Como sou do tipo que acredita que uma Academia é essencialmente uma desculpa para um bando de velhos se concederem prêmios e ignorar o que se faz de novidade neste mundo, nunca dei muita bola ao Prêmio Nobel de Literatura. Especialmente porque a maioria de seus agraciados tem pouca relevância “pop” — o que significa que trazem pouca polêmica — e os que a têm já estão velhos demais para trazerem alguma sacudida ao caretíssimo universo das letras. A coisa mais parecida com tal sacudida foi a concessão a Dario Fò, o comediante italiano que adiou por um ano a premiação de Saramago.
Ao premiar Bob Dylan, porém, a Academia sueca, sem fazer nada de muito diferente do que normalmente faz (premiar pessoas já velhas demais para escreverem ainda algo de realmente provocante usando o Nobel como espada ou escudo), conseguiu causar polêmica. O tipo de polêmica de que eu gosto. A treta trevosa.
Tenho amigos em ambos os extremos do espectro. Desde alguns que juram que elogiar o prêmio a Dylan é ser um ignorante até os que acham que o que aconteceu é o prenúncio do Apocalipse. Esses talvez pensem de acordo com uma frase que cunhei há alguns meses: “os autores de best-sellers não ganham o Nobel, em compensação compram iates, possuem casas na Suíça e têm o poder de foder com a vida de quem os critica.” A frase é engraçada, mas não é bem assim que a coisa vai.
Primeiramente há que dizer que não são raros os escritores de best-sellers que foram agraciados. Isso inclui desde o Rudyard Kipling, nos primórdios do prêmio. E temos nosso precedente nacional, a ABL, que “imortalizou” Paulo Coelho, o mais nocivo dos autores nacionais da era pré-draconiana. Então o consolo dos bons autores, os que não têm iates e nem caviar, não é tão assegurado assim.
Imaginar-se merecedor exclusivo de honrarias é uma forma de orgulho patético que muito autor complexado tem. Não há sequer um dia na história deste planeta desde 1900 em que alguém não tenha escrito uma obra literária e acreditado que estava revolucionando a cultura de seu país ou do mundo. Tampouco houve autor que não vivesse sob o império da crença de que era um gênio incompreendido. De genialidades incompreendidas o inferno do esquecimento está cheio. Crer-se um gênio e crer-se contactado por extraterrestres são coisas que se confundem no fundo da boate quando a luz não está forte.
A única coisa inegável nisso tudo é que se a qualidade é sempre algo discutível, e muito “gênio incompreendido” de fato não a tem, a falta de qualidade é sempre inconteste e vai até o osso, vai além do osso e corta no nível atômico, causando uma fissão da tosqueira que produz um cogumelo de boçalidade. No meio de tudo está o pantanoso terreno que ninguém quer habitar, a planície da mediocridade.
Dentre os habitantes de tal planície há numerosos que gostam de negar simultaneamente duas coisas:
a) Que a planura onde habitam seja precisamente esse fabuloso lugar de que falei; b) Que certo gênero de que não gostam não é arte.
Quem teme o rótulo da mediocridade — em vez de abraçá-la como uma possibilidade que não depende da vontade, mas de muitas circunstâncias incontroláveis e do imprevisível julgamento alheio — enxerga montanhas em lugares onde Deus bateu bife com um martelo e se crê nos píncaros de uma montanha ampla porque enxerga a curvatura da terra, de tão plana que é a região onde está.
Isto, porém, não impede que enxerguem torto aquilo de que não gostam. Como se tivessem a prerrogativa de definir o que é arte ou não. Eu posso não gostar de determinado gênero e dizer claramente que não gosto, mas não tenho o poder de determinar se é ou não arte. Posso dizer que acho que não é, mas minha opinião só tem valor se não for solitária. Muitas vezes somos como aquele cara que sobe numa caixa de frutas e começa a pregar o apocalipse.
A Academia sueca premiou um letrista de música. Para alguns isto é fenomenal, uma prova de “abertura”, como se isso fosse necessariamente bom. Se toda abertura fosse algo de bom trepanação seria sensacional e todos faríamos. Para outros é uma prova de que o fim está próximo, “arrependei-vos vós que lestes Sydney Sheldon ou Kéfera”.
A pergunta que ninguém faz é: Podemos considerar letras de música como uma forma de literatura?
A maioria dos que acham que não está escorada em uma tautologia: a de que letras de músicas são menos complexas do que poemas. Este é um raciocínio muito errado.
Se menos complexidade se relacionasse com o valor artístico de uma expressão, as tetralogias que tanto criticamos teriam mais valor que os contos de Machado de Assis. Sabemos que não é assim. Complexidade é uma característica vazia em si, caso não leve a algo significativo.
Letras de música não são tão complexas quanto poemas porque são uma expressão artística diferente. É mais fácil fazer um desenho do que uma escultura realista porque são expressões diferentes. Nem todo poeta consegue ser bom letrista e nem todo letrista consegue ser bom poeta, assim como nem todo contista é bom romancista e nem todo romancista é bom contista.
A falta de complexidade das letras de música não tem relevância para julgar seu caráter literário ou não. Ainda mais que uma boa letra não é necessariamente a mais complexa. Há casos de complexidade a serviço da qualidade, como a célebre “Construção”, de Chico Buarque, mas há casos em que a complexidade é mera boçalidade, como “Meia Lua Inteira”, do Carlinhos Brown. Há casos em que a simplicidade é genialidade, como algumas letras de Vinícius de Morais, e outros em que é apenas tosquice, como “Ai Se Eu Te Pego”.
Embora eu não pretenda julgar o mérito de Bob Dylan (no meu gosto pessoal ele é um semideus, mas não falemos disso aqui), eu acredito que, mais do que definir a qualidade artística de sua obra, a Academia Sueca botou um fedido bode na sala:
Podemos considerar as letras de música como mais uma expressão artística da literatura?
Veja bem, ainda não estamos pensando em colocar em livros didáticos letras do “É o Tchan” no lugar de poemas de Castro Alves. Trata-se apenas discutir se temos um gênero literário novo. E já não era sem tempo discutir isso.
Antes da existência do Prêmio Nobel, a música pop não existia, somente a folclórica e a erudita. A primeira tinha letras que não eram consideradas como arte, obviamente, e a segunda tinha letras que se baseavam na poesia, quando havia letra. Mas desde o século XVIII havia transgressões, como Mozart, que usou um libreto brega e de horrível qualidade literária para a sua ópera “A Flauta Mágica”.
Com o desenvolvimento da indústria fonográfica, a canção pop passou a existir como um gênero independente, e substituiu a música erudita no gosto das elites. Esse fenômeno permaneceu ignorado pela crítica de arte por muito tempo. Havia uma “crítica musical” à parte da crítica literária, e não era raro o julgamento do mérito da letra estar subordinado ao da música, ou ser feito por musicólogos mais interessados na segunda do que na primeira. Raramente a Academia se interessava pela letra de música, e quando o fazia era para torcer-lhe o nariz.
O Brasil foi, curiosamente, um dos países onde a transgressão aconteceu de forma mais extensa, com poetas transitando para a música e vice-versa. Vinícius de Morais, João Cabral de Melo Neto, Paulo Leminski, Nélson Motta, Tavinho Paes, Paulo César Pinheiro… Houve até quem enxergasse relevância no sofrível Renato Russo, sobre quem ainda teremos de falar…
Então este prêmio dado a Dylan é culturalmente importante pela discussão que ensejará. Não é um prêmio qualquer, que possa ser ignorado. É um prêmio que ficará para a história, e que nos fará pensar pelas décadas futuras.
Pensem nisso.