Aguardei um pouco para escrever alguma coisa sobre o caso
da intervenção do Greenpeace no Peru porque as minhas
ideias sobre o caso ainda estavam muito misturadas, só que
elas ainda estão e eu me sinto ainda assim compelido a
dizer alguma coisa, com base em impressões que eu já tinha
antes, e que só foram confirmadas pelo que aconteceu.
Meu comentário se baseia na paulatina observação da
cultura de massas que nos é imposta pelos Estados Unidos
— cinema, revistas em quadrinhos, televisão — e da
maneira como esta se relaciona com sítios históricos e
arqueológicos em geral, os países subdesenvolvidos e
suas realizações e quaisquer outras culturas, mesmo
desenvolvidas, que não estejam inseridas no universo
anglo-saxão.
Os EUA Ainda São uma Cultura Colonial
A civilização norte-americana (que nisto se assemelha
com a brasileira) ainda tem um caráter colonial, sem
verdadeiras raízes no espaço geográfico em que se
instalou. Uma “cultura colonial” se caracteriza pela
desconexão entre o homem e seu espaço histórico e
geográfico. As pessoas não têm genealogias, não conhecem a
história e as lendas dos marcos naturais que as cercam e
possuem uma relação hostil com a natureza.
Este tipo de relação não é exclusivo dos Estados Unidos e
nem é criação recente: os colonos romanos se sentiam mais
ou menos da mesma forma quando se instalavam nas províncias,
por exemplo (e este é mais um surpreendente ponto de
contato que nos permite fazer paralelos entre o Império
Romano e os Estados Unidos). Cito-a neste momento apenas
para ressaltar que esta desconexão (que nós brasileiros
entendemos tão bem porque a vivemos também) ajuda a
explicar o tema proposto.
Culturas Coloniais Resultam da Violência
A implantação de uma colônia nunca poderá ser um processo
pacífico, nem mesmo se o espaço a ser ocupado estiver
inteiramente desabitado. O simples translado do colono de
sua terra original já é um ato violento, que o arranca de
sua história, de sua família, de seus mitos e de sua
relação afetiva com o espaço geográfico. Rios de tinta
já foram gastos falando sobre isso, então me detenho.
Mas no caso específico da civilização norte-americana, a
violência tem uma camada extra, pois havia muitos povos
ocupando o espaço que se pretendia colonizar e a
colonização somente pôde ocorrer através da eliminação ou
expulsão destes povos, processos que são idênticos, pois,
se o translado do colono já é um processo violento, a
expulsão do nativo o é ainda mais, especialmente porque,
gradualmente, não haveria mais para onde o nativo pudesse
recuar em busca da paz.
A supressão das culturas nativas se deu através, claro,
da supressão da existência física daqueles povos, um
processo que continua até os dias de hoje, através de
medidas genocidas que o governo dos Estados Unidos tem
mantido, como a esterilização forçada de mulheres
ameríndias nas reservas indígenas. Esta supressão física
resultou, também, na supressão cultural, muito embora
a correspondência de ambas não seja exata: certos
elementos da cultura indígena passaram aos brancos e
houve grupos indígenas que sobreviveram, mas perderam a
sua cultura.
Este processo de destruição explica a citada desconexão
com o espaço histórico, geográfico e natural. Explica,
também, a visão da natureza como algo a ser conquistado
a todo custo, uma ideologia que está presente nas histórias
sobre o “faroeste” e que se transplantou, mais recentemente,
para a ficção científica e a fantasia. No fim do processo
o habitante contempla como “inexplicáveis” os feitos de
culturas “perdidas” como os Anasazi, os construtores de
montes e os “pueblos”.
A Conquista Colonial Criou Seus Mitos
Nenhuma cultura pode existir sem mitos. Através deles os
indivíduos constroem laços recíprocos, explicam sua
relação com o espaço geográfico e determinam sua política
para com outros povos e culturas. O fato de um mito não ser
chamado de “mito” é algo totalmente irrelevante neste processo.
