Esta semana o jornal O Globo publicou matéria sobre Gordon Lish, editor americano que em certa época editou a Esquire. A matéria é extremamente interessante para amadores como eu, mas para profissionais também. Acredito que há muita reflexão produtiva que se pode fazer a partir do conteúdo.
A primeira impressão que o texto me deixou foi profundamente negativa, um sentimento de verdadeira repulsa. Afinal, o tipo de relação entre editor e autor que é defendido por Lish (e pelo autor da reportagem) não parece nada saudável e nem literariamente íntegro. Há uma questão mais profunda do que a mera qualidade que precisa ser considerada nesse caso: as relações de poder entre autores e editores, seus limites éticos e implicações disso para as esferas concêntricas do fazer literário e da experiência da leitura. Nas palavras do jornalista que o entrevistou, o trabalho de Lish assim fluía:
Com o aval do autor, Lish chegava a cortar 60% dos contos, mudava títulos e reescrevia finais. Antes um escritor obscuro, Carver ficou grato a Lish pelo sucesso repentino. Mas começou a se incomodar com as intervenções e, no terceiro livro, limitou a participação do editor.
“Com o aval do autor” é o primeiro problema. Sabemos pelos parágrafos anteriores que Lish se tornara o editor de uma influente revista que publicava ficção, enquanto (Raymond) Carver ficara para trás, colaborando em revistas literárias menores. Pergunto ao amigo leitor: se um antigo amigo seu que se tornou editor de uma revista influente lhe convidasse para publicar e impusesse as condições que Lish impunha, você recusaria? Devido à discrepância na relação de poder entre Lish e Carver, o “aval” dado pelo segundo às intervenções do primeiro não pode ser considerado como concedido de livre e espontânea vontade: é claro que Carver não poderia recusar. Recusar as condições de Lish significava renunciar à possibilidade de ser publicado por uma revista influente, significava condenar-se a continuar nas publicações regionais, poderia até mesmo significar sua inscrição em alguma lista negra, pois o editor, ressentido, talvez, pela forma da recusa, poderia difundir a imagem do convidado como uma pessoa irascível, “sem humildade” e inflexível. Qualidades que dificilmente contariam em favor de Carver quando ele tentasse outras oportunidades. Esse é o poder que Lish exercia sobre Carver e os demais, sem que estes pudessem recusar.
Acredito que a situação é semelhante à de uma pessoa de família pobre que se vê assediada por alguém de família rica. Recusar significa continuar no seu meio, namorar outra pessoa do mesmo nível social, não ter acesso ao high society. Há toda uma gama de oportunidades que uma tal relação pode ensejar, para quem está disposto a ceder sexualmente diante da perspectiva de subir na vida. Carter certamente aceitou que seu texto fosse estuprado segundo os conceitos literários de Lish para ter a chance de subir. Não existe “aval” algum aí nessa relação, o que existe é a submissão do autor ao poderoso editor, aceitando ser martelado dentro da forma até se tornar aquilo que o outro acha que ele deve ser.
Mudar títulos é uma coisa comum na literatura, e eu não acho que seja algo normalmente significativo. Os autores mesmos costumam mudar frequentemente os títulos de suas obras (eu mesmo tenho alguns contos que já tiveram mais de dois títulos diferentes). Cortar até 60% de uma obra pode parecer drástico, mas é certamente necessário cortar-se alguma coisa. Há obras que claramente padecem de excessos gordurosos que prejudicam a leitura. Agora mesmo estou traduzindo uma obra que se beneficiaria muito do trabalho de Lish. Talvez não cortando 60%, mas no mínimo um quarto do texto mereceria ser amputado. O problema é que estas intervenções, todas juntas, e ainda com o acréscimo da alteração dos finais, significam um nível de intervenção editoral que descaracteriza a obra.
Parte do sucesso de Lish se deve ao fato de que ele, de fato, parecia ter muito bom gosto e muito bom faro. O problema é que poder e bom gosto não costumam andar de mãos dadas. Nem sempre os editores são competentes como Lish, ou trabalham seguindo os ventos certos. Colocar tanto poder na mão do editor significa expor o autor ao risco de sua obra ser mutilada terrivelmente nas mãos de alguém que tem muito poder, mas não necessariamente muito talento. Aliás, a história da literatura tem mais casos de obras corrompidas pelas patas pesadas de editores insensíveis (e insensatos) do que diamantes brutos lapidados nas mãos de ourives aptos como Lish.
Por isso creio que o trabalho de Lish, independentemente de seus resultados, é mais nefasto do que positivo. O seu sucesso cria justificativas para que outros o sigam. Mas o fato de muitos irem pela mesma estrada não significa que todos, ou mesmo a maioria, compreendem-na e seguem-na sabendo aonde vão. Prevejo que, por causa desta entrevista de Lish, os editores brasileiros vão ficar ainda mais à vontade para enfiar seus dedos gulosos nas entranhas das obras que lhes forem submetidas para avaliação. Não o farão com conhecimento de causa, mas para emularem o “mito” de Lish. Imporão modificações por imitação do exemplo (e todo e qualquer exemplo que venha dos EUA será seguido pelas mentes colonizadas do subtrópico) e pelo gáudio exercício do poder, justificado pela imagem do antigo editor da Esquire.
