Após a morte do ator e produtor mexicano Roberto Gómez Bolaños; criador dos personagens Chaves, Chespirito, Chapolin e outros menos conhecidos; a imprensa nacional ecoou uma série de elogios disparatados, que não condizem com a importância limitada do homenageado — que, malgrado seu apelido, não é nenhum Shakespeare moreno. Da mesma forma, surgiram artigos pretensiosos; que não vou linkar e nem citar, para não dar holofotes a quem não os merece; com críticas maliciosas ao trabalho de Bolaños, cobrando-lhe uma coerência e uma qualidade que ele não apenas não expressou (dadas as limitações com que foi forçado a trabalhar) como não poderia expressar (considerando a sua formação e os aspectos mais, digamos, ideológicos, do contexto em que criou).
É uma bizarrice querer enxergar em Bolaños algo além do que ele foi: um humorista simplório que apenas produziu um trabalho de relativa qualidade a partir da escassez de recursos que tinha à mão. Nunca é demais lembrar que ele trabalhou em uma televisão monopolista (a Televisa) em um regime político praticamente de partido único (o México do PRI) e que ele não conseguiu (e nem lhe teria sido permitido) apresentar qualquer questionamento político ou social relevante através de sua obra. Neste sentido, seu trabalho pode, e deve, ser reduzido ao que é: parte da cultura de entretenimento tolerada e/ou promovida por um regime político pouco democrático. No México ele não é levado a sério, por mais querido que seja, mas no Brasil, como se pode detectar em uma rápida pesquisa ao Google Scholar, ele foi assunto de numerosos estudos eruditos, tais como:
* [Representações Simbólicas da Sociedade](http://www.unicesumar.edu.br/pesquisa/periodicos/index.php/iccesumar/article/viewArticle/1394) por Prado, L.S.G. e Gomes, A.C.F.
* [Tendências de tradução de mexicanismos em roteiros e episódios das séries televisivas Chaves e Chapolin](https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/122579) por Santos, O.M.
* [A Vila é o Mundo: o seriado “Chaves” como expressão do conceito de glocalidade](http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sudeste2012/resumos/R33-0943-1.pdf) por Martins, R.B.F. e Caleiro, M.M.
* [O seriado Chaves: da alienação à manipulação do povo mexicano durante as décadas de 1970 e 1980](http://periodicos.pucminas.br/index.php/historiaemcurso/article/view/3449)
* [Comunicação e complexidade: uma leitura semiológica do programa do Chaves])
Mas se tem tanta gente falando mal do Roberto Bolaños porque ele, do seu jeito simples, despretensioso e brega, parece que adquiriu relevância cultural — comprovada pela profusão de estudos citada acima.
“Relevância cultural” nada tem a ver com qualidade objetiva (e “qualidade” é, em si mesma, um conceito muito fluido). As obras de Bolaños não se tornaram relevantes por serem representações altamente artísticas da identidade latino-americana (ainda que os eruditos sempre resistam a considerar o humorismo como uma forma elevada de arte), mas por serem representações características, contextualizadas e originais. Sim, originais. Há algo na obra de Bolaños que não está no resto da produção televisiva latino-americana (e muito menos está na produção televisiva brasileira). Este “algo” explica o interesse da academia por estes simplórios seriados.
A relevância não tem a ver com altas complexidades metafísicas, mas com o seu sucesso em expressar recortes da realidade latino-americana (mexicana em especial) de uma forma que normalmente ninguém expressa. Em geral os produtores de conteúdo latino-americanos se preocupam em macaquear a Europa e os EUA ao ponto de desenvolverem uma cegueira seletiva para a própria identidade, aos poucos se envergonham dela, e quando ela surge, varrem-na para debaixo do tapete. Nas novelas, brasileiras e mexicanas, as metrópoles são apresentadas de uma forma sanitizada, sem favelas, sem mendigos, sem crime, a não ser quanto estes elementos são necessários à trama. Finge-se uma harmonia social, uma estabilidade ecológica e uma ausência de vícios — já que estes sempre são apresentados como exceções.
É, talvez, na novela brasileira que essa harmonia está mais próxima da ruptura, por causa da opção “realista” de nossos noveleiros dos anos 70 (opção esta que se explica pelo contexto da ditadura). Mas que não se procure isto na “grande produção” cultural. Os seriados televisivos, os filmes. A não ser aqueles que objetivamente tratam do subdesenvolvimento, os demais o ignoram. Ignoram, principalmente, a relação de subordinação intelectual e cultural aos centros externos (Europa e EUA).
Bolaños não, criou personagens miseráveis, toscos, frutos da pobreza (mas não da incultura, alto lá), do improviso e da fragilidade de nossa condição humana colonizada. Nesse sentido eu acho que o trabalho dele ecoa, em outro contexto, mas com o mesmo tipo de mecanismo, o do José Mojica Marins (Zé do Caixão). Ambos foram artistas múltiplos: roteiristas, diretores, atores. Bolaños, mais competente no lado negocial, conseguiu monetizar suas criações (ainda que ao custo de amizades), mas em essência o que ambos fizeram tem pontos de contato: sua produção se baseia na ignorância positiva.
“Ignorância positiva” é a desconsideração deliberada das convenções culturais com que os demais artistas trabalham. Em Mojica, esta ignorância se reflete no desenvolvimento de técnicas totalmente amadoras e inovadoras para a construção de roteiros e até para o treinamento de atores. Autodidata em tudo e ignorante de muita coisa, Mojica pode ser considerado um cineasta “naïf” e o seu trabalho, por não partir de nenhuma lição canônica de cinema, ao mesmo tempo em que recai nas mais diversas armadilhas, também encontra as mais incríveis soluções. No caso de Bolaños, ao jogar para o alto todas as convenções da televisão mexicana e produzir um humor altamente teatral, ingênuo e amadorístico (os atores dos seriados eram, todos, originalmente amadores); Bolaños conseguiu captar aquilo que a televisão mexicana deliberadamente idealizava, escondia ou procurava perverter: a alma mexicana.
Algo da espontaneidade de Bolaños pode ser também encontrado em alguns dos melhores momentos de “Os Trapalhões” antes da crise entre Renato Aragão e os demais participantes — crise esta que, curiosamente, espelha e evoca a crise entre Bolaños e alguns de seus atores, como Rubén Aguirre (Jirafales), María Antonieta de las Nieves (Chiquinha) e Carlos Villagrán (Quico). Aliás, entre os participantes do programa, Bolaños praticamente só conservou a amizade de Edgar Vivar (Senhor Barriga) e Florinda Meza (ex-mulher de Villagrán, com quem acabou mais tarde se casando).
Dizer que o trabalho de Bolaños entrará para a história é tão prematuro quanto descartá-lo como irrelevante. O que é certo é que o sucesso duradouro de Chaves e Chapolim é um sintoma de que o povo se identifica com estes personagens ainda, tantos anos após a produção destas séries. A persistência desta identificação, por sua vez, diz muito sobre a incapacidade de recentes produções para sensibilizarem o povo da mesma forma. A morte física de Bolaños (artisticamente ele já estava aposentado há muito tempo) deixa um espaço vazio que ninguém sequer procurou preencher.