No cenário literário de hoje existe hoje uma crença generalizada de que tudo deva ser vendido pela mesma pessoa que produz. Na prática, isso coloca o “vender” acima do “produzir”.
É uma visão diferente de outras artes. Por exemplo: no cinema existem produtores, roteiristas, diretores, atores, contra-regras, operários, etc. Papeis muito bem compartimentados. Há quem trabalhe em mais de um (atores que também são diretores, diretores que também fazem roteiro, roteiristas que também produzem, produtores que também dirigem etc.), nem sempre em um mesmo filme.
Sabemos muito bem que, na arte, a especialização é um fator que conduz à qualidade. Você mesmo já deu esse conselho aqui no grupo, várias vezes: “faça aquilo que mais gosta de fazer”, “dedique-se ao que faz de melhor” etc.
A especialização também significa que nos saímos bem naquilo em que nos especializamos e naquilo que se parece com aquilo em que nos especializamos. Existe uma razão pela qual tantos professores e jornalistas escrevem: é que eles já trabalham com palavras, já têm contato com fontes de histórias e frequentemente são cobrados a produzir conteúdo bem estruturado.
Quando somos forçados a fazer simultaneamente duas coisas muito diferentes, a qualidade de pelo menos uma delas necessariamente sofre. Não se pode assobiar e chupar cana. Não se pode ter uma “fábrica de biscoitos amanteigados e detergente líquido”.
A conclusão óbvia é que se o autor precisar ser ao mesmo tempo o autor e o divulgador/vendedor da própria obra, uma das duas coisas ele fará mal ou, no máximo, não fará tão bem quanto poderia fazer se tivesse a possibilidade de maior dedicação.
Em um mundo ideal haveria profissionais da escrita (escritores) e profissionais da divulgação (agentes), relacionados a profissionais da produção/direção (editores) e profissionais das vendas (livreiros, marketeiros).
Sabemos que esse mundo ideal não existe e que no Brasil o mercado editorial padece de muitas deformidades. Então deixemos de lado o idealismo.
No mundo real muitos dos editores não querem produzir/dirigir, dos agentes não querem procurar talentos, dos vendedores não querem se esforçar e dos escritores não querem escrever.
Isso leva ao cinismo em relação às possibilidades do mercado editorial, visto que muitas vezes a procura por uma editora termina na “porta” metafórica de uma “vanity press”.
O autor é levado, então, à ideia de escrever, produzir, divulgar e vender a própria obra (autopublicação). Alguns são bem sucedidos nisso (os que têm talento para a parte comercial). Outros não são tão bem sucedidos (não têm o mesmo talento ou são desfavorecidos por sua localização geográfica, sua formação cultural ou por escreverem para um nicho).
Os autores mais bem-sucedidos vão se dedicar a difundir a própria obra, mesmo que seja ruim, e frequentemente usarão o poder influência que conseguem para prejudicar autores mais talentosos, porém não tão bem sucedidos, a quem invejam ou contra quem guardam rancor por críticas do passado.
Paulo Coelho admite que tem um “livro negro” com nomes de pessoas contra quem revidará se elas algum dia dependerem dele para algo. Raphael Draccon já deu entrevista dizendo que procura para os selos editoriais onde tem influencia somente autores que não criticam ninguém e que, sim, pesquisa a influência do autor nas redes sociais, não só para avaliar seu alcance, mas também para verificar se suas opiniões não se chocam com as dele.
O resultado final desse estado de coisas é que temos uma literatura dominada por bons vendedores em vez de bons produtores de conteúdo. Porque aqueles que são bons em difundir não admitem exercer um papel de ponte entre o mercado e o trabalho daqueles que são bons em produzir porque, ehem, isso requereria a qualidade mais rara dos dias atuais, a humildade.
Não que eu ache que seja possível no contexto capitalista, existir um outro estado de coisas. Eu não acho.
A falta de humildade é um requisito do capitalismo competitivo: todos precisam dar-se valor, precisam apregoar as próprias qualidades (e denegrir as dos outros) para buscarem um escasso lugar ao sol. Apesar do que dizem os gurus da autoajuda, não há lugar para todo mundo. Quem vai chegar lá? Aqueles que conseguirem abrir o caminho a cotoveladas.
Talvez a grande novidade que temos visto nos últimos anos é que os autores comercialmente bem-sucedidos — que antes se contentavam em vender mais, ficar ricos, comprar iates e namorar gente bonita — agora exigem também aquilo que antes se dava como prêmio de consolo aos “fracassados”: troféus, elogios da crítica, vagas em academias etc.