Com o recente terremoto de acusações de assédio sexual contra personalidades do mundo do cinema voltou à baila um antigo debate, nunca inteiramente superado, sobre a maneira como a sociedade deve lidar com a obra de pessoas que se mostraram detestáveis. Esse debate talvez tenha sido feito pela primeira vez de maneira ampla após a Segunda Guerra Mundial, quando várias personalidades do mundo da arte e da filosofia haviam simpatizado com o nazismo: Martin Heidegger, Knut Hamsun e Louis-Ferdinand Céline foram autores que enfrentaram graves acusações de “traição nacional” (Hamsum e Céline) e sofreram com o opróbio da academia, mas nenhum destes teve a carreira interrompida de maneira definitiva.
Mais recentemente surgiram movimentos para reavaliar a obra de autores do passado considerando a sua “herança” de racismo, machismo ou algum outro “ismo” para o qual a humanidade se tornou mais sensível, supostamente. A nova ideia que se propaga é a de que devemos destruir através do boicote as carreiras dos autores e artistas “execráveis”, tal como se fossem Charles Manson.1
Muito antes das controvérsias recentes de Hollywood houve o questionamento da obra de Mark Twain, por seu linguajar “ofensivo”,2 houve a tentativa de banir Monteiro Lobato de nossas escolas, houve campanhas de difamação de autores do passado por causa de sua incapacidade de corresponderem aos ideais modernos de santidade. Esse debate, que começou com um “desafio ao currículo” para torná-lo menos macho e branco, ainda que ao preço de substituir as obras questionadas por outras de qualidade inferior, mas escritas por autores do sexo e da cor correta, chegou agora à proposta de transformar a crítica em ativismo político. É um Rubicão que precisamos decidir se cruzaremos ou não.
A humanidade sempre foi composta principalmente por tipos os mais execráveis. A ética sempre foi a preocupação de uma minoria, muitas vezes a minoria que perecia nas guerras justamente por não ser capaz de fazer “tudo” para vencer. A seleção natural não favorece a razão e nem a ética, por isso o ser humano é selecionado para ser supersticioso e trapaceiro. Com uma demão de falsa moralidade proporcionada pela ideologia, temos o cidadão de bem, religioso e esperto.
Por uma estranha coincidência, foram estes mesmos tipos execráveis, e não anjos perfeitos, que produziram as obras que nos foram legadas pelo passado. Pessoas de belo caráter não costumam estar presentes na terra em número suficiente para influenciar o mundo de maneira decisiva — e também não costumam ter em si a centelha de inquietação que leva o ser humano a aproximar-se do extremo e do sublime. A arte das pessoas execráveis não é, portanto, uma curiosidade dispensável. Dependendo de como classifiquemos “execrável”, simplesmente não haverá nada que reste a ser estudado no passado.
Alguns autores têm a fama excelente, o que basicamente significa que sabemos muito pouco sobre eles. Se soubéssemos mais, alcançaríamos os seus segredos profundos e encontraríamos algo a nos chocar.3 A diferença entre os “execráveis” e “não execráveis” não está em uma impossível perfeição moral, mas em onde traçar a linha imaginária que separa os comportamentos “execráveis” dos “ aceitáveis”. Não tenho conhecimento de que já tenha se chegado a um acordo sobre onde traçar a linha: cada um a coloca onde quer.
Quando perguntamos “o que fazer com a arte das pessoas execráveis” o que estamos perguntando, de fato, é se ainda podemos manter a separação entre o indivíduo e sua obra.
Durante a maior parte da história da humanidade pareceu razoável supor que a obra transcende o autor. Isto vem desde a mais remota antiguidade, quando o texto era tido como palavras sagradas, passando pela Idade Média, quando o livro passou a ser visto como objeto sagrado e pelas Idades Moderna e Contemporânea, quando o fetiche do livro foi substituído pelo fetiche do fazer literário. O ápice desta ideia de separação foi trazido por Roland Barthes, que decretou a “morte do autor” diante de sua obra: segundo o crítico francês, uma vez que a obra é publicada, perde o autor o seu controle sobre as interpretações que podem ser feitas dela. A obra deixa de pertencer a quem a escreveu e passa a pertencer a quem a lê – e o leitor tem a liberdade de atribuir ao texto significados relativos a si mesmo, o que mais recentemente se reflete no conceito de “shipar”.
