Recebi uma curiosa mensagem de um amigo: “até agora nenhuma livraria foi saqueada no Espírito Santo.”
O estado vive um caos de segurança pública, a polícia desertou das ruas, a sociedade regrediu ao estado de natureza teorizado por Hobbes e todos aqueles ditos em latim se materializaram: bellum omnia omnes e homo homini lupus. Nessa situação de total descontrole vemos pessoas aproveitando para resolver as contas com seus desafetos e gente roubando três tipos principais de bens: eletrônicos e eletrodomésticos, roupas e calçados, e joias e itens de luxo em geral. Houve também saques de outros itens, mas não há uma notícia que não cite dois ou três destes mencionados, então, podemos considerá-los como os principais. Houve também depredações as mais diversas, principalmente contra o transporte público e supermercados.
Creio que podemos aprender muito sobre uma cultura se analisarmos aquilo que seus membros roubem e aquilo que depredem.
O roubo é uma reação à desigualdade social, a depredação é uma expressão de rebeldia contra o sistema. Podemos comparar o roubo ao linchamento: assim como se deseja matar o bandido por acreditar que o estado não o punirá adequadamente, também se deseja roubar os bens disponíveis no comércio que, no entanto, permanecem sonegados à maioria da população devido à falta de meios para adquiri-los.
Um e outro, linchamento e saque, decorrem da sensação de enfraquecimento do estado, tornando possível a ideia de que a punição não existirá nem para os linchadores, nem para os saqueadores.
Para que uma sociedade comece a linchar e a saquear é preciso que se generalize a desesperança. No Nordeste, nos anos 1970 e 1980, a combinação de miséria e seca levou o povo a saquear supermercados para obter comida. Não há punição possível que demova da intenção de saque ou roubo aquele que está diante da perspectiva de morrer de fome. A morte rápida na mão da polícia ou de capangas é uma consequência branda diante do horror da inanição, ainda mais quando a desgraça se abate sobre a família. Ao analisar os saques do Nordeste em décadas passadas, aprendemos que ali havia uma cultura de desigualdade e egoísmo exacerbados, que não tinha vergonha de relegar grande número de seus cidadãos a um tal estado de miséria que o crime restava como esperança.
O Brasil dos últimos anos começou a padecer de desesperança. A crise dos governos trabalhistas de Lula e Dilma desembocou num desencanto tão completo que mal se crê que a sociedade ainda funcione. Tudo isto adicionado a uma crise de segurança pública que já era anterior, e a uma crise de empatia que nunca se resolveu.
O Brasil é a pátria do capitalismo selvagem. Ou melhor, de um capitalismo neolítico. A propriedade privada, base do capitalismo, não se sustenta pelo estado de direito e pelo império da lei, mas pela força bruta e pela alienação. A propriedade não está a serviço do estado e nem da coletividade, ela não gera riqueza para a sociedade, não distribui seus frutos. O resultado são massas e massas de gente, indigentes da cultura, que contemplam os produtos que dão status, mas não possuem meios para adquiri-los. A ideia, tão nossa, de inclusão social pelo consumo, de aceitação identitária pela assimilação do look e pela aquisição do produto que está moda.
A violência, em grande parte, nasce disso. Não se rouba para comer, porque a fome já deixou de ser um problema. Em uma sociedade que julga as pessoas pelo que vestem, qual é exatamente a questão ética em roubar para vestir melhor? A crise moral, anterior e mais profunda que a econômica, deriva da injustiça essencial de nossa cultura, que, apesar disso, ironicamente esfrega na cara dos que nunca tiveram reais oportunidades, a ideia marota de uma “meritocracia”.
Por causa dessa crise ética e por causa da inclusão pelo penduricalho, pelo fetiche da marca e pela “marra” de “causar”. Por causa dessas coisas foi que chegamos ao estado em que possuir se tornou uma necessidade imperiosa a ponto de roubar. Roubar um celular “da hora” se equipara com roubar comida. Como dizia uma antiga canção, “se o que nos consome fosse apenas fome, cantaria o pão.” O que nos consome já não é a fome, é a necessidade de sermos aceitos como seres humanos dignos em uma sociedade que nos julga pelo que obtemos, e não por quem somos. Se a sociedade somente valoriza o indivíduo que tem um “carrão”, muitos se sentirão tentados a obtê-lo qualquer que seja o custo.
O custo moral é o grande freio que deveria impedir o rompimento do contrato social. Mas, em uma sociedade de conchavos, como a nossa; na qual se diz que “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”; a moralidade se torna um freio fraco para deter a urgência que se sente de obter os itens necessários para a aceitação. Vemos os empresários conhecidos sonegando impostos impunemente; vemos policiais aceitando propinas; vemos políticos desviando verbas; vemos um golpe parlamentar em pleno andamento, e com o objetivo de frear investigações contra corruptos; vemos as grandes empresas do país envolvidas na lama; vemos a justiça sentada aos pés dos poderosos e das grandes corporações, abanando o rabinho obedientemente em vez de julgar crimes ambientais, desvios de verbas ou helicópteros cheios de cocaína; vemos a impunidade dos crimes no dia a dia; vemos nossos salários serem aviltados e nossas aposentadorias serem esquartejadas em benefício dos patrões e das seguradoras… Então há quem pense que roubar não é mais errado. Se não se pune um notório e nacional sujeito a quem não se deve apertar a mão por receio de lá ir-se o relógio, a ideia que fica é a de que ser ladrão é apenas mais uma maneira, somente um pouco mais controversa, de se obter os bens através dos quais legitimaremos nossa humanidade e nossa dignidade diante de uma sociedade que nos ignora enquanto gente e que nos enxerga pelo que levamos a reboque.
Basta, então que desapareça a repressão, ou que surja uma brecha. Gente que acredita em Deus começa a acreditar que tudo é permitido. O crime não é por falta de Deus, é por pura falta de medo das consequências. A greve da polícia escancarou, mas todos sabemos que não se pode distrair com um computador portátil na rua, que o carro estacionado nunca pode ficar aberto e sem alarme, que andar com dinheiro no bolso é um perigo, e que as lojas investem em segurança para se proteger dos consumidores que surrupiariam itens se não fossem vigiados.
A miséria moral do Brasil supurou no Espírito Santo, mas a inflamação é evidente e dolorida, antiga e ignorada. Não se engane, leitor. Aquele segurança que você vê dentro da loja não está lá para impedir um assalto, está lá porque os donos da loja acham que todo cliente em potencial é um ladrão em potencial.
Mas, voltando às livrarias.
Como nós não ligamos para a cultura e a arte, não se ouviu falar de quem tivesse saqueado livrarias e roubado livros. Por que o fariam? Livros não dão status. Celulares e eletrodomésticos, sim. O que nos consome não é a fome do espírito, mas a vontade de ostentar.
Eu queria viver em um país em que as meninas roubassem livros, mas elas roubam calçados, joias e aparelhos eletrônicos.
É como já dizia a música.
“Vou aproveitar a pomba branca aposentada,
pra levar pro diabo minha carta.”