“Ultimamente eu venho me sentindo como quem escreve no meio de uma guerra.” Este é um sentimento ecoado por um jovem autor americano, diante das ideias que predominam no meio literário de lá. Ideias que, como um lento veneno, se espalham pelo mundo e vão esterilizando outras literaturas, até transformá-las no cadáver ambulante e perfumado em que se transformou a ficção ianque.
Os novos autores parecem obcecados por não escreverem bastante rápido ou com suficiente frequência, somo se fossem galinhas obrigadas a manter uma quota de ovos para não acabarem engrossando uma canja. Há os que lamentam não conseguirem, há os que se orgulham de produzirem milhares de palavras por dia, como se a diarreia fosse um sinal de boa saúde.
Esta deformidade conceitual sobre a literatura resulta da difusão do apelo ao número, um entre os muitos erros de raciocínio que dificultam o entendimento entre nós. Infelizmente, um erro comum e que não deixará de ser cometido tão cedo porque os números são símbolos fortes. Porém, não há nenhuma confissão de burrice mais evidente, a não ser, talvez, a grosseria do ataque pessoal. O apelo ao número pode ser resumido, essencialmente, na incapacidade de compreender a diferença entre qualidade e quantidade. Raciocínios mais simplórios adoram explorar a quantidade porque ela é transparente e mensurável, enquanto a qualidade é esfíngica e complexa. Em suma: apelar ao número é se conformar com uma compreensão rasa da realidade. Não é o tipo de coisa que pessoas inteligentes deveriam fazer.
Que o apelo ao número seja popular entre os formados em exatas, não me causa surpresa. A formação nesta área tende a ser predominantemente analítica e sequencial, avessa a sistematizações e amiga de quantificações. Engenheiros estão mais interessados em quantas sacas de cimento serão usadas para construir uma obra do que em saber o que é, afinal, “cimento”, ou em que condições ele foi produzido e transportado. A miopia do raciocínio numérico não é incompatível com as ciências exatas. Embora a maioria dos adeptos de tais ciências sejam bastante espertos para não se limitarem a isso, é perfeitamente possível ser um engenheiro competente, mas uma besta quadrada em termos de entendimento da economia, da política e da sociedade. Tanto quanto é possível um formado em ciências sociais entender melhor de tudo isso mas não conseguir prever que colocar muito peso na caçamba de uma pickup pode fazê-la capotar. O que torna as pessoas competentes além de meras habilidades adestradas é a capacidade de síntese, é o diálogo com diferentes formas de pensar. Dizia o teólogo que devemos temer ao homem que só leu um livro (“timeo hominem unius libri”), mas isso pode ser expandido para um conceito mais amplo: devemos temer a quem só enxerga a realidade por um lado só.
Que o apelo ao número seja encontrado entre autores e leitores de literatura é algo mais complexo. Pode ser reflexo do fetiche das exatas, que, em nosso país, foram colocadas em um pedestal pelo paradigma tecnicista (ou tecnofascista) da ditadura, ou pode ser simplesmente falta de sofisticação intelectual: é perfeitamente possível ser burro e ainda escrever bem… tanto quanto é possível que um gênio escreva uma prosa horrível.
Causa-me espanto a facilidade com que o apelo ao número se populariza entre os leitores e autores de literatura no Brasil. Refiro-me, claro, à ideia de que o escritor deve se submeter a “técnicas” e “truques” para aumentar a sua “produtividade.” A popularidade desses conceitos revela o quanto a literatura brasileira e seu público estão de quatro e com as calças abaixadas diante da ideologia do best-seller, que consiste na transformação do fazer literário em uma linha de montagem de produtos padronizados. O conceito de “produtividade” é originário da organização empresarial e foi enxertado no contexto literário a partir do momento em que escrever deixa ser um processo artístico e pessoal e passa a ser o fornecimento de um produto a um mercado.
São poucas as vozes que [questionam a validade do mito do escritor produtivo]) porque a literatura é cada vez mais vista como uma ferramenta de alpinismo social, e não como uma busca pessoal e artística. O fazer literário passou a ser um acessório: importa se vende, não “o que” se vende. Os jovens autores cresceram vendo a divulgação de autores de best-sellers, como Sydney Sheldon, Paulo Coelho, Stephen King, J. K. Rowling, George R. R. Martin e outros menos cotados e adquiriram a aspiração literária não porque admirem os resultados, mas porque invejam o dinheiro, os bens materiais e a tietagem que existem em torno de tais nomes. Estes autores que constroem suas carreiras de cabeça para baixo, pensando primeiro em se tornarem famosos e depois tentando adivinhar o que devem escrever para conseguirem isso, são o público ideal para charlatães de todo tipo.
O foco na qualidade, na relevância, parece ser percebido hoje mais como um defeito do que como uma virtude. Isto transpassa toda a produção cultural, de textos a música, de quadrinhos a cinema. Mas para além dos números, (ou aquém, quem sabe) existe muita gente produzindo qualidade. É preciso garimpar e, encontrando, compartilhar. Este é o caminho da resistência.
Muito provavelmente essa cultura do “escreva rápido e muito” começou nos EUA.
Lá dá para viver de escrita e autores como Ray Bradbury, Robert E. Howard e Clark Ashton Smith sustentavam suas famílias com a escrita.
Portanto, eles tinham que produzir bastante para garantir o pão da mesa, fora que revistas costumavam pagar por palavras. Alguns inclusive acusam Howard de esticar sem necessidade algumas histórias só para garantir um lucro extra.
É por isso que Bradbury dá conselhos como “escreve 2 mil palavras por dia” e Asimov dizia “escreva rápido, mais rápido” quando indagado que dicas ele daria a escritores iniciantes.
Eu acho válido ter metas, até mesmo um pouco saudável. O dia a dia tem muitas distrações e a maioria dos escritores tem que lidar com trabalho/estudo, ficando a atividade da escrita para o tempo que se consegue usar no fim do dia. É fácil se perder assim e acabar não fazendo nada. Não é todo mundo que consegue se focar muito bem.
E, em questão de meta, é fácil pensar numa meta numérica. Porque é uma meta simples de entender e que não depende de uma análise mais a fundo. Não é todo mundo que escreve apenas quando se está inspirado. E para dar segmento ao trabalho criativo, as vezes é preciso de certos artifícios, como estabelecer metas de produção.
Não se trata simplesmente de oferecer produtos, de escrever best-sellers ou mesmo de preferir quantidade ao invés de qualidade, embora, claro talvez isso seja muitas vezes utilizado dessa forma. Produtividade pode ser um conceito usado por empresas para medir a eficiência do trabalhador, mas discordo desse enxerto da forma como coloca. Mesmo mantendo-se como uma atividade artística, o artista pode precisar entender os seus próprios processos para tocar as suas produções artísticas para frente. E no final, é um dos significados originais de produto, no latim, não? Producere remete a conduzir, criar e gerar. Então porque não usar produtividade para entender esse producere?
O proprio Ray Bradbury em “Zen, a arte da escrita” comenta os seus processos. Ele pode não usar uma quantidade de palavras. Mas a forma dele escrever contos, um por semana, começando de forma crua e refinando… Não se pode dizer que foge tanto assim de uma linha de montagem. Embora, há de se pensar que, quando feita por uma pessoa só, processos repetitivos desses ainda são artesanato.
Quanto ao último paragrafo, não tenho nada para discordar. Além de mencionar uma coisa interessante. George Martin demora muito escrevendo os livros dele. E é muito criticado pelos fãs por isso. No final das contas, os próprios fãs acabam querendo algo mais como produto e não uma obra artística.