Também na filosofia isso foi resolvido no mesmo sentido: uma das bases do pensamento racional é o conceito de que devemos examinar as ideias por seu valor objetivo, evitando desqualificá-las devido ao autor ou, ainda mais rasteiro, interpretá-las de maneira relativa a quem as emite. Existe até um belo nome em latim para o tipo de raciocínio que ataca a obra por causa do autor: Argumentum ad hominem.
Separar o indivíduo de sua obra quer dizer que não nos importa quem escreveu um texto de valor literário. É uma atitude moderna e libertadora, que liberta o homem comum da prisão intelectual do feudalismo, período durante o qual somente os nobres e os membros da igreja estavam autorizados a escrever. Colocar um nobre de alta linhagem no mesmo nível de um camponês alfabetizado é um dos efeitos teóricos da separação do indivíduo e da obra: o nobre pode ler a poesia escrita pelo aldeão, se ela for boa, o industrial pode ouvir a música feita pelo favelado, se ela for boa. A “qualidade”, esse fugidio conceito tantas vezes definido de forma elitista e injusta, era como ponte teórica entre o lado de baixo e o lado de cima.4
Mas a separação entre indivíduo e obra tem um outro efeito que se tornou indesejado: o prejuízo ao moralismo. Se podemos apreciar a obra escrita por uma pessoa humilde, por que não podemos apreciar também aquela criada por alguém detestável? O autor, a partir do momento em que se torna “famoso”, adquire a liberdade de agir além do senso comum, praticando atos que os comuns não podem. Esta “aristocracia artística” criada pelo conceito da “qualidade” levou ao surgimento do “autor maldito” e do “astro drogado”. Não seria possível imaginar Rimbaud e Verlaine sem o conceito de separação. Não teria sido possível metade da rebeldia do rock’n’roll.
Para os moralistas isso sempre foi intolerável. Os pânicos morais contra os artistas dissolutos são antigos, datando desde a época vitoriana, quando Oscar Wilde caiu em desgraça por sua homossexualidade, e chegando ao auge nos anos setenta, quando os roqueiros drogados eram vistos como sacerdotes do anticristo. Ocorre que, com a religião em declínio em boa parte do mundo ocidental, esses pânicos morais não conseguiam ter credibilidade geral junto à população.5
Desde os anos 1960, porém, vem ocorrendo um gradual solapamento dos valores iluministas de racionalidade e objetividade, substituídos por ideias relativistas que negam a existência de padrões objetivos. A “qualidade” artística foi atacada como uma mera convenção excludente, por exemplo. Na arte moderna, belo é aquilo a que o artista chame de belo e é o público que deve ter a “mente aberta” para aceitar.6 Mais do que questionada como uma convenção, a “qualidade” objetiva foi atacada como um instrumento ideológico de dominação: os indivíduos periféricos não têm que adequar-se ao gosto das classes dominantes para serem aceitos em uma cultura comum. Em vez disso devem buscar formas “ autênticas” de expressão que tenham significado para eles próprios e suas comunidades e são as classes dominantes que devem ser convencidas a aceitar essas noções variantes de “qualidade”, definidas conforme os respectivos “lugares de fala” de quem as pratica.7
A culminação desse solapamento ocorre quando já não se pode criticar os dotes vocais e a habilidade musical de um artista sem que isso seja confundido com uma discriminação de natureza racial ou de gênero ou de orientação sexual. “Escrever bem” já não importa, o que importa é que cada microcosmo existente no seio da população seja representado, mesmo que por um néscio que não sabe encontrar a própria bunda no escuro. Vamos além disso: a segmentação rígida da sociedade faz com que nos sintamos representados somente por quem seja parecido conosco. Daí a necessidade de que cada nicho cultural se represente, mesmo que não tenha produzido alguém digno de representá-lo.
São, de fato, duas as faces de uma mesma pergunta: “o que fazer com a arte das pessoas execráveis” quando ela nos compele a gostarmos dela e “o que fazer com a arte execrável das pessoas” quando somos cobrados a gostar dela. Não é possível responder a uma pergunta sem abordar a outra. Ambas estão ligadas em uma insolúvel e recíproca “chave de pernas” no ringue das ideias. A única maneira de solucionar o impasse é por arbitragem.
