Esta semana, na ressaca do feriado, assisti pela segunda vez um clássico de nosso cinema, baseado em obra ainda mais clássica de Nélson Rodrigues, o Anjo Pornográfico, nosso mais polêmico autor. Trata-se de uma obra que precisa ser melhor apreciada, embora o filme mesmo tenha envelhecido sob vários aspectos – e ainda que as polêmicas abordadas pelo enredo já não sejam tão relevantes no mundo de hoje. Digo que o filme precisa ser mais visto porque a obra de Nélson Rodrigues, cada vez mais, parece essencial para se entender o Brasil do século XX.
Este texto contém spoilers. Se quer ver o filme, veja-o antes de ler
As recentes gerações não se dão conta, mas o nosso país atravessou entre 1980 e 2000 uma transformação cultural e de costumes muito grande, quase traumática. Ao cabo de um espaço menor que uma geração, uma série enorme de conceitos vistos como centrais para a sociedade foram descartados. Do abandono desses paradigmas surgiu um deserto comportamental, uma espécie de vale-tudo pós-moderno no qual, ao que parece, ainda não nos achamos. O que Rodrigues documentou em suas obras foi o início desse processo, as dores da doença profunda de nossa nacionalidade. Hoje vivemos justamente a agonia final, e temos de optar por deixar morrer o que já não serve ou prolongarmos com aparelhos a existência daquele Brasil doente no qual os personagens de “Bonitinha, Mas Ordinária” se locomovem. Depois de vistos em seu contexto, eles dificilmente parecerão aceitáveis.
Lembro da primeira vez que assisti esse filme – ele passou na televisão e vários de meus amigos assistiram. Falamos nele durante várias semanas. Termos como “contínuo!” (dito em uma voz rascante) e “Peixoto”, bem como a “frase do Otto”, segundo a qual “o mineiro só é solidário no câncer”, entraram em nossos papos como se fossem bordões. O filme nos atingiu em algum ponto sensível porque, a exemplo de Edgar, éramos bancários. Mas a coincidência de profissão não explica tudo: produziu-se um choque forte, de auto-reconhecimento.
Antes de mais nada é preciso lembrar que o filme está longe de ser “bom” segundo o entendimento geral do que seria um filme de qualidade, e fica, de fato, longe disso. Braz Chediak não é, nem nos seus próprios sonhos, um dos grandes diretores do cinema pátrio, nem são perfeitas as atuações que dão vida aos personagens: algumas são até patéticas. O que torna tão forte a experiência de assistir o filme é que Chediak, talvez consciente de suas limitações, trata com respeito o texto original, tornando a obra praticamente um “teatro filmado”. Existe uma virtude em se filmar assim, quando o texto original possui tal força.
Grosso modo, a trama pode ser resumida a um único conflito central, que gravita em torno de seu protagonista, o patético Edgar, um homem que, de fato, vai se tornando homem à medida que a história avança. Há cenas sem sua participação, é claro, mas todas elas apontam para ele: não há, para falar a verdade, nenhuma subtrama no enredo. Longe de ser um defeito, é a maior qualidade de uma obra que parece argumentar um conceito definido desde o princípio como quem defende uma tese. “Bonitinha, Mas Ordinária” é uma tese sobre o Brasil – e como tal, precisa seguir um encadeamento.
A obra começa em uma cena familiar de grande densidade, talvez o momento de melhor atuação dos atores no filme. Werneck, empresário poderoso, tem uma discussão com sua família a respeito do que fazer com Maria Cecília, sua caçula, que foi recentemente estuprada. A primeira constatação desta cena é que Maria Cecília é a única pessoa da família que está ausente da discussão – embora seja a maior interessada no que se decidirá. O drama de seu estupro é revelado sem pudores, diante de sua mãe, Lígia, de seu cunhado, Peixoto, de sua irmã mais nova (que sequer tem um nome), e sua avó. Werneck, demonstrando uma atitude completamente hipócrita e amoral, mesmo diante da dor da filha, propõe, até ironicamente, que seja levada a um cirurgião plástico famoso, a que chama de “Pitanguy dos cabaços”, e por ele operada para uma reconstituição do hímen.