A conquista colonial da América do Norte criou os seus
mitos, para justificar e ideologizar os processos através
dos quais os nativos foram expropriados de suas terras,
reprimidos em suas culturas e finalmente eliminados
fisicamente.
Não pretendendo me aprofundar nisso, cito três mitos
principais, porque interessam ao ponto que analisamos:
- O “pioneiro puritano”
- Os “pais fundadores”
- O “faroeste”
O pioneiro chega à América imbuído de uma ideia positiva,
que é a de viver suas crenças em liberdade — ou pelo
menos é isso que o mito expressa. No entanto, ele também
chega trazendo consigo todo o arcabouço de crenças e
ideologias que pretente usar. O pioneiro não vem disposto
a aprender nada do novo mundo, e de fato só aprende dele
o mínimo necessário. As semelhanças de clima e vegetação
tornam desnecessário um contato maior com os saberes
tradicionais dos nativos. Por causa disso é que os contatos
iniciais entre os colonos europeus e os habitantes da costa
leste resultam no desaparecimento de suas culturas.
Os pais fundadores, por sua vez, vivendo em uma época em
que tal processo cruento já havia sido terminado, pelo
menos na costa leste, não precisaram de uma ideologia de
confronto e superstição. Seu inimigo era externo, mas
igualmente externos eram os seus interesses culturais e
econômicos. Não há qualquer espaço para as culturas nativas
no texto da Constituição dos Estados Unidos da América,
e este momento de glória da “liberdade” coincide com o
avanço incessante da colonização para o oeste, difundindo
o genocídio.
O faroeste, mito americano por excelência, passa a borracha
sobre a cultura material e humana dos nativos, apresentando
os colonos como desbravadores de uma terra virgem,
desconsiderando completamente as interações anteriores dos
nativos com ela.
Estes citados mitos cumprem todos a função de justificativa
dos atos, feitos e crenças dos perpetradores do processo
colonial.
A Justificação se Traduziu em um Iconoclasmo
Para explicar e justificar a destruição dos povos nativos
e a resultante ignorância atual sobre as suas realizações
a mitologia americana desenvolveu um aspecto secundário em
seus mitos, uma espécie de “iconoclasmo” solerte.
Os iconoclastas originais destruíam as imagens nas
igrejas porque acreditavam que elas eram uma forma de
idolatria, ou induziam os ignorantes à idolatria, o que
dava no mesmo. O iconoclasmo da mitologia americana
apresenta como descartáveis aquilo que outros povos e
culturas consideram sagrado: as relíquias e ruínas do
passado.
Uma vez que a cultura norte-americana tem um traço
predominantemente colonial (e ainda colonialista) e se
assenta sobre os cadáveres de dezenas de povos exterminados
num dos maiores genocídios da história humana, ela sempre
procurou apresentar como irrelevantes as realizações de
tais povos — o que é natural, neste contexto. Porém, a
persistência dessa desconsideração pelas realizações dos
ameríndios influenciou a atitude cultural dos americanos
(e daqueles influenciados por sua cultura de massas) também
no modo como observam as realizações de quaisquer outros
povos. Vale lembrar, neste ponto, que o desprezo pelas
realizações materiais dos povos ditos “selvagens” é
compartilhado pelas nações européias, mas estas,
diferentemente dos Estados Unidos, não viveram o
colonialismo recente em seu território, mas o praticaram
além-mar. Isto explica porque na Europa coexiste um
profundo respeito por suas antigas ruínas e sua história,
ao mesmo tempo em que faz sucesso um charlatão como Erich
von Däniken, cujo trabalho deprecia a capacidade técnica e
intelectual dos povos não brancos ao atribuir qualquer
traço mais avançado de cultura encontrado em regiões
“selvagens” a uma influência alienígena — nunca a uma
civilização local destruída pelo colonialismo. O próprio
conceito de “civilização perdida” é uma maneira de
ocultar o genocídio praticado pelo colonialismo contra
povos desenvolvidos culturalmente, mas não detentores de
tecnologia bélica tão eficaz.
