Todo ano, quando sai o nome do vencedor do Prêmio Nobel de literatura, há uma pequena discussão em torno da razão pela qual o Brasil não ganha (nem mais é cogitado). Esse ano aconteceu novamente e segue não havendo muita dúvida sobre as razões de não sermos contemplados (o único autor de Língua Portuguesa a sê-lo foi o Saramago, que não somente é português como pouco se parece com um português “normal” a julgar por seus escritos). À parte o fato de que há muito tempo o “jogo” do Nobel já teve suas regras compreendidas pelos analistas (não vou detalhá-las), não parece haver nenhum movimento no sentido de possibilitar a vitória brasileira nesse prêmio. Muitos de nossos autores parecem estar felizes em publicar seus pastiches de subliteratura estrangeira e os outros se dividem entre os que ativamente desprezam o tipo de literatura que leva o Nobel e os que apenas sentem despeito de raposa diante das uvas. Outros ainda, como eu, entendem perfeitamente que não há caminho possível até lá, e resolveram cuidar da vida.
A verdade é que o choro pelo Nobel revela uma incômoda sensação de que a gente que faz literatura no Brasil intimamente “sabe” que nossa literatura em geral é uma porcaria, ou vai a caminho de sê-lo. Este “saber” não corresponde necessariamente à verdade, mas ao que enxergam os olhos míopes de quem faz a “literatura brasileira de superfície”. Os que fazem nossa literatura gostariam de ser reconhecidos fazendo o que fazem, mas não ousam pensar fora da caixa, e caixa é o que mais tem na literatura nacional. O reconhecimento, porém, não virá para uma literatura que se decompõe, cujos grandes nomes estão mortos ou morrendo e cujos novos valores se edificam desprezando nossa herança e idolatrando qualquer porcaria trazida de fora que tenha vendido milhares de exemplares. Há uma verdadeira obsessão por denegrir e suprimir nossa herança cultural, como se “ser brasileiro” fosse algum tipo de defeito. O prêmio Nobel, quando sai das culturas europeias centrais, vai em busca de um tipo de voz sintonizada com o passado, o presente e o universal. O tipo de autor que acha Machado de Assis chato e se deixa levar pela ira quando as falhas de seu texto são apontadas é do tipo que não só não ganha o Nobel como coloca espinhos no caminho de quem talvez ganhasse.
Os brasileiros querem ganhar o Nobel, acreditam que haverá um tipo de “cota” que um dia nos beneficiará, mas não querem escrever bons livros. Seus ídolos vendem, apenas. Portanto o que querem é vender, e usar suas vendas para arrotarem uma grandeza postiça, zombarem de quem tenta fazer o diferente, humilhar quem pensa fora da caixa. E ainda querem ganhar o Nobel!
Claro que o prêmio é frequentemente injusto. Não só na literatura mas nas outras áreas também. Historicamente, por exemplo, a Academia Sueca ainda deve se envergonhar de ter dado o Nobel de medicina a Egas Moniz, o inventor da lobotomia, cirurgia cerebral monstruosa que supostamente eliminava distúrbios mentais e que por décadas foi usada como uma panaceia universal. Mas dizer isso é o mesmo que torcer para que um dia uma injustiça dessas nos beneficie. É torcer para o árbitro inventar um pênalti para nosso time ganhar o campeonato.
Torcer por isso é ansiar pelo acaso. Pela loteria. É querer a recompensa sem passar pelo trabalho. Bem de acordo com o narcisismo de nossa literatura que, a julgar por pesquisas recentes, é praticada por um homem branco e urbano, que vive no sudeste, trabalha no jornalismo, em alguma profissão liberal ou emprego público e escreve basicamente sobre si. O autor brasileiro é fechado demais em sua aldeia, até quando tenta sair dela. As influências estranhas que absorve não são fruto de uma ida ao mundo, de uma busca pelo outro, mas apenas a aceitação de elementos que lhe chegam através da cultura de massas. A esta capitulação preguiçosa diante da cultura globalizada este autor costuma chamar de “cosmopolitismo”, mas poderia ser melhor definida como “indolência existencial”. O autor brasileiro típico não vai ao mundo, colhe do mundo o que dele lhe chega. Se fosse mentira essa afirmação, haveria mais autores brasileiros buscando inspiração na China, na Rússia, na Argentina (que fica aqui do lado) ou em Alfa Centauro — não precisariam focar tanto nos Estados Unidos, na Grã Bretanha e mais dois ou três cenários de filmes de Hollywood e de best-sellers da moda.
Nada disso é o que o Nobel busca. Ele quer “vozes” de diferentes culturas. A literatura brasileira precisaria representar melhor o próprio Brasil, passado e presente, para falar alto o bastante a ponto de se ouvir na Europa. Do jeito, porém, que ela anda, é mais fácil ganhar o angolano Agualusa ou o moçambicano Mia Couto do que algum dos “novos talentos” que temos. Esses dois oferecem o que o Nobel quer, nós não.
Para o bem ou para o mal, porque, afinal, nossa literatura nem ganha e nem perde por estar mais longe ou mais perto daquilo que os gringos acham que ela deveria ser. Uma literatura saudável não precisa ser legitimada pelo reconhecimento externo. É certo que nossa literatura não é lá muito saudável, mas ela não será jamais se continuar pensando mais em pular do jeito certo para ganhar um prêmio aleatório concedido na Europa do que em se gabaritar como voz de seu próprio povo e de seu tempo.
Paremos de chorar pelo Nobel e vamos escrever, gente. Escrever intransitivo, escrever apenas. Escrever a penas, se for preciso, e também se for impreciso.