A solução defendida por Werneck revela a grande crise de valores, que já afetava a cultura nacional na época em que a peça fora escrita (anos 50) e se agravara na época da filmagem (1980). A virgindade da mulher antes do casamento, que no passado servira a propósitos rituais e representava a pureza dos sacramentos, agora é só uma aparência a ser mantida, a mera ilusão fetichizada em algo que era originalmente acessório. Werneck vai dizer que o hímen reconstituído “sangra até mais” na noite de núpcias, o que evidencia que para ele o sangramento, ilusão de pureza, adquiriu uma prevalência sobre o sentido da pureza, de que o hímen era apenas símbolo material. Podemos dizer, então, que o modo de pensar exprimido por este personagem representa a substituição dos valores religiosos tradicionais do Brasil por uma ostentação superficial desligada das funções originais dos ritos.
Após a breve exposição inicial de Werneck, entra a sua sogra, personagem sem nome e de pouca expressão facial, encarnada pela veterana Henriette Morineau. Diferente de Werneck, que só está interessado em manter a sua filha desejável para um casamento padrão, restaurando-lhe uma virgindade “fake”, a avó de Maria Cecília, vestida em luto fechado de viúva, ainda tem o sentido original dos símbolos e determina que somente um casamento poderia resolver o “problema” criado pelo defloramento de Maria Cecília. Esta solução está longe de agradar a Werneck, porque tal casamento seria necessariamente com alguém de classe social inferior, que precisaria ser convencido a aceitar uma noiva “defeituosa”.
Um ponto interessante do diálogo, a essa altura, é a forma como a sogra se comporta em relação a Werneck, dizendo quando falar e calar-se, e até lhe ordenando que não se levante enquanto ela fala. Esta relação é muito importante porque ela será repetida depois, no diálogo entre Werneck e o seu futuro genro, Edgar. Neste outro diálogo, Werneck incorpora os modos autoritários da sogra e oprime Edgar exatamente da mesma forma com que a sogra o oprimira. Quando um diálogo espelha o outro, Rodrigues nos passa sutilmente a ideia de que os rituais de opressão presentes na família de Werneck são perpetuados entre as gerações e que Edgar, por ingressar em tal família, terá de se submeter a eles e futuramente reproduzi-los. Não é possível ignorar o quanto isto reflete o conservadorismo brasileiro e as suas tradições, que se baseiam em “moldar” (a marretadas se preciso) cada nova geração que se apresenta. O trote universitário é um exemplo.
Enquanto tudo isso se desenrola, Maria Cecília está só em seu quarto. Na cena inicial ela recebe uma ligação anônima, de alguém que se identifica como o “Cadelão”. Mais tarde esse apelido ganha diversos significados. O futuro noivo, Edgar, trabalha em um banco, sem saber de nada disso.
Ao fim da conversa, a vontade da sogra de Werneck triunfa (como sempre o conservadorismo tende a triunfar no Brasil) e este ordena ao seu genro e subordinado, Peixoto, que selecione entre seus empregados no Banco algum que seja aceito por Maria Cecília como marido. A solução conservadora se mostra, afinal, menos violenta do que a preconizada por Werneck: embora forçada a casar-se cedo (ela tem 17 anos), Maria Cecília terá vez e voz na escolha do marido e, afinal, por ele ser um subordinado de seu pai, a relação será pautada por uma desigualdade que lhe favorecerá. Não é nada ideal esta solução, mas é uma solução coerente com a estrutura de poder apresentada pela obra.