Devemos manter a separação entre o autor e sua obra?
Se você acha que sim, então não está obrigado a gostar de Pablo Vittar por ser atualmente o maior ícone gay da música pop brasileira. Está liberado para dizer que ele não sabe cantar e nem compor.
Se você acha que sim, então não está obrigado a deixar de gostar dos filmes de Woody Allen só porque ele foi um escroto ao se relacionar com a Soon-Yi.
Se acha que não, então não pode criticar Pabllo Vittar porque ele é gay e os homossexuais só se sentem representados por ele. Sendo ele o maior ícone gay do momento, você, se for homossexual, está obrigado a gostar dele, porque não fazê-lo seria algo como “trair o movimento”.
Se acha que não, então assistir a um filme de Woody Allen é uma falha moral e inadvertidamente gostar desse filme é um pecado mortal.
Existe uma das opções na qual um arroto de Pablo Vittar deve ser aceito e ninguém deve gostar de A Rosa Púrpura do Cairo.
Entre ambos os extremos reside a posição ideal. Escolha como achar melhor.
- Antes de se tornar o líder de uma seita fanática e o mandante de uma série de crimes horríveis, Manson foi um compositor e intérprete de folk music, que chegou a ter uma canção gravada pelos Beach Boys. No início dos anos 1990 o Guns ‘n’ Roses também gravou uma obra de Manson. ↩
- No caso de Mark Twain, a controvérsia se deveu ao emprego por ele da palavra negro para se referir a pessoas negras. Nos Estados Unidos este termo adquiriu um caráter ofensivo a partir da segunda metade do século XX e hoje é considerado uma injúria racial. Acontece que Twain, escrevendo no final do século XIX, não tinha como prever a mudança de acepção da palavra no futuro. ↩
- A condenação da arte de pessoas execráveis torna-se, muitas vezes, a condenação da arte das pessoas que sabemos serem execráveis. Permitir que a condenação dos execráveis se consolide como uma prática significa permitir que o poder econômico e midiático determine a quais obras daremos valor: para destruir uma carreira bastará apenas que uma campanha de marketing foque nos aspectos negativos da personalidade de um artista. Temos visto nos últimos anos provas suficientes de como a mídia é capaz de criar heróis e depois destrui-los (Collor, por exemplo). Será que a mídia não seria capaz de usar o moralismo como uma ferramenta para destruir os artistas que deseja descartar? ↩
- Não quero aqui dizer que acredito que exista uma qualidade objetiva e definível, mas que a existência de tal conceito permitiu construir a ponte a que me refiro. Exemplos dessa ponte em funcionamento foram, aqui no Brasil, a aceitação de artistas periféricos, como Cartola, Elza Soares, Jorge Ben Jor e outros. A própria MPB se baseou inteiramente na ideia de que tal ponte seria possível, isso significa que o conceito de qualidade objetiva, ainda que discutível, merece respeito e não o devemos descartar pura e simplesmente por não concordarmos. ↩
- O que não quer dizer que as forças conservadoras e religiosas deixaram de tramar a seu modo para reimpor seus valores. ↩
- Essa é a suprema encarnação do elitismo, de que sou várias vezes acusado. Na inversão de valores do mundo de hoje, o artista revindicar a legitimidade do que faz, sem ter de se submeter a nenhum conceito ou padrão externo, é visto como uma forma de “humildade”, enquanto propor a ideia de que a qualidade é algo externo ao artista e que requer adaptação e aprendizado é visto como “elitismo”. ↩
- Apesar da utilidade do conceito de “lugar de fala” em outros contextos, ele envenena a crítica de arte porque exige um lugar para obras que não tenham “qualidade” baseando-se na ideia de que o produtor de tais obras, devido à sua condição pessoal, tem o direito de se representar. Na prática isso quer dizer que, se a sociedade é majoritariamente pertencente ao grupo X e o grupo minoritário Y está sub-representado na produção artística, obras produzidas por artistas do grupo Y serão valorizadas a fim de reduzir a disparidade de representação e não porque sejam merecedoras de atenção. ↩
Aqui é a Fernanda parabéns pelo conteúdo do seu site gostei muito deste artigo, tem muita qualidade vou acompanhar o seus artigos.