raiva no leitor ou fazê-lo rir, sabendo que muitos não diferenciarão a intenção e vão achar sua obra simplesmente mal escrita.
- Não seja piegas.
- Não estruture sua história conscientemente seguindo a Jornada do Herói. Mesmo nas histórias citadas pelos prosélitos do monomito há variações de padrões tão grandes que os críticos do conceito, como eu, se sentem à vontade de dizer que foram encaixadas a marteladas no padrão. Então, mesmo que queira usar a Jornada, use-a mais como referência ocasional do que como planta baixa para erguer as paredes de sua narrativa.
- Não se renda ao conservadorismo político. Um dos efeitos colaterais da Jornada do Herói está na regurgitação de ideologias antiquadas, como monarquismo, direito divino, profetismo etc. Coisas que eram comuns na crença popular de séculos e milênios passados, mas que soam datadas nos dias de hoje.
- Não crie um herói bobão. A última vez na história da literatura em que um herói de coração puro não soou piegas e antiquado foi na “Demanda do Santo Graal”.
- Não se limite aos mitos indo-europeus e semíticos. Fora dessas fronteiras mentais talvez existam ótimas histórias prontas para serem contadas. Por isso você não precisa escrever a milionésima quinta fantasia medieval derivada de “Beowulf” e da citada “Demanda do Santo Graal”.
- Não seja um crente no monomito. Mesmo que você enxergue valor no trabalho de Campbell e Vogler (eu mesmo enxergo), não vá bater à porta dos outros para perguntar se têm tempo para ouvir a Palavra. Principalmente, não force outros a seguirem aquilo.
- Conclave Rosa dos Ventos: O Estudo da Mitologia Comparada, as Crenças e Convicções Pessoais. ↩
- James Frazier: O Ramo Dourado. ↩
- C. G. Jung, “O Homem e Seus Símbolos”. ↩
- FitzRoy Somerset, Lord Raglan. O Herói: Um Estudo na Tradição, na Mitologia e no Drama. ↩
- Cristopher Vogler: A Jornada do Autor, Estrutura Mítica Para Escritores. ↩
- Jim Hull: Narrative First: Not Everything Is a Hero’s Journey. ↩
- Spiteful Critic: Peralá, Eu Já Vi Isso Antes: Como “Guerra nas Estrelas”, “Matrix” e “Harry Potter” são, na verdade, o mesmo filme. ↩
- Film Critic Hulk: Porque Deveríamos Parar com Essa Merda de Jornada do Herói. ↩
- Charlie Jane: Oito Razões Pelas Quais a Jornada do Herói Não Presta. ↩
- André Solo Porque Não Gosto de Joseph Campbell. ↩ ↩ ↩
- FanGirl Blog: A Jornada da Heroína: Como o Modelo de Campbell Não Serve. ↩
- Write If You Dare: A Jornada do Herói, ou “Monomito” ↩ ↩
Por ora, conheço a obra de Campbell apenas por seus comentadores. Isso dito, gostaria de exemplos mais concretos e pontuais para compreender teus comentários sobre a jornada do herói. 🙂
A de n.º 10 é a melhor de todas.
Bem. A princípio, acho que deverias conhecer a jornada para falar a respeito. Por outro lado, é sempre bom conhecer outro ponto de vista. Ainda mais se, de fato, for bem fundamentado. Afinal, toda oportunidade para sair da caverna (principalmente se e quando não a enxergamos) é bem vinda. Vamos ao segundo post da série…
Oi, JG.
Comecei a ler sua reflexões sobre o entrave que a jornada do herói tem se tornado em função do mercado editorial. E concordo com suas reflexões até aqui.
Como de uns tempos pra cá tenho me interessado nas questões de gênero e afins, vou tentar uma abordagem por esse caminho.
O Herói de Mil Faces é um livro fantástico, mas pelo que venho lido nos seus textos, muito mal compreendido e bastante desrespeitado.
Nesse livro Campbell desenterra uma estrutura narrativa presente em boa parte das narrativas existentes no ocidente. Todas elas relacionadas a personagens masculinos que são incumbidos de realizar determinadas tarefas (geralmente, tarefas de caráter sobre humano) que os próprios nunca imaginaram realizar ou sonharam ser capazes.
Numa associação, bem geral, podemos dizer que esse livro desnuda parte do inconsciente masculino, principalmente, adolescente que perdurou (ainda perdura) como modelo de existência a que somos obrigados a alcançar, como prova de masculinidade.
De certa forma, podemos dizer que na macro ideologia do patriarcado, a jornada do herói é a única forma de o jovem adolescente provar a sua capacidade de se tornar um homem adulto, capaz de superar o seu criador. Já que boa parte dos finais relacionados tendem a que o herói substitua o herói antigo em suas funções.
Falando de uma forma meio mística: é uma espécie de maldição que nos foi legada desde temos imemoriais e da qual não podemos, ou ainda não temos (na verdade, já há buscas pela quebra da maldição), como escapar.
Seguindo a minha linha de raciocínio, ao se afirmar a jornada do herói como exemplo a ser seguido para a construção de histórias, o mercado está pensando de uma forma bastante pervertida, atrasada e preconceituosa.
Talvez, em função das desconstruções promovidas pela pós-modernidade, a figura do herói se torna um pouco controversa. Afinal, é o período final das dependências; é o momento pela busca da autonomia psíquica. Já não há mais necessidade de heróis ou líderes. Cada um deve saber cuidar de si.
Só que essa independência se mostrou furada: nós não sabíamos cuidar de nós e necessitávamos de um líder. Buscou-se a independência antes do tempo e o século XX aconteceu. E, agora, o XXI se mostra cheio de vazios não solucionados.
Junte-se isso à identificação cada vez mais concreta da figura masculina com a figura do deus cristão, ao se tornar uma ausência na imagem familiar real, que abre espaço para a necessidade de masculinização da mulher. Ou seja, o afastamento do homem da narrativa familiar exige que um outro eixo seja construído. As mulheres se masculinizam ao entrar no mercado de trabalho e assumirem o papel dos pais em casa.
Eu sei que ha um conjunto de outros fatores não citados sobre esse assunto, mas eu só estou conectando pontos que são cenas históricas relacionadas.
Pensando bem, o avanço da figura feminina no espaço social se dá quando essa figura assume o papel da figura masculina deixado em abandono por seus atores. Quer dizer, os avanços sociais ainda estavam relacionados a um favorecimento do masculino. Ou seja, quem faz a história é o protagonista. Mas, isso está se modificando. E outras possibilidades de protagonismo estão sendo buscadas. Mesmo que as propagandas do dia da mulher ainda sejam exaltando a figura da mulher santa, casta e mãe.
Retomando: o posicionamento do editor ao valorizar certo aspecto do masculino realiza uma manutenção da ideologia patriarcal que não tem sido boa pra ninguém.
Em resumo, penso que se queremos nos da maldição de Édipo precisamos nos tornar mais conscientes. Não podemos dar uma de Laio, que bobamente tentou matar o filho por causa de uma profecia e não percebeu que a profecia só se realizou por que ele tentou matar o filho. (Estou dizendo de forma metafórica o que não consigo dizer conscientemente)
Pra não parecer paranoico e dizer que tudo é machismo (que, no fim das contas é o que eu estou dizendo): a ideia é fazer com que quem vem antes não surte na hora de ensinar o caminho a quem vem depois. Quer dizer: que os pais não esqueçam o que é ser adolescente, no período em que eles mais precisam saber o que é isso: quando os filhos deles foram adolescentes.
Bom, já escrevi demais por hoje. Vamos aos próximos capítulos.
Abraço!