Alfred Russell Wallace, um respeitado cientista inglês do século XIX, que havia descoberto a evolução por seleção natural antes de Charles Darwin, certa vez ficou injuriado com um anúncio publicado em uma revista local por um sujeito chamado John Hampdem, que tinha mais dinheiro do que cultura, na qual se desafiava qualquer cientista a provar que a terra era redonda através da medida do nível do Rio Bedford, que havia sido medido em 1838 por um agrimensor chamado Samuel Birley Rowbotham. Hampdem, fascinado com esses resultados, pelo potencial de justificação da ignorância que ofereciam, propôs-se a pagar £500 (cerca de R$ 100.000,00 em dinheiro de hoje) a quem demonstrasse a falsidade do trabalho de Rowbotham e a esfericidade da terra.
Como todo cientista inglês injuriado que se preze, os quais eram bastante parecidos com as caricaturas deles feitas por Jules Verne em suas obras, Wallace resolveu entrar no desafio, provar a esfericidade da terra e ganhar uma grana fácil. Mas, como diz a sabedoria popular, nada é tão difícil de ganhar do que um dinheiro fácil.
Foi realmente fácil para Wallace refazer as medidas de Rowbotham de maneira correta (ele era um péssimo agrimensor, provavelmente) e igualmente fácil convencer o editor da revista (e juiz do desafio) a pagar o prêmio. O difícil foi evitar a tempestade de merda que se abateu depois sobre sua vida.
Arrependido de seu desafio e absolutamente não convencido de que a terra era redonda, Hampdem passou a perseguir Wallace para exigir de volta seu dinheiro, chamando-o de charlatão e de fraudador. Wallace não tinha a menor intenção de devolver as £500, não só porque as julgava honestamente ganhas, mas também porque uma boa maneira de se punir um imbecil é fazê-lo perder dinheiro. Mas Hampdem não se deteve diante da impassividade cavalheiresca de Wallace e chegou a ameaçá-lo fisicamente. Não tendo sucesso nisso (pois Wallace, em seus cinquenta e poucos anos de idade, ainda estava em excelente forma física), Hampdem recorreu à justiça.
Uma das características universais da justiça é a sua imprevisibilidade. Humanos que são, os juízes costumam falhar exatamente nas mesmas situações em que o grosso da humanidade falha. Juízes podem ser criaturas difíceis. Frequentemente exigem provas de coisas que imaginamos provadas em si mesmas (como a esfericidade da terra ou a inocência do réu até que se demonstre evidência de culpa). Podem ser simpáticos com os argumentos mais claros, que nem sempre são os mais verdadeiros (não esqueçamos de que as mentes embotadas adoram luzes fortes e que os intelectos lentos preferem explicações mais rápidas e rasas). Tudo isso para dizer que a justiça, querendo ser justa, tomou uma série de decisões que tornaram a vida de Wallace um inferno.
Comecemos pela insistência de Hampdem, que iniciou diversos processos com as mais diversas alegações, recolhendo donativos de simpatizantes para financiar sua batalha judicial. Como a ignorância é o recurso mais abundante do planeta, mesmo na Inglaterra, houve muita gente para doar-lhe dinheiro e com isso Hampdem, um sujeito apenas remediado, teve mais recursos jurídicos a seu dispor que o “rico cavalheiro” Wallace. Ele também atraiu advogados que queriam mostrar serviço em casos rumorosos — e o caso logo se tornou famoso no país todo.
Apesar de Hampdem chegar a ser preso por ameças de morte a Wallace e de ser também condenado a indenizá-lo por difamação (um valor irrisório), no fim da longa batalha judicial (na qual Wallace acabou gastando mais do que £500 em custas processuais e honorários de advogados) a justiça, por “piedade” do “homem simples do povo”, aceitou o argumento de Hampdem, segundo o qual Wallace já teria se voluntariado para o experimento depois que Hampdem já havia desistido do desafio e tentava obter de volta o seu dinheiro (que fora depositado à disposição do editor da revista e juiz da questão).
Com isso Wallace teve de devolver os £500 a Hampdem, que se safou do caso com punições mínimas por tudo o que dissera de ruim contra o cientista, e que ainda pôde se vangloriar de tê-lo vencido na justiça e assim “provado” que a terra era plana. A mesma multidão de ignorantes que lhe doara dinheiro se deleitou com isso, afinal, se a justiça decidiu, então que se cumpra, a terra fica até piramidal, se um juiz assim mandar, não é mesmo?
Para cúmulo de sua desgraça, Wallace ainda teve a sua reputação junto à Royal Society praticamente enxovalhada pelo caso. Não que os cientistas acreditassem nas sandices de Hampdem, mas eles acusaram Wallace de imaturidade e de “temeridade”, por aceitar discutir com um notório imbecil um fato científico inquestionável. Do outro lado do Atlântico, o americano Mark Twain, que acompanhara o caso, cunhou sobre o episódio uma frase que se tornou célebre:
> Nunca discuta com os idiotas, eles o farão descer a seu nível, e aí o vencerão pela experiência.
Hampdem tinha experiência em ser idiota, e tinha conexões com inúmeros outros idiotas, que lhe ofereciam recursos e apoio moral, até mesmo na justiça, onde a idiotice não deixa de chegar. Wallace jamais teve qualquer chance: era praticamente um “cabaço” entre os idiotas, fácil de empurrar para lá e para cá. Tolhido pelos ventos da estupidez coletiva, ele acabou derrubado e jamais se recuperou. Vinte anos depois estava negando a eficácia das vacinas e terminou sua carreira científica em total desgraça.
Normalmente é isso o que acontece com quem se propõe a “debater” na internet. Debates na internet são exatamente como a aposta de Hampdem, feita através de um antepassado pré-histórico da internet: os classificados de revistas e jornais. Debates na internet são um ritual de desafio entre idiotas, que arrastam asas e abrem rodas como perus em um terreiro de fazenda. Quem faça mais barulho, avermelhe mais o papo e grite glu-glu mais alto costuma ser tido como vencedor, pois num debate entre *pessoas* o vencedor é quem se impõe pela presença, não quem tem razão.
Os grandes debatedores, assim como os grandes políticos e os grandes oradores, precisam ser mentirosos. Não se convence o público com verdades, porque as verdades são limitadas. A verdade tem aplicação específica, ela não se adapta à necessidade das circunstâncias. É muito fácil “vencer” um debate na internet dizendo que um pão não cura dor de cabeça ou que uma chave de fenda não serve para passar manteiga num biscoito. Você talvez se assuste com essas afirmativas, mas não se assusta quando uma cavalgadura declara triunfante que a teoria da evolução não explica a origem da vida ou que a obra de Marx é toda inválida porque o “socialismo” revolucionário “falhou”.
Quando o especialista tenta argumentar com a verdade, nas condições limitadas em que ela pode ser demonstrada, o mentiroso manipulador distorce as condições do argumento com falácias, ou puramente com linguagem abusiva (tal como o peru que abre a roda, arrasta as asas no chão, faz “tuuum” e grita “glu-glu”).
Essa disparidade entre a verdade e a manipulação quando postas frente a frente, em um debate estilo programa de auditório, inspirou a criação do meme do pombo enxadrista, que é uma adaptação da frase de Mark Twain em termos tão verbalmente abusivos quanto os debatedores de internet costumam usar:
> Não se joga xadrez com um pombo: ele vai derrubar as peças, cagar no tabuleiro e sair voando. Então você vai parecer idiota, por querer jogar xadrez com um pombo.
Tudo isso é extremamente verdadeiro, mas não muda um fato: se os idiotas nunca forem desafiados eles se multiplicarão e tendem à hegemonia. É necessário barrar o discurso animalesco na internet, impedir que o Macaco Tião continue a atirar suas fezes nas pessoas e ainda ser considerado atração popular do zoológico.
A grande questão é que o debate contra esses discursos de ignorância é simultaneamente impossível e essencial.
Impossível porque não se joga xadrez com um pombo.
Essencial porque a tática de ignorar a estupidez não está funcionando. Os discursos rasos e ignorantes estão crescendo, amplificados pela solidariedade formidável dos imbecis, que formam clubes com extraordinária solidez.
Eu não creio que seja possível aos especialistas levar a efeito esse enfrentamento. Pessoas de intelecto mais desenvolvido costumam ter uma dificuldade muito grande para entender os comportamentos de bandos humanos. Nem o proverbial cego no tiroteio fica tão perdido quanto um sociólogo à solta na sociedade real. Porque o aprofundamento do conhecimento cria também um distanciamento em relação à ignorância.
Mas alguém precisa fazer isso. Se não vamos esperar que pessoas de grande capacidade intelectual o façam, temos de fazê-lo nós mesmos. Não serão os sociólogos, nem os biólogos e nem os matemáticos que se engajarão em debates na internet contra criaturas como Sinotti e o Kataguri, ou mesmo o Olavo de Carvalho. Mas nós precisamos enfrentá-los. Nós que não somos brilhantes e nem temos currículos lustrosos, nós que não vamos emprestar o brilho de nossa derrota à causa desses notórios farsantes.
Temos de enfrentá-los no seu terreno e com pelo menos algumas de suas armas. Temos que mostrar que somos igualmente capazes de derrubar as peças, cagar no tabuleiro e sair voando. Temos que saber abrir a roda, arrastar a asa e fazer “glu-glu”. Não é para educar o povo, porque o povo odeia a verdade, tem aversão ao conhecimento e tem medo da complexidade, enquanto ama a mentira, se compraz na ignorância e busca a superficialidade. A ideia é competir com demônio pela oficina disponível que é a cabeça vazia do povo.
No fim o que importa é angariar simpatizantes para boas causas, mesmo que eles não saibam porque. Se há tanta gente disposta a destruir o mundo achando que o está salvando, dá no mesmo conseguir quem ajude a salvar o mundo enquanto delira achando que o está a destruir.
Muito boa postagem