Estamos em pleno século XXI e certas modas parecem não desaparecer de jeito nenhum, o machismo sendo uma delas. Mesmo na literatura, onde supostamente deveria imperar um tipo de artista mais crítico e mais hábil no manuseio de abstratos, o machismo segue dando as cartas.
A Jornada do Herói e o Machismo
Uma das formas pelas quais ocorre a perpetuação do machismo na literatura é a adoção servil da “Jornada do Herói” como um modelo padrão para toda história. Acontece que este é um modelo essencialmente machista, que perpetua um modelo de sociedade condenado a desaparecer, ou que deveria desaparecer. Condicionar a maioria da produção literária a um tal modelo arcaico é ajudar a pisar no freio da evolução mental e social da humanidade. “Mas”, pensará o pequeno burguês, “se posso ganhar dinheiro assim, então que a humanidade retroceda à caverna no fim, aprés moi, le déluge“.
Histórias machistas são tóxicas. Não somente por serem parte da opressão da mulher e do feminino, mas também porque o tipo de machismo tacanho e patriarcal que está na base dos mitos antigos (nos quais, por suas vez, se baseia a “Jornada do Herói”) é tóxico para o homem também.
O patriarcado é uma linha de montagem de opressão cultural e social, um engenho de moer indivíduos e produzir peças para a máquina social. A opressão da mulher não decorre, no patriarcado, de um desejo mórbido de suprimir a uma metade da humanidade, mas de imperativos sociais que dependem do controle dos corpos e do sexo. O machismo é uma ideologia inserida no contexto do patriarcado que tem um papel de opressor da mulher, mas, também, de condicionante do homem e de sua performance diante de seus pares.
A literatura machista perpetua uma ideologia de silenciamento da mulher e de opressão do homem. Deveria ser do interesse comum a todos os indivíduos superar a fase do machismo, a fim de que todos possam expressar-se livremente.
Na literatura de ficção, existem várias características que perpetuam valores ideológicos machistas e opressores. Este artigo coleciona alguns.
O Mito do Homem Autossuficiente
Aristóteles inicia seu tratado sobre a Política dizendo que “o homem é um animal político”, no sentido de participante de uma sociedade e, portanto, atuante na dinâmica de sua evolução. O patriarcalismo e o tradicionalismo, porém, estão obcecados com a individualidade triunfante sobre a pólis. A excepcionalidade é apresentada como norma, mesmo sendo inatingível pela ampla maioria. Este ideologia é perigosa, e não somente por insuflar o inconformismo dos oprimidos, que costuma descambar em violência, mas também porque ela é a base sobre a qual se constrói a figura do tirano, homem excepcional por excelência, que triunfa sobre a sociedade e dobra o estado à sua vontade.
Na literatura, é ainda muito comum a apresentação do herói não apenas como um indivíduo circunstancialmente solitário, mas como alguém solitário por definição. A solidão não é consequência de uma fraqueza, uma inadequação, uma situação de momento, uma injustiça ou um estado transitório, ela é buscada pelo herói como um estado ideal de ser. Relações afetivas inexistem, interações com o sexo oposto se resumem ao sexo ocasional (às vezes violento), interações com o mesmo sexo, quando não baseadas em violência (competição pelo posto de macho alfa), descamba para o sexo homossexual violento (o estupro como ferramenta de humilhação do fisicamente fraco e de autoafirmação do forte).
O herói solitário vive à margem da sociedade ou percorre suas sarjetas e becos, sempre à sombra. A ideia é a de que o verdadeiro herói, o homem-homem, não precisa de ninguém. Mais do que self-made, ele é um homem autossuficiente e, empregando o termo segundo sua etimologia grega, automático (aquele que se move por si próprio). O herói solitário pode ser um órfão ou um viúvo, ou pode ser alguém que originalmente tinha família e conexões, mas as teve destruídas ou as perdeu. Ao longo da história ele interage com muitos outros indivíduos, eventualmente se conecta afetivamente com alguns, mas no fim da história ele necessariamente morre ou se afasta. Caso se afaste, este abandono das conexões é frequentemente um ato de desprendimento, que demonstra força moral. Caso morra, é comum que a morte seja um sacrifício em prol daqueles com quem se conectou, ou então uma consequência de ter sido “debilitado” pela conexão afetiva, feminilizante.
Este mito é nocivo à sociedade porque ele estimula os homens a não buscar ajuda quando necessária, ou quando poderia diminuir seu estresse. O homem-homem solitário se martiriza sozinho porque procurar ajuda não é o que o herói faria, e a sociedade machista glorifica o herói.
Não é nocivo apenas ao indivíduo-homem que se ferra na tentativa de mostrar uma autossuficiência sem sentido, mas para a sociedade, que perde um indivíduo saudável antes do tempo (pela morte ou pela perda da saúde) ou que tem de conviver com um padrão mais baixo de comportamento social e de qualidade no trabalho porque os seus indivíduos mais determinados estão cheios da ideia de que “fazer sozinho” dá mais glória.
O Complexo de Édipo e outros ainda mais complexos
O herói costuma ser solitário também porque a família, quando a tem, é uma entidade disfuncional, quase a ponto de ser doentia, que serve mais como uma ferramenta para expulsá-lo da sociedade do que uma base para apoiá-lo. Não deixa de ser verdade que as famílias muitas vezes agem de forma totalmente estúpida, torpedeando os sonhos dos jovens de formas até cruéis. Mas a regra é que a família tenha razão ou simplesmente esteja a pedir um pouco mais de prudência, enquanto o jovem, munido da autoconfiança que só a ignorância proporciona, deseja lançar-se de peito aberto, voar como Ícaro até ficar alto demais e derreter suas asas.
Nos mitos machistas que imperam entre nós, o papel da mulher é normalmente o de “mãe compreensiva” ou de “madrasta megera”. O papel do pai é o de uma força trovejante da natureza, capaz de violência física e verbal, mas também de uma extraordinária insensibilidade emocional.
Tudo isto ajuda o herói a “matar o pai” (metaforicamente) e deixar o recinto do lar para executar sua aventura. Caso sobreviva, ele “conquista a mãe” (metaforicamente também), em um momento no qual o pai já está ausente (seja por sua morte, seja porque o conflito resultante da saída do herói destruiu o casamento).
Este mito é nocivo porque prejudica a igualdade de direitos entre homens e mulheres, ao estereotipar o pai como um ser naturalmente incapaz de cuidar bem dos filhos. Ao mostrar os progenitores com papeis opostos (ainda que complementares), o mito de Édipo cria a tensão da escolha entre duas incompletudes quando o filho se vê impossibilitado de ter ambos os pais.
Perdedores e Vencedores
Uma consequência da ideologia do machismo é que no mundo necessariamente há vencedores e perdedores. Ser bem sucedido é algo que sempre ocorre às custas de outros. O herói triunfa matando inimigos e perdendo aliados ao longo do caminho. Nas boas histórias essa vitória chega manchada de sangue e os deuses a punem. Mas gradualmente o mito do machismo superou a fase moral do mito e transformou a violência da conquista em algo estético. A violência já não mais existe para chocar, ela é uma prova da excepcionalidade do herói. Somente um herói especial consegue cometer tantas enormidades e não somente sobreviver fisicamente íntegro, mas também mentalmente são. O perdedor, o fraco, pode ser aquele que morre ou que é abatido apenas espiritualmente, pela enormidade de seus crimes.
Neste ponto, o mito machista transforma o herói em um monstro moral. “Rambo”, por exemplo, triunfa à custa de sangue inocente, produzindo retaliações exageradas para agressões cometidas por pessoas sem noção (como no primeiro filme) ou levando o assassinato a um nível estético (segundo e terceiro filmes). Exemplos semelhantes abundam, desde que Dirty Harry chegou às telas.
Uma sociedade machista nada mais é do que uma guerra sem quartel de todo homem contra todo homem para ver quem ganha mais dinheiro, acumula mais coisas e “come” mais mulheres. Aqueles que se recusam a tal papel são tidos como incapazes de exercê-lo. Aqueles que falham nesse papel são os “perdedores”, os fracos.
O perdedor é apresentado com trejeitos e atributos femininos, como o corpo flácido (símbolo imemorial da fragilidade feminina) e/ou gordo (idem, desde a Vênus de Willendorf) e socialmente inepto.
Em parte este mito transita em um terreno comum com a literatura de autoajuda, que se baseia em ensinar ao indivíduo que as suas carências resultam de sua incapacidade, e não da injustiça inerente à sociedade ou de fatores externos quaisquer.
O Homem sempre está disponível
A solidão do herói se completa com a maneira casual com que se envolve sexualmente. O verdadeiro herói tem uma potência sexual sobrenatural, que não apenas lhe permite “comer” uma série absurda de mulheres (tal como Hércules, que, em poucos dias, engravidou as cinquenta filhas do rei Thespius) como também parece estar sempre pronto a copular quando uma mulher o chama, a menos que esta mulher seja fisicamente detestável (e raramente uma tal mulher aparece diante do herói com desejos sexuais, ou, se o faz, é uma bruxa que se transmuta em jovem bela).
A absoluta disponibilidade sexual do herói equivale a uma atitude desabrida em relação ao sexo, que deixa de ser visto como algo consensual e significativo, e passa a ser apenas um meio de se avançar a história, ou de fazê-la parar onde necessário seja. O herói não consente, ele está obrigado a “comer” toda mulher que o deseje. Caso não o faça (e às vezes também quando o faz) esta mulher se torna sua inimiga, para vingar o “desprezo”.
Nem é preciso dizer o quanto este estereótipo serve para manter viva a imagem do homem como um boçal de pênis ereto, pronto a introduzi-lo em qualquer mulher descuidada ou interessada. Nada pode ser mais negativo para a construção da identidade masculina quanto essa idealização da promiscuidade como o estado natural do homem, ainda mais porque, para espelhar isso em uma estúpida busca de “igualdade”, existe um setor do feminismo que prega a mesma atitude por parte das mulheres “liberadas”. Como se criar mais um problema fosse uma maneira de resolver o problema original.
As características femininas não têm valor
A mulher, para se tornar heroica, não pode ser realmente feminina, ou mesmo diferente, em vez disso, ela precisa masculinizar-se, ou, como seria melhor dizer “machificar-se” (posto que o estereótipo machista na literatura não é propriamente “masculino”, mas machista).
A mulher heroica é uma mulher-macho, não é uma mulher dotada de valores e habilidades capazes de vencer. Ela precisa abandonar a delicadeza e, principalmente, a sensibilidade, tal como a personagem de Demi Moore em G.I. Jane.
Ter uma heroína assim não ajuda a diminuir o machismo da literatura, em vez disso, serve para corroborá-lo, ao reforçar que a mulher só pode ter valor se assemelhar-se ao papel do macho alfa. Na prática, isto implica em incorporar a mulher à competição desenfreada pela liderança do bando, criando uma “guerra dos sexos” artificial.
Por sua vez, o homem que não corresponde ao padrão do macho é associado a características femininas ou afeminadas, o que equivale a neutralizá-lo no papel de personagem meramente cômico ou de vilão caricatural.
Conclusões
Este texto é um brevíssimo bosquejo sobre as intersecções entre a “Jornada do Herói” e a difusão da ideologia machista mais visceral. Não pretendi aqui dar um aprofundamento, de que talvez eu nem seja capaz, mas apenas conclamar ao debate. Futuramente posso reelaborar o tema com maior desenvolvimento, dependendo de como ele for recebido e de que sentidos o debate seguir.