Recentemente as redes sociais se encheram de um estranho culto a dois autores nacionais: Ryoki Inoue e R. F. Lucchetti. Eu acho positivo que se cultue autores nacionais, considerando que a cultura de massas nos empurra goela abaixo tanto autor estrangeiro que alguns de nós se formam mais com leituras de traduções do que de originais, o que nos afasta de nossa tradição literária. Mas quando olhamos com atenção o que se diz sobre tais autores, vemos que eles são admirados pelos motivos errados.
Os fãs de Inoue e Lucchetti não estão interessados no que eles escreveram. Boa parte desses honestos padawans que elogiam esses autores não leram suas obras, ou leram somente uma para poderem comentar aí abaixo que “eu li”, como se isso modificasse fundamentalmente o fato, este sim relevante, de que a fama desses autores decorre quase que exclusivamente de terem escrito, cada um, mais de mil livros. É o fetiche do número correndo desenfreadamente, e sendo repetido acefalamente por uma multidão de gente que deveria saber o que diz, mas prefere o conforto de seguir quem vai na frente. Cegos guiam cegos.
Inoue e Lucchetti podem ser bons ou maus autores, mas isso não importa para seus fãs. Importa que o primeiro esteja registrado no Guinness como o autor mais prolífico do mundo e que o segundo lhe faça sombra. Não importa a mensagem que eles passaram, mas o fato de terem vivido de literatura a vida toda, escrevendo qualquer coisa que alguma editora quisesse publicar. Admiram o fato de Inoue contar que chegou a escrever três romances por dia em certa época de sua vida e querem saber de que forma ele conseguiu. Não importa se os romances forem esquemáticos ou se reciclarem trechos, tramas e personagens. O que importa é que foram escritos e publicados. É preciso seguir o caminho que ele aponta, e este é o caminho do autor que se rende totalmente à ditadura do mercado e se submete a um ritmo tirânico de produção que, se serviu para eles, dificilmente pode ser imaginado como desejável ou mesmo adequado a outra pessoa.
Parte do charme do fetiche do número está na crença fascista de que existe um grande método, uma grande verdade. Ainda que a realidade esfregue em nossa cara que o sucesso sempre é rompido por alguém que encontrou algo diferente, permanece a renitente crença de que o caminho certo é o de seguir. Talvez seja este o papel reservado ao autor brasileiro na lógica do mercado atual. Talvez tenhamos sorte de sermos “linha auxiliar” do processo produtivo. Quando se unem o fetiche do número e o misticismo do método, temos o ideal torto de que o autor deveria seguir o exemplo autoflagelante e autocastrador de autores como Inoue e Lucchetti, que aceitam ser usados como meras máquinas de produção literária.
Mas o autor precisa resistir a isso. A preguiça é uma arma de resistência contra a tirania do número. Famosos autores costumam postergar seus lançamentos exatamente para poderem ter a ilusão de controle. Ninguém deseja conscientemente ser uma engrenagem perfeitamente ajustada no sistema, condenada a rodar segundo o ritmo das outras peças do grande maquinismo.
Acredito ser cada vez mais necessário lembrar esta verdade, para que tentemos resistir à ideia de que o modelo adequado para nossa literatura esteja no método de Inoue e Lucchetti.
Se ao menos estivesse em questão a qualidade literária destes autores… mas, oh, não! Sempre são lembrados apenas pelo número de livros escritos.
O foco na qualidade, na relevância, parece ser percebido hoje mais como um defeito do que como uma virtude. Isto transpassa toda a produção cultural, de textos a música, de quadrinhos a cinema. Mas para além dos números, (ou aquém, quem sabe) existe muita gente produzindo qualidade. É preciso garimpar e, encontrando, compartilhar. Este é o caminho da resistência.
Muito provavelmente essa cultura do “escreva rápido e muito” começou nos EUA.
Lá dá para viver de escrita e autores como Ray Bradbury, Robert E. Howard e Clark Ashton Smith sustentavam suas famílias com a escrita.
Portanto, eles tinham que produzir bastante para garantir o pão da mesa, fora que revistas costumavam pagar por palavras. Alguns inclusive acusam Howard de esticar sem necessidade algumas histórias só para garantir um lucro extra.
É por isso que Bradbury dá conselhos como “escreve 2 mil palavras por dia” e Asimov dizia “escreva rápido, mais rápido” quando indagado que dicas ele daria a escritores iniciantes.
Eu acho válido ter metas, até mesmo um pouco saudável. O dia a dia tem muitas distrações e a maioria dos escritores tem que lidar com trabalho/estudo, ficando a atividade da escrita para o tempo que se consegue usar no fim do dia. É fácil se perder assim e acabar não fazendo nada. Não é todo mundo que consegue se focar muito bem.
E, em questão de meta, é fácil pensar numa meta numérica. Porque é uma meta simples de entender e que não depende de uma análise mais a fundo. Não é todo mundo que escreve apenas quando se está inspirado. E para dar segmento ao trabalho criativo, as vezes é preciso de certos artifícios, como estabelecer metas de produção.
Não se trata simplesmente de oferecer produtos, de escrever best-sellers ou mesmo de preferir quantidade ao invés de qualidade, embora, claro talvez isso seja muitas vezes utilizado dessa forma. Produtividade pode ser um conceito usado por empresas para medir a eficiência do trabalhador, mas discordo desse enxerto da forma como coloca. Mesmo mantendo-se como uma atividade artística, o artista pode precisar entender os seus próprios processos para tocar as suas produções artísticas para frente. E no final, é um dos significados originais de produto, no latim, não? Producere remete a conduzir, criar e gerar. Então porque não usar produtividade para entender esse producere?
O proprio Ray Bradbury em “Zen, a arte da escrita” comenta os seus processos. Ele pode não usar uma quantidade de palavras. Mas a forma dele escrever contos, um por semana, começando de forma crua e refinando… Não se pode dizer que foge tanto assim de uma linha de montagem. Embora, há de se pensar que, quando feita por uma pessoa só, processos repetitivos desses ainda são artesanato.
Quanto ao último paragrafo, não tenho nada para discordar. Além de mencionar uma coisa interessante. George Martin demora muito escrevendo os livros dele. E é muito criticado pelos fãs por isso. No final das contas, os próprios fãs acabam querendo algo mais como produto e não uma obra artística.