Preocupa-me sobremaneira a maneira liberal com que Lish afirma que mudava os finais dos contos. Claro que há casos em que um autor, especialmente iniciante, produzirá finais decepcionantes para os seus contos, e que é trabalho de um bom editor detectar essas debilidades e sugerir onde mudar. Porém não há em toda a entrevista de Lish nenhuma sugestão, remota que seja, de que esse trabalho fosse feito de maneira interativa. O que Lish se jacta de ter feito era mesmo intrometer-se no texto original e produzir ele mesmo as mudanças, impondo-as ao autor:
Muito dessa fama se deve a seu trabalho com Raymond Carver, considerado um dos maiores contistas do século XX e um mestre do minimalismo — estilo em parte manufaturado por Lish, que reescrevia e cortava páginas inteiras do autor.
Fica claro neste texto que as obras de Raymond Carver que Lish publicou não são, de fato, dele. Foram “manufaturadas” por Lish a partir dos originais de Carver, através de um processo de reescrita e de corte de “páginas inteiras”. Não me parece que esse trabalho fosse resultado de Carver seguir sugestões dadas por Lish, mas que o próprio Lish retrabalhava os textos originais de Carver, dando-lhes uma outra cara, que era a sua, de Lish, não a do autor.
Carver “ficou grato” a Lish pelo sucesso repentino que obteve, e dificilmente alguém não ficaria. Porém é preciso que perguntemos se essa gratidão era plena ou se era, na verdade, um sentimento agridoce, e também até que ponto Carver ainda se reconheceria nos textos que Lish publicou sob seu nome. Cabe-nos ainda perguntar se, de fato, esses textos merecem ainda ser considerados como de autoria de Carver, ou se deveriam ser atribuídos a uma co-autoria.
Depois da gratidão inicial, Carver começou a se incomodar com as intervenções de Lish, e a partir de seu terceiro livro limitou a participação do editor, de que resultou uma mudança de estilo que foi sentida pela crítica literária americana. Isso nos permite pressupor que a gratidão inicial de Carver não podia ser sincera: o autor certamente usufruía de uma fama resultante da atuação de Gordon Lish, mas enfrentava um conflito interno em relação ao produto desta colaboração. À medida que conquistou um espaço próprio na literatura, o autor procurou se alforriar da mão pesada do editor.
Este me parece um movimento bastante natural, e revela as relações de poder subjacentes à interação dos dois: à medida que Carver adquire poder, procura usá-lo para assumir o controle da própria literatura, anteriormente sequestrada pelas imposições do editor. Se a palavra parece forte demais, justifico-a:
Em 2009, depois de longa polêmica com Lish, a viúva do escritor, Tess Gallagher, publicou a versão original de seu segundo livro, com o título “Iniciantes”, revelando um Carver mais expansivo e sentimental.
Este parágrafo deixa claro que a influência de Lish sobre Carver continuou mesmo depois da morte do autor. Tanto assim que a viúva, e suposta herdeira do espólio literário dele, precisou travar uma “longa polêmica” com o editor para conseguir publicar uma versão do segundo livro de Carver produzida a partir dos manuscritos originais, anteriores às intervenções de Lish. Evidentemente a polêmica se deveu ao risco que tal empreendimento oferecia à imagem mítica do editor. Caso o livro publicado pela viúva fosse bem considerado pela crítica, o que não sabemos se ocorreu, visto que a matéria só nos dá o lado de Lish, o editor corria o risco de ver suas “intervenções” reconsideradas pela crítica literária de uma forma negativa. Temia que seus “melhoramentos” dos textos alheios (feitos com mão grande e a liberalidade que só experimenta aquele que amputa o que não lhe pertence) acabasse vista como uma espécie de estupro literário.
O que transparece do texto como um todo é que Gordon Lish se vangloria de feitos que estão um pouco além do limite da ética profissional e que transpiram arrogância e abuso de poder. Independente da qualidade das obras que ele publicou, seu método é desrespeitoso para com os escritores e, de fato, serve-lhe mais para construir a auto-imagem. Caso o amigo leitor duvide do ego enorme do ex editor, o próprio parágrafo de abertura da matéria é suficiente para atestá-lo em cartório e com firma reconhecida:
Houve um tempo em que Gordon Lish era conhecido como Capitão Ficção. O apelido foi inventado por ele mesmo, nos anos 1970, quando se tornou editor da revista “Esquire”…
Pessoas normais não se dão apelidos grandiloquentes e somente pessoas muito poderosas e influentes conseguem que um séquito de sicofantas adotem o apelido que elas próprias escolheram para si. Pelo que declarou à matéria, fica claro que Lish realmente se via como uma espécie de herói predestinado, a quem era concedido o direito divino de pegar a obra alheia e martelar como lhe conviesse. Você ainda acredita que havia algum “aval” do autor diante disso ou que esses autores realmente se sentiam “gratos” por serem publicados desta maneira?
Concordo que essa entrevista que o cara concedeu certamente trará efeitos negativos no meio editorial do país, que adora copiar modas ‘ianques’; esse destaque dado a esse cara é típico das ideias dominantes sobre literatura da nossa época, que defendem texto curto, simples (leia-se pobre), que não ofereça dificuldade alguma ao leitor, coitadinho, esse aí não pode ser contrariado ou obrigado a pensar…
Acho que no começo é mais fácil o autor se submeter a esse tipo de coisa, pois tem toda aquela gana de entrar logo no negócio. Depois, conforme o exemplo, vai aceitando cada vez menos.
Acho que na verdade ninguém gosta muito de alterar algo que pensa estar bom. Tipo… quando recebemos uma crítica e conseguimos perceber que de fato a o que melhorar, é uma coisa. Quando percebemos que é só uma questão de gosto (eu acho que está bom do jeito x, mas o editor acha que ficaria melhor do jeito y), começam os conflitos.
Um escritor só ficaria realmente grato por algo assim caso dinheiro fosse a ÚNICA coisa que importasse para ele. Nesse caso a obra seria uma porcaria então…