Eu entendo muito bem quem se ressente da existência de “sexismo”, “racismo”, ou puro mau-caratismo em obras literárias (ou quaisquer outras), mas acredito que essas pessoas padecem de um imenso equívoco quando começam a focar nessas imperfeições das obras literárias do passado. Não chego a dizer que é “mimimi” (mesmo me coçando a língua para dizer), mas que são três os problemas desse entendimento:
- Anacronismo — frequentemente queremos cobrar de autores do passado um conhecimento que eles não poderiam ter.
- Non Sequitur — a incapacidade de diferenciar entre causa e efeito leva alguns a imaginarem que a presença de certo elemento na obra terá, necessariamente, um efeito determinado no leitor.
- Recorte específico — certos temas são mais preocupantes do que outros.
O problema do anacronismo é mais fácil de entender. Infelizmente, nem todos são capazes de aceitar que até mesmo os gênios são fruto de seu tempo. Daí quererem menosprezar um autor por atitudes que eram comuns em sua época. Um bom exemplo disso é a crítica que se faz a Euclides da Cunha pela maneira como ele reagiu ao adultério de sua esposa. Vista em contexto, a reação de Euclides não somente era previsível como era obrigatória para um homem de sua posição. Não é porque ele tentou matar o amante de sua esposa, a quem surpreendeu em flagrante de adultério, que devemos deixar de ler “Os Sertões”.
O segundo problema já é mais ardiloso. Esse é o tipo de gente que acha que vídeojogos violentos tornam os jovens mais violentos, por exemplo. Basicamente esse é o pensamento que legitima a censura e vê-lo defendido por quem se acha progressista é espantoso (mas, claro, não espanta que seja defendido por quem se diz progressista). A censura sempre se estabelece para proteger os “inocentes”, para tutelar o gosto das classes médias e baixas, enquanto as classes superiores têm acesso aos conteúdos restritos, quando não são os seus próprios membros que os consomem e classificam.
Talvez devêssemos dizer a essas pessoas que a literatura não tem o poder de doutrinar ninguém a fