Consumado o ato final das manobras ritualísticas que resultaram no fim inexorável de um governo natimorto pelas circunstâncias atrozes da nossa política, resta-nos avaliar a extensão do desmonte. A impressão inicial destes primeiros dias é a frustração de uma derrota irreparável, como se o país tivesse decidido abortar-se. Os sinais enviados pelo novo governo sugerem entreguismo, retrocesso, autoritarismo e obscurantismo, e tudo em modo berserk.
A reorganização ministerial sinaliza para uma radical inversão de prioridades, e a nova estrutura sugere uma mudança política que ninguém entre os apoiadores do impedimento de Dilma Rousseff poderia esperar. Porque, de fato, toca muito pouco nos temas que moveram o impedimento, e parece cutucar bastante justamente naquilo que a esquerda dizia que eram os motivos reais para o afastamento da presidente: as políticas sociais e de soberania nacional.
A MP 726 começa com um soco no estômago, pois o seu artigo primeiro extingue a a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, a Controladoria Geral da União, o Ministério da Cultura, o Ministério das Comunicações, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. As atribuições desses ministérios são transferidas a outros, o que pode levar o leitor incauto a imaginar que são medidas secundárias. Mas não são. Existe um certo símbolo incômodo na extinção desses órgãos.
Muitos de meus amigos escritores andaram engrossando o coro rouco que ajudou a empurrar o antigo governo de seu pedestal. Há certo conforto em fazer parte de um grande número, é preciso um caráter forte e uma certa dose de ceticismo (talvez até de cinismo) para evitar juntar-se às massas que estendem o braço conforme. Mas escritores não são filósofos e o caráter definido nunca foi uma qualidade do ser humano médio, então é natural que muitos que se acham brilhantes tenham envergado uniformes, aceitando ser liderados, por mais que abominassem as “massas”.
Alguns desses escritores tiveram a decência de desaparecer dos debates, agora que os primeiros atos do interino se desvelam. Há uma certa humildade em não tentar justificar-se quando as consequências da estupidez se avolumam. É preciso uma dose excessiva de pedantismo e de autoindulgência para ainda cavalgar Rocinante rumo ao moinho depois de saradas as costelas.
Eis que o governo que assumiria na vacância da presidenta que se foi começa por extinguir o Ministério da Cultura. Alguns desses autores que defendiam o impedimento agora tentam minimizar o ato, sabidamente agourento, dizendo que o Ministério se encontrava “aparelhado”, que pessoalmente não dependiam dele ou que não era realmente necessário. Alguns chegam a citar que certo país não possui um Ministério da Cultura. Desculpas, esfarrapadas. Outros, meio que em desespero, indagam o que há de especial em um nome, por que defender que exista uma repartição com o nome de cultura seria essencial para a cultura? Ingenuidades.
O nome não é a essência, o nome é o reflexo. Tal como o seu nome não é você, o nome “Ministério da Cultura” não é a coisa em si. Porém, abolir-se o nome é algo que só é possível quando se abole a coisa. Pode-se abolir a coisa sem abolir o nome, obviamente, mas não se pode abolir o nome sem abolir o que ele representa. Não há coisas nem essências não nomeadas, a não ser aquelas não descobertas.
A abolição em si não seria uma catástrofe se fosse um ato planejado e gradual. Realmente não é essencial que exista um órgão no governo dedicado exclusivamente à cultura. Nunca foi necessário. Porém, a extinção súbita e simples de tal órgão não pode ser vista como algo irrelevante ou gratuito.
Nós, autores, devíamos ter mais sensibilidade para entender as conotações das palavras (afinal, usamo-las no dia a dia, para o nosso trabalho). Não conseguir compreender entrelinhas deveria ser uma humilhação para um escritor, assim como empregar falácias para um filósofo. Entanto vivemos em um país onde um dito “fiofolósofo” (sic) emprega argumentos falaciosos e escritores não veem importância simbólica alguma no Ministério da Cultura. Não veem ou fingem não ver, para não terem de rever a própria ingenuidade em apoiar um processo que se apresentava como reacionário desde o início.
Triste viver em um país onde a ideologia se sobrepõe de tal forma ao conhecimento que aqueles que produzem cultura não conseguem dar valor aos órgãos criados para trabalhar em prol da cultura. A ideologia faz alguns acreditarem que o Ministério da Cultura mais atrapalha do que ajuda. Certamente há países onde tal ministério não existe, mas nesses países há outras instituições para executar aquilo que o MinC fazia.
Creio que em parte essa série de justificativas que tenho visto brotar nos movimentos literários reflete apenas uma coisa: a vontade de não dar o braço a torcer. Afinal, reconhecer que a medida tomada pelo governo foi obscurantista envolveria rever a própria participação na longa campanha de difamação e desestabilização do governo que caiu. Ver-se no espelho como alguém que foi usado e agora está sendo descartado é humilhante demais, por isso é mais digno fingir que “sou escritor e não sou dessa panelinha” ou “nunca precisei do Ministério para nada.”
Amigos, o MinC não existia “para nós”, mas, sim, para criar e gerir uma política cultural nacional que, se viesse a nos beneficiar, o faria apenas indiretamente. Nenhum produtor de cultura tem o direito de reivindicar apoio pelo governo, querer isso seria como se achar uma instituição. O MinC estava aí para criar e difundir bibliotecas, museus, centros de cultura, pesquisas de folclore, coisas desse tipo. Você, enquanto consumidor e produtor de cultura acabaria tendo algum tipo de relacionamento com ele — a menos que, de fato, como muitos “escritores” que conheço, você não seja um consumidor de cultura, mas um ignorante. Não acho que seja o caso, a vergonha de se radiografar com uma bala no pé deve ser a principal razão.
O que de fato está a ocorrer é o enterro precoce de um projeto nacional. Não mais o sonho de usar os recursos obtidos com a exploração do petróleo para alavancar a educação nacional — o que nos importa, enquanto escritores, se o povo é educado ou não, não é mesmo? Não mais a ideia de projetar uma imagem internacional do Brasil que atraísse atenção do mundo para nós e para a nossa cultura — o que teríamos a ganhar se o nosso país entrasse na moda e gente do mundo todo quisesse ler-nos? Muito melhor um governo que pensa em privatizar até o Ensino Médio e que de cara extingue o Ministério que incentivava a tradução de literatura brasileira no exterior. Afinal, não dependemos em nada dessa “panelinha” e não teríamos nada a ganhar se o mundo se interessasse por nós. Não o queríamos, no fundo, porque temíamos que o mundo visse o tamanho de nossa miséria, a extensão de nossa ignorância e a precariedade de nossa cultura.