Peixoto, subordinado a Werneck, seu sogro, pede a uma secretária que lhe traga as fichas de registro de todos os funcionários solteiros. Na cena seguinte Peixoto está sozinho com Maria Cecília em seu quarto, o que nos é mostrado como o primeiro indício de que a história possui camadas que nos serão reveladas devagar. A jovem examina as fichas selecionadas por Peixoto e escolhe uma, a de Edgar, interpretado por José Wilker, em uma atuação canastrona de doer.
Uma vez exibida a ficha do noivo, a ação corta para uma jovem professora interpretada por Vera Fischer, que toma um ônibus à saída de uma escola e viaja para casa no subúrbio contemplando a paisagem pela janela. Seus devaneios são interrompidos pela visão de Edgar, que ultrapassa o ônibus em um Bugre branco, em companhia de uma moça, que depois sabemos ser uma das três irmãs da personagem de Fischer, que se chama Rita.
A cena seguinte, aparentemente gratuita (mas só aparentemente) nos mostra Rita tomando banho de caneca, dentro de uma banheira, enquanto sua irmã urina sentada na privada. Conversam sobre a carona e Rita repreende sua irmã por tê-la aceitado. A conversa termina com uma discussão entre elas e a acusação de que Rita só se incomodou com a carona porque é ela, Rita, que deseja o rapaz para si. A cena, apesar de padecer muito com a falta de talento dramático de Vera Fischer (mesmo diante duma atriz iniciante), serve para nos mostrar as condições promíscuas e desconfortáveis em que a família de Rita vive. O fato de Edgar ser referido como “vizinho” nos apresenta o futuro noivo de Maria Cecília como um rapaz desesperadamente pobre, apesar de possuir um carro “descolado” (para os padrões de 1981). De fato Edgar, filho de migrantes, tem muita vergonha de suas origens e de seu início humílimo no Banco (onde trabalhou no início como contínuo). Possuir um carro assim era uma ostentação para negar sua condição social subalterna. Pelo menos à direção de seu carro, Edgar podia se apresentar como alguém superior ao que era.
A seguir, a briga das irmãs chega à sala, onde a mãe delas, uma senhora aparentemente senil, contempla a briga que se generaliza até, enfim, não se conter e entrar em surto psicótico, andando para trás e repetindo que desde a morte do marido tudo em sua vida andava para trás. A metáfora de “andar para trás” se materializa em um ato, com o corpo obedecendo a um comando imaterial. Mais tarde saberemos as razões do estado mental desta mulher, vítima de grandes sofrimentos.
Peixoto e Edgar se encontram em um bar. Estão bêbados quando o primeiro, num rompante algo cafajeste, induz o segundo a aceitar o casamento, com argumentos que variam da simples beleza da noiva à posição social de sua família e as vantagens econômicas envolvidas. Edgar, que nós já sabemos ser um homem frívolo e interesseiro, parece receptivo à ideia, mesmo com Peixoto lhe dizendo que seria preciso um certo grau de canalhice para se olhar no espelho depois de aceitar tal oferta. Mas Edgar, relembrando as circunstâncias da morte de seu pai, que foi enterrado como indigente com o dinheiro coletado por uma vaquinha dos vizinhos, diz que está cansado de esperar que as pessoas se compadeçam dele e almeja ser enterrado como Getúlio Vargas, em um caixão com tampo de vidro. Para coroar a aceitação da oferta, resume seu desencanto com os valores morais da sociedade com a tal “frase do Otto”: “O mineiro só é solidário no câncer.” Esta frase é de autoria do escritor Otto Lara Resende (também autor de outras tais) e resume a ideia de que o homem só se une em torno de tragédias, ou que as pessoas só têm valor depois de mortas.
Ao chegar em casa e contar para a mãe que aceitou a tal oferta, Edgar se vê, subitamente, idolatrado por ela. Esta reação espelha a esperança que os pais têm de ver os filhos “bem na vida” – que, em alguns casos, não conhece nem mesmo os limites éticos. Casar-se com uma rica herdeira é no fim de contas um sucesso. “Nascer pobre é destino, casar-se com um pobre é burrice.”
No dia seguinte Edgar recebe em sua casa a visita de Peixoto, que vem se certificar de que a oferta foi entendida e aceita. Somente neste ponto a condição de Maria Cecília é mencionada a Edgar. Seu estupro é narrado em mínimos detalhes por Peixoto, o que permite que Edgar reconstitua a cena mentalmente. Porém, tal como em “Rashomon”, de Akira Kurosawa, nós vemos uma cena que é meramente a interpretação da narrativa de Peixoto através do entendimento de Edgar. Nélson Rodrigues costumava dizer que explorava em seus textos quatro tempos verbais: o presente, o passado, o futuro e a memória. Este último, efetivamente, é uma mentira ou uma ilusão ou uma lembrança real – nunca o saberemos totalmente. Nesta primeira versão do estupro de Maria Cecília nós a vemos dirigir sozinha pelo que parece ser um ferro-velho. Temos aqui a primeira discrepância, só percebida depois: ela tem somente dezessete anos (na verdade acabou de completá-los) e não poderia estar sozinha ao volante, dificilmente saberia conduzir o carro.
Edgar e Maria Cecília (que sempre está vestida de branco e em trajes que parecem de noiva) se conhecem em um lugar idílico. Ela vem pelas mãos de Peixoto. Após conhecê-la e se certificar de que ela é realmente tão bela quanto lhe fora dito, Edgar vai se encontrar com a família Werneck, para acertar os detalhes do casamento. Nesta cena, e em todas as outras cenas formais em que aparecerá, Edgar usa o mesmo terno, para enfatizar a sua falta de condição financeira para vestir-se. A reunião com a família de Maria Cecília é um desastre, porque Werneck parece obcecado por humilhar Edgar o máximo possível. Não só reproduz o gestual autoritário da sogra, negando a palavra ao futuro genro, como ainda rejeita as poucas palavras que este diz. Rejeita quando este concorda com o casamento em separação total de bens, dizendo que Edgar desejaria a comunhão universal. Rejeita quando Edgar diz ter começado na firma como auxiliar de escritório e usa o termo “contínuo” para desqualificá-lo, dando a entender que, mesmo com o casamento, sempre considerará Edgar como um mero office-boy. Enquanto toda essa amarga discussão acontece, Lígia, a mulher de Werneck, insiste em dizer que o marido é um homem bom.
Edgar volta para casa revoltado e humilhado, depois de xingar Werneck em termos bastante chulos e requerer demissão do emprego. Em casa, a mãe se desespera com a situação e passa a tratá-lo mal. Nesta cena vemos, então, que a situação de Edgar era a mesma de Rita: ele também tem de tomar seu banho usando uma panela, ajudado pela mãe.
Revoltado com o acontecido, Edgar resolve, finalmente, se acertar com a vizinha Rita, e lhe dá uma carona, que termina na floresta da Tijuca. No caminho ele acelera em alta velocidade pelas ruas. Ela se mantém esquiva aos seus avanços, que se tornam cada vez mais exagerados, limítrofes com uma tentativa de estupro, mas ela finalmente cede ao pedido de um beijo, e os dois quase transam sobre uma pedra, mas são vistos por um leproso e a cena romântica é interrompida de forma ridícula.
Dias depois Peixoto volta à casa de Edgar e lhe pede que reconsidere sua determinação de não mais se casar com Maria Cecília. A própria aparece e faz o seu apelo, tentando transformar o termo “contínuo” em algo doce. É ela quem diz que teria orgulho de ser casada com um “ex contínuo” e que se lembrava de Edgar, usando o uniforme vermelho dos contínuos. Com isto Edgar cede e aceita retomar o noivado.
Enquanto isso, na casa de Ritinha, vemos que as suas irmãs arrumaram uns namorados e que estão todos obcecados por pornografia. A mãe louca não é capaz de regulá-las na ausência da irmã mais velha e elas veem os filmes em sua presença, sem que ela efetivamente se dê conta disso. Os rapazes convencem as meninas a irem com eles a uma festa onde haveria liberdade, bebida e sexo.
Nesse momento o filme começa a rumar para o clímax. Vemos Peixoto chegar em casa e cumprimentar o amante de sua mulher à entrada. Eles conversam casualmente sobre futebol, como bons amigos. Em casa, a mulher está nua, sobre a própria cama, chorando porque o seu caso acaba de terminar. Mas, mesmo diante de tal cena, Peixoto ainda parece indiferente. Ele protesta apenas porque sua esposa o traíra em sua casa, em seu quarto, sobre sua cama. Ela, porém, o interrompe dizendo que a casa, o quarto e a cama são seus, não dele. Assim vemos que tipo de relação espera por Edgar caso se conforme em casar com Maria Cecília. Zombado por sua mulher, que o chama de frouxo e de frio, Peixoto apenas responde que é, sim, capaz de amar e que, de fato, ama a uma mulher, uma mulher que ele define como “ainda mais suja e cínica que sua esposa.” Neste ponto não sabemos se é apenas uma bravata de corno conformado ou se existe de fato tal mulher. O que a cena nos mostra com mais força é o estado de decomposição a que Peixoto permitiu que chegasse a sua dignidade, conformado com as vantagens que o seu casamento lhe proporcionava. Podemos supor pelo contexto que também Peixoto é um marido de nível social inferior à esposa, tal como Edgar o será em breve.
Esta situação inversa de hegemonia da mulher, econômica, cultural e até mesmo sexual, realmente revolucionária, é vista por Nélson Rodrigues de uma maneira muito negativa, como uma negação do papel e da identidade do homem no casamento. Nem tanto pelas traições, mas pela discrepância que surgiu. Inverter uma situação de opressão apenas cria outra opressão. No fim de contas a família de Peixoto não é “moderna”, é apenas uma família tradicional que apodreceu (palavras dele). O apodrecimento ocorre quando os valores da família são substituídos pelo dinheiro, pois agora se pode usar o dinheiro para comprar e controlar um homem, que seja de condição social inferior. Assim, a família Werneck não é um novo modelo familiar, apenas o fruto apodrecido das relações opressivas no seio da sociedade conservadora e autoritária quando transplantados para dentro da relação.
Edgar retorna à mansão Werneck para se reconciliar com o sogro e é outra vez humilhado, sem que reaja. Depois de conversar com Werneck dentro da sauna (mesmo estando de terno) e de assisti-lo masturbar-se enquanto um empregado lhe aplica uma ducha de água fria, Edgar tem de massagear com talco as costas nuas do futuro sogro.
Neste diálogo o protagonista tenta se diferenciar, dizer que tem dignidade, mas é novamente rechaçado por Werneck, que afirma que “todo mundo é Peixoto” – enunciado que resume a condição do indivíduo, especialmente do homem, que aceita vender mesmo a sua dignidade. O dinheiro é o valor supremo para Werneck, ele acredita e pratica a ideia de que se comprará tudo com dinheiro, até a dignidade de um homem como Edgar, reduzindo-o a um “Peixoto”. Ao fim da massagem, com o corpo gordo ainda envolto num roupão, Werneck propõe a Edgar um teste: preenche e lhe entrega um cheque ao portador no valor de “cinco milhões de cruzeiros” (cerca de um milhão de reais em dinheiro de hoje). O teste consiste em rasgar o cheque e mostrar que não é um Peixoto, ou sacá-lo e aceitar que sua dignidade está a venda. Edgar fica no meio do caminho e guarda o cheque, embora afirme que nunca o sacará, mas o guardará como o troféu, símbolo de sua hombridade.
Decidido a realmente se casar, Edgar marca um encontro com Rita para se despedir dela (uma grande bobagem que, idiota, também fiz, inspirado no filme). O encontro termina em um cemitério, e os dois entram em uma cova recém cavada para ficarem à vontade. Após uma tosca interrupção por um coveiro português, tão gratuito quanto mal interpretado, Edgar afirma a Rita que a ama, mas que vai se casar com Maria Cecília, e pede um outro beijo de despedida. Neste momento, Rita o surpreende ao confessar que é, de fato, uma prostituta, que faz a vida para complementar a renda.
Abalado pela revelação, Edgar fica ainda mais certo de sua decisão sobre o casamento, pois, em seu entendimento, Maria Cecília não era “pura” por uma questão alheia à sua vontade, o “acidente” conforme definido por seu pai, enquanto Rita se jogava voluntariamente à depravação por dinheiro.
Na cena seguinte outro personagem aparentemente íntegro se desfaz diante de nossos olhos. Werneck e Lígia jogam cartas e conversam, mas o assunto termina numa grotesca cena de sexo em que a matriarca se rende ao marido de forma ridícula enquanto canta hinos religiosos. Estes hinos emendam a cena seguinte, que se passa durante uma missa, assistida principalmente pela família Werneck. Peixoto aparece bêbado e faz suas afirmações sobre o iminente “apodrecimento” da família Werneck. Edgar, claro, não crê em nada do que ele diz. À saída da missa, leva Maria Cecília em um passeio, de carro, ao mesmo lugar onde o estupro ocorrera, o que fora pedido pela própria jovem que, de uma forma estranha, parece não estar traumatizada, nem pelo local e nem pela lembrança do ocorrido. No local do crime, ela dá sua versão dos fatos – que difere significativamente da primeira, de Peixoto, contada a Edgar no começo do filme. Nesta segunda versão, mais uma vez evocando Rashomon, Peixoto e Maria Cecília estavam juntos porque ela estava aprendendo a dirigir. Isto explica o furo da versão inicial de Peixoto, mas não explica porque necessariamente ele a ensinaria e nem porque foram a local tão ermo e perigoso. Tal como na primeira versão, o crime ocorreu sob chuva: o carro morre por entrada de água no carburador e Peixoto desce para tentar consertar, os bandidos aparecem e o agridem, deixando-o inconsciente. Maria Cecília acrescenta mais detalhes sexuais, o que mais uma vez parece estranho. O distanciamento dela em relação ao que lhe ocorrera poucas semanas antes é intrigante. Entre os detalhes, a presença de sexo anal choca profundamente Edgar, mas o que mais o irrita é que a jovem o acusa de ser um frouxo por não pegá-la a força ali.
Suas dúvidas só aumentam quando Rita o procura e se justifica, afirmando que fora empurrada à prostituição por uma série de fatores, entre eles a morte prematura do pai e a mãe ter perdido o emprego no correio por uma suspeita de fraude. O supervisor do correio a convencera a lhe prestar favores sexuais em troca da absolvição da mãe, mas tal não ocorreu, Rita fora “deflorada”, tornando-se “inadequada” para um bom casamento, e por fim se rendera à prostituição como um meio possível para complementar a renda familiar. A forma como o supervisor lida com Rita é extremamente da situação vulnerável da mulher que tem de viver autonomamente em uma sociedade arrogantemente machista e onde o ônus da relação sexual recai exclusivamente sobre ela, que menos tem escolha.
Ao retornar para casa, após o encontro, Rita descobre que as suas irmãs saíram com os namorados e a sua mãe foi deixada, fantasiada de colegial, em um fliperama. Após agredir o responsável pelo fliperama, ela descobre aonde suas irmãs foram levadas e segue de táxi para lá, tentando salvar suas honras. Enquanto isso Edgar é levado por Peixoto à mansão Werneck, para presenciar uma prova do “apodrecimento” da tradicional família, que está embriagada por dinheiro e poder. Na casa de Werneck acontece uma festa estranha e depravada, em que os convidados são servidos de drogas, em bandejas de prata. Ao ingerir cocaína, Werneck propõe aos convidados um jogo humilhante em que as esposas confessariam as suas infidelidades. A primeira que se voluntaria, cheia de cocaína, se despe completamente e confessa, deitada no sofá da sala a se masturbar, que pagava por michês e que transara com um deles dentro de um túnel das obras do metrô.
Embora Egar esteja enojado e queira ir embora, Peixoto lhe diz que não é mais possível, pois Werneck já os viu e mandou fechar a casa. Em seguida, o dono do festa apresenta aos convidados a “atração principal”: diante deles será cometido um crime hediondo, que eles poderão testemunhar, mas nenhuma consequência advirá do fato, pois Werneck usará o seu dinheiro para “tapar a boca da família”. Ele se jacta de que, com seu dinheiro, é capaz de comprar qualquer coisa, mesmo a honra alheia. Então as irmãs de Rita são trazidas, e logo após três jovens nus e sob o efeito de cocaína também. Elas são despidas e estupradas pelos três, sucessivamente. Edgar nada pode fazer e Rita só chega à mansão Werneck depois que a festa já terminou, e suas irmãs estão deitadas no chão, exaustas e sangrando.
Na cena que talvez seja o clímax do “raciocínio” desenvolvido pelo filme, Rita explica a Werneck que se prostituía, entre outras coisas, para que as suas irmãs pudessem permanecer virgens e “casar direitinho”, mas que ele, ao organizar o estupro delas, tornara sem sentido todo o sacrifício que ela fizera. Werneck então se propõe a pagar uma reparação, que Rita aceita, por não haver mais o que fazer, e Werneck deixa a sala vendo que a sua tese sobre a possibilidade de comprar honra é verdadeira.
Enquanto isso Edgar está no quarto com Maria Cecília e ela o chama pelo mesmo apelido que supostamente seria o de um de seus estupradores. Edgar se sente ofendido ao ser chamado de “Cadelão” e exige explicações, neste momento Peixoto aparece e explica que o apelido era dele, que ele era o “Cadelão” e que fora amante de Maria Cecília desde antes do estupro, que o estupro fora armado por ela para acobertar seu defloramento anterior e que, na verdade, ela o descartara. Maria Cecília tenta convencer Edgar a rejeitar a nova versão de Peixoto para os fatos, mas Edgar aceita porque a nova versão parece fazer mais sentido. Nesta versão Maria Cecília, que já não era virgem, pede a Peixoto, seu amante, que contrate cinco homens para estuprá-la. Ele, Peixoto, tem de ficar dentro do carro assistindo à cena em que sua amante é brutalizada por cinco homens, escolhidos pelos membros avantajados, inclusive com sexo anal e oral (implícitos).
Enojado com tudo isso (incluída a cena de estupro das irmãs de Rita, que presenciara pouco antes), Edgar deixa a mansão Werneck, determinado a se redimir e mostrar que é um homem de caráter, não um cafajeste. Peixoto, então, saca de uma navalha e desfigura Maria Cecília, antes de se matar, cortando a própria jugular com a mesma navalha.
Edgar então perdoa Rita, buscando-a no bordel e prometendo-lhe casamento com a condição de que ela o respeite. Ele então mostra o cheque, que até então não sacara, e diz que vai destruí-lo, provando que não é um homem do tipo que se vende, apesar de ter vivido em tentação. Ela a princípio tenta convencê-lo a usar o dinheiro para montar a nova casa, mas ele a convence de que a única forma de viver em dignidade seria negando a tese de Werneck e destruindo o cheque, mesmo que para isso precisassem comer lixo e beber água do esgoto. Rita, por fim, concorda com este argumento, que era, afinal, o argumento através do qual Edgar a retirava da vida de prostituta e lhe oferecia amor verdadeiro.