A atitude dos americanos difere da dos europeus porque eles
não apenas não compreendem a natureza de obras grandiosas,
como os “pueblos” ou as habitações anasazi como costumam
enxergá-las como meras curiosidades, cuja preservação é mais
importante como fonte de recursos (na maioria das vezes o
turismo de europeus e gente que pensa como eles) do que
como fonte de algo imaterial. Disso resulta a cultura do
museu, que relega a espaços mortos e controlados todo
objeto historica ou culturalmente interessante. Mas a
tendência a avaliar tudo em termos monetários é um traço
por demais abrangente da cultura americana para que se
possa vê-lo como algo raso ou recente: ele resulta da
interação dos americanos com os seus mitos fundadores, e
nesses mitos a natureza era vista como fonte de recursos,
e todo objeto existente no espaço natural era parte do
espólio a se conquistar, se tivesse valor objetivo, ou algo
a ser deixado lá, se não o tivesse.
O Iconoclasmo Como Espetáculo da Destruição
Um tema frequente na cultura de massas americana é a
destruição espetacular de prédios antigos, o que muitas
vezes ocorre quando o herói retira de tal prédio um
objeto cobiçado (como um grande diamante, um ídolo ou
algo assim). O processo é simbólico, representando a
destruição de um povo quando, em nome do ganho imediato
(o valor monetário), um objeto central à sua cultura é
retirado de seu contexto. A remoção do ídolo de ouro
evoca a instrumentalização do nativo a serviço do
colonialismo, o que leva à destruição de suas relações
sociais e de sua economia tradicional.
Mas este não é o único tipo de destruição de antiguidades
que pode ser visto na cultura de massas. Há casos em que o
herói aprisionado no castelo precisa explodi-lo para
escapar, há casos em que o antigo edifício é identificado
como de natureza “maligna” e é preciso derrubá-lo para
evitar que seu mal se espalhe e há casos em que
simplesmente o vilão deseja destruir um prédio antigo para
demonstrar o quanto é mau e louco.
O herói prisioneiro que escapa destruindo o castelo é
outro símbolo, do indivíduo preso pela tradição e que
deseja escapar dela violentamente, não somente salvando a
si, como impedindo que ela aprisione a outros. Esta
motivação altruísta justifica a atitude destrutiva.
O antigo edifício maligno é um pouco mais simplista,
refletindo apenas o desprezo do colono pelas ruínas que
encontra, testemunhos do povo que seus antepassados
dizimaram. Reafirmar a malignidade das ruínsa é uma
forma de desqualificar os povos antigos e justificar
a sua destruição no passado, e o apagamento de seus
vestígios no presente.
Mas é justamente nos casos em que a destruição ocorre
sem outra justificativa que a vontade do vilão que nós
podemos identificar o último efeito do iconoclasmo
presente na ideologia dos mitos fundadores americanos:
os objetos e monumentos herdados do passado são
descartáveis, eles podem ser destruídos apenas para
fins de construção do caráter do vilão. Tal como um
adelantado espanhol causava discórdia no seio de uma
civilização e a conduzia à guerra civil para facilitar
seu saque e escravização, os vilões (e ocasionalmente
até os heróis) podem trazer destruição de coisas que
muitas vezes sequer compreendem (ou compreendem de
uma forma parcial, dado o desenraizamento) apenas para
mostrar que são maus, desastrados ou desapegados de
valores. Destrói-se a Mona Lisa como um ato de rebeldia
artística, quebra-se um famoso diamante para mostrar
estoicismo ante valores materiais, demole-se um prédio
histórico para mostrar coragem ou loucura.
A destruição se torna um espetáculo autojustificado.
Os Fins Justificam os Meios
Tudo isso escoa para as ideologias políticas, pois tudo,
enfim, se encontra no espaço cívico. As citadas ideologias
e seus mitos, ao criarem uma cultura de receio ou desprezo
em relação ao passado, produz um impulso progressista
intenso e a todo custo, que talvez seja o maior fundador
do progresso moderno.
Se o passo existe somente nos espaços controlados dos
museus, parques e circos, ele é apenas uma fonte de
recursos e ideias que podem ser monetizados. Não vale a
pena preservar aquilo que quase ninguém quer ver.
Mas de tudo o que mais influencia a política é o sentimento
de superioridade do colono em relação ao povo que suplantou
pela força. Talvez nenhuma outra cultura atual idolatre de
forma tão explícita o uso da força na resolução de
problemas. Trata-se de uma mudança radical em relação ao
tipo de herói do faroeste, um humilde diante de uma
natureza ampla e hostil, que vencia pela capacidade de agir
com precisão e exclusivamente no instante certo. Saiu de
cena o herói franzino que sabe esperar a hora para sacar
seu Colt ou que sabe onde atirar para não gastar balas
à toa. O herói americano mais típico de hoje é um
brutamontes que alia força física superior a uma capacidade
mítica de resolver problemas. Nesse sentido o herói atual
é mais próximo do herói greco-romano original, um semideus,
enquanto o herói do faroeste agora parece verdadeiramente
um anti-herói, pois não vence por seus atributos inatos,
mas através do “jeitinho” (o que talvez explique o
fascínio brasileiro pelo faroeste).
O colono que se justifica pela força (“might is right”)
não precisa explicar os “danos colaterais” da conquista
da terra. Embora na vida real as pessoas ainda vomitem
diante da ideia de matar crianças para se tomar uma cidade,
cada vez mais elas aceitam, em teoria, que o extermínio
seja um mal menor.
Nesse contexto o que pretendo dizer é que o excepcionalismo
fundado na força produz a ideologia do “dano colateral” e
dos fins que justificam os meios. Isto nos leva ao ativismo
do “Greenpeace”, que há muito tempo realiza ações
controversas, que já causaram, mais de uma vez, a morte de
ativistas ou de pessoas contra quem se protestava.
Acontece que os membros do “Greenpeace” não estão imunes
a estas ideologias, não só pela massiva presença de
norte-americanos em seus quadros, mas também pela difusão
dos valores fundacionais dos Estados Unidos através de
sua indústria de entretenimento — o que leva tais valores
a países onde a atitude em relação ao passado era
diferente até bem pouco tempo.
Assim, quando o “Greenpeace” decide que é uma boa ideia
fazer uma “intervenção” no deserto de Nazca, possivelmente
danificando um antiquíssimo monumento histórico, eles não
o fizeram de forma inexplicável: séculos e décadas de
bombardeio com a ideologia de justificação do colonialismo
fizeram com que eles, talvez inconscientemente, adquirissem
um desprezo pela herança cultural dos povos extintos.
Simplesmente eles não conseguem compreender os geoglifos
de Nazca como algo significativo, ou pelo menos entendem
que o seu ativismo (“fins”) é mais importante do que a
preservação do patrimônio cultural de um país. Afinal,
até há bem pouco tempo os colonos (americanos inclusive,
pois também os EUA agiram como potência colonial) não viam
nada errado em roubar e depredar monumentos de outros povos
para seu próprio lucro. Seria até mais bonito fazê-lo em
nome do lucro coletivo da humanidade: se fosse para salvar
o mundo, destruiríamos uma pirâmide? O simples fato de tal
questão ser colocada é uma evidência de que há uma ferida
que precisa ser purgada: a ferida que a mentalidade
colonialista deixou em nós, que aqui estamos ocupando a
terra que um dia pertenceu a outro povo.
Seria de bom tom que respeitássemos esta casa, mesmo que
a tenhamos roubado, mas sabemos bem que os ladrões não
respeitam o que roubam.