A julgar pelo que ando ouvindo de comentários, na próxima segunda feira (depois de amanhã) estreará na televisão mais uma novela de época em que o canal [ainda] hegemônico tentará nos convencer que o latifúndio, o coronelismo e a pistolagem são coisas maneiras. Não é nenhuma novidade que a televisão — um meio dominado por umas poucas e poderosas famílias, aparentadas a tudo quanto há de mais retrógrado nesse país — tente fazer a hagiografia da estrutura de classes herdada do período colonial, o que muda é que, depois de tanto tempo, a fórmula começa a parecer gasta e o produto soa cada vez mais repetitivo e postiço.
Telenovela nunca foi lugar de se fazer arte, nunca se destacou pela originalidade. Quando muito, a telenovela alicia profissionais competentes de outras áreas (teatro, cinema, prostituição…) e os coloca, meio desconfortavelmente, nesse novo meio em que tudo “funciona por música” — o que quer dizer que todos os passos são cuidadosamente coreografados e ninguém tem a permissão de pensar sozinho. Já notaram que ultimamente as novelas são escritas por times de, no mínimo, três integrantes?
Mas telenovela funcionava bem porque as pessoas não tinham acesso a outra coisa. Quem não estudasse à noite e/ou não tivesse livro em casa tinha exatamente o que para fazer depois que caía a noite dos anos oitenta? Ligar a tevê para assistir o que estivesse passando — e na maior parte do país o que passava era a Globo, com seu potente e necessário sinal. Hoje a telenovela vem perdendo fôlego, e até sendo forçada a alguma real renovação, porque a internet oferece uma competição, ainda que parcial. A constante queda da audiência demonstra que está cada vez mais difícil segurar os jovens diante da tela nas noites cada vez menos monótonas desse novo século.
Por que então fazer, de novo, uma novela de época que segue um padrão tão batido quanto o da celebração do coronelismo? Ou a novela é feita para um público saudosista (assim a televisão se conforma com o progressivo envelhecimento do telespectador médio) ou é um projeto reacionário (pífio, visto que a telenovela já não tem o poder de décadas passadas para até interferir na língua viva do povo). Pode haver uma terceira alternativa, mas não a vislumbro no momento.
Não me preocupa, porém, saber as motivações inerentes à novela. Autor que sou, sei muito bem que as intenções, na arte, são difíceis de definir e nem sempre necessárias: uma obra escrita para uma coisa pode perfeitamente servir a outra coisa. Então não quero discutir conspiracionismo, ainda que creia em alguns. Quero apenas observar de que maneiras o passado retrógrado do Brasil é gourmetizado pela televisão de forma a parecer uma coisa legal.
Este processo de sanitização da figura do coronel apresenta os seguintes estratagemas:
- A apresentação do latifundiário como herói. O filho do coronel, retornando da grande cidade onde foi aprender umas sofisticações descartáveis de cultura, tem de enfrentar perigos e desafios até se consolidar como coronel-2.0, o que vai requerer o emprego de algumas técnicas modernas aprendidas na cidade e a retomada, também, da “sabedoria” de seu velho pai.
- O desafio ao latifúndio é mostrado como mero crime. Os bandidos, ainda que realmente sejam malvados, têm um objetivo claro de dividir o latifúndio, reduzir sua prevalência. Prefere-se focar no banditismo do que na possibilidade de que esse banditismo resulte de uma demanda reprimida por terra. Há que se ressaltar que na ambientação histórica da vez, ao longo do “Velho Chico”, a luta não era só pela posse da terra em si, mas pelo acesso à água do rio que corria pelo seco sertão.
- Os bonzinhos são obedientes à lógica social coronelista. Assim temos os empregados fiéis e simpáticos, que cumprem as ordens do patrão, a empregadinha que um dia foi namoradinha dele, mas que agora tem de se conformar ao seu lugar quando vê o coronelzinho aparecer com uma mulher de status superior.
- A violência é um recurso, não empregá-la é uma concessão. O coronel, ao se abster de resolver um assunto pelas vias de fato, é apresentado como dotado de uma sabedoria salomônica. O potencial recurso à força bruta é uma das “qualidades” inerentes ao mocinho, que tem de ser forte em um mundo de fortes. Cria-se a impressão de que devemos cortejar a amizade com o coronel a fim de escaparmos sua ira.
- O fisiologismo também faz parte do arsenal. A figura glorificada do coronel inclui no seu aparato as “amizades”, ele trata o delegado por tu, recebe o padre e o juiz de paz para almoçar, doa para a escola, coopera com a polícia… Em vez de isso ser visto como uma prova da sobrevivência de um tipo quase medieval, temos nisso algo a admirar.
- A luta pela terra é vista como um processo épico. Em vez de um enfrentamento violento e covarde, no qual se matava mais de tocaia do que em duelos, existe uma tentativa de romancear a luta pela terra, fazendo-a parecer uma espécie de Ilíada, incensando o vencedor como um escolhido, um predestinado.
- Romeu e Julieta redivivos. Sempre há aquele momento vergonha alheia em que você percebe que o amor entre filhos de inimigos será usado como um estratagema. Mais requentado que café de padaria, o romance entre os que deviam se odiar nunca falta nessas novelas. E o mais risível: quando o romance da certo, as terras das duas famílias são unidas (aumentando a concentração do latifúndio e o nível geral de injustiça social). O povo torce por isso, sem entender que está torcendo pela consolidação ainda maior de um modelo excludente.
- A violência como transgressão. A capacidade de produzir atos violentos é uma demonstração de força na cultura popular brasileira. É um desafio às leis do homem e às de Deus. Coragem, portanto. Mesmo a violência praticada pelo sistema contra o que se insurge é estetizada, espetacularizada. Em “Renascer” tivemos a apresentação de um esfolamento em horário nobre, para construir a personagem de um coronel que tinha seu direito de ser mau, pois muito mal lhe fora feito. Esta novela terá, com certeza, a sua cena cruel de execução ou tortura, já no início.
- O paraíso no latifúndio. Em vez de um sistema opressor e injusto, o latifúndio agro-exportador é mostrado como um lugar idílico onde as pessoas buscam a felicidade e a encontram, cada qual no seu lugar. A felicidade, aliás, está em se resignar, fazer aquilo que lhe é conferido fazer. A mocinha que um dia se deitou com o patrão, tem de engolir o choro e fazer café para a madame que o coronelzinho trouxe da capital. O empregado que um dia foi seu colega de brinquedo agora tem de acatar suas ordens, no máximo orgulhar-se de poder “trocar ideias” com o patrão, mesmo sabendo que a decisão sobre o valor das ideias sempre será da parte mais forte. Esses personagens, e todos os outros, se inserem no idílio da obediência, na beleza do Brasil anterior às ideologias revolucionárias.
Não espero que você concorde comigo ou que enxergue a mesma coisa, mas que assista (se for assistir) com um pouco mais de espírito crítico, e se pergunte se é mesmo real aquele universo de fancaria no qual o latifúndio é uma coisa maneira.
Apenas peço que se lembre que todo mundo assiste a novela achando que seria o coronelzinho, mas a maioria seria peão de fazenda, alguns poucos seriam agregados urbanos.