> Um dos primeiros textos de ficção que escrevi, datado, provavelmente, de 2002.
De minha janela vejo, numa rua do morro em frente, uma moça que desce pela calçada. A distância não me permite conhecê-la, apenas vejo que não é nem muito magra e nem muito alta, que seus cabelos caem pelas costas e que é dessa cor mestiça indefinida e bela. Trajando uma blusa branca do tipo mais usado pelas moças comuns e uma blusa preta de mangas curtas decotada nas costas e – suponho – presa à frente por um lacinho de cordão.
Enquanto isso o ônibus vai subindo a rua maltratada, levantando poeira do chão. Seu ruído é amortecido pela distância. Uma mãe gorda, com cabelos negros em coque e usando uma enorme saia de brim, o espera no ponto, com – talvez – um recém-nascido nos braços, ou algo que está embrulhado em um tecido branco que pende do braço que o segura. Um cachorro sobe correndo o aclive, como que fugindo da ameaça mecânica que lhe vai atrás.
Perto do fim da rua, a copa farta de uma mangueira impede-me de ver aonde ela vai, a moça que ainda desce o morro em passo firme. Um pouco mais abaixo da mangueira, a rua se dobra num rigoroso cotovelo, mas a descida em linha reta continua por um desses escadões de concreto que há nos morros da cidade, substituindo a rua onde nenhum carro subiria. Ao lado direito da mangueira que interrompe o cenário há um botequim de morro, desses que moças não deviam frequentar. Mas ao lado dele está uma padaria, e em frente há um telefone público, males necessários no mundo em que vivermos. E é ali que deve estar a moça que eu vi há pouco descendo o morro, certamente ligando para o namorado ou aguardando que toque o telefone comunitário na hora combinada, esta forma suburbana de encontro amoroso.
O prédio cujo térreo é ocupado pela padaria e pelo botequim está em mau estado, decadente e descascado a ponto de eu percebê-lo desde aqui, e os andares de cima me parecem suspeitos. No que chamei de “padaria” na verdade deve haver o pão já murcho da primeira fornada matinal de seu fornecedor e ainda refrigerantes em garrafões de plástico, cigarros a varejo, doces embalados, balas baratas, biscoitos e baratas. No botequim, além de um pouco disso deve haver cachaça, salgadinhos rançosos, uma mesa de sinuca, mofo e um calendário de borracharia com a foto de alguma diva ocasional em trajes de Eva. E certamente sobrevive de sofisticações que talvez o escrúpulo do dono da padaria o impeça de aproveitar: contravenção e distribuição. Quem tem olhos para ler, leia.
Enquanto a primeira moça permanece oculta pela mangueira, fumando algum cigarro paraguaio enquanto aguarda o telefonema do distante amado, ou já dizendo-lhe emoções baratas extraídas de revistas ou das canções medonhas que se ouve no rádio, um bêbado maltrapilho de pernas sujas e unhas monstruosas sai do botequim – ou estarei fantasiando o que não posso ver?
Uma segunda moça, mais alta e de pernas magníficas, com ancas do tipo que chama a atenção do povo, vem descendo a mesma rua em passos deselegantes como se o comprido das pernas a incomodasse: os pés tocando o chão sem ritmo e desencontrando-se, os braços jogando a esmo para frente e para trás, com a cabeça quicando sobre o pescoço comprido, descontraída e desnecessária. Usa um short preto e blusa azul brilhante, larga e esvoaçante. Também vai ocultar-se atrás da mangueira que está na rua que se dobra ao meio em um cotovelo ríspido.
Dois meninos em uniforme de educação física sobem em zigue-zague, olhando para trás, gesticulando freneticamente e gritando de ouvir-se daqui. Descem duas meninas, também de shorts escandalosos debaixo das barras das imensas camisetas. Encontram os meninos e trocam gloriosas rápidas palavras que eu nunca saberei quais foram, olham em redor e gesticulam em direção à mangueira.
Um homem gordo, sem camisa, barrigão de fora, chinelos de dedo nos pés, está sendo na calçada em frente de sua casa afagando a cabeça de um cachorro grande de pêlo escuro e observando a cena com o desinteresse de quem está acostumado a ver isso todo dia, seja o que for… Um vira-latas se aproxima e é afugentado pelo cão enorme que estava recebendo o carinho do gordo. Perto do cotovelo em que se dobra a rua já se aglomeram pessoas variadas: homens descalços com roupas imundas, mulheres de barrigas molhadas de tanque e peitos esvaziados pela sucção febril de bocas famintas.
As duas moças estão ainda ocultas atrás da folhagem sólida da mangueira e uma janela se abre num dos suspeitos apartamentos que ocupam os andares superiores do prédio onde estão a padaria e o botequim. Um homem diferente desce a rua pisando a poeira amarela com cuidado elegante. Usa calças pretas de talhe largo que se amontoam sobre os sapatos e uma camisa de tecido bem passada, de cor também escura, talvez listrada ou xadrez. Vem se apressando nitidamente e algo reluz em sua mão direita. O vento vem, o tempo passa lento e o homem vai se escondendo atrás da copa da mangueira enorme que me oculta a visão.
Uma mulher negra, de avental à frente e lenço na cabeça, desce a escada sem prestar maior apreço à cena que eu não vejo. Crianças correm pela rua acima em um pique-pega sem descanso. Uma mulher loura falsa se debruça sobre o parapeito desgastado da janela do apartamento decadente que está defronte a cena.
A primeira moça desce a rua a correr sem modos, já não usa a mesma blusa preta de antes, mas uma camiseta comum. A chuva vem em gotas grossas e espaçadas que estalam nas telhas como granizo. A segunda moça permanece oculta e as pessoas que estavam em torno vão se espalhando. O homem de roupa escura desce atrás da primeira moça, talvez apenas fugindo do bando que o persegue agora. Minutos depois a rua é temporariamente ocupada por policiais que chegam numa viatura anunciada por sirenes desafinadas. A segunda moça sobe a rua cobrindo com as mãos o rosto enquanto um embrulho grande em tecido branco é posto dentro de um carro para ser levado. A chuva cai definitivamente, é noite agora, o silêncio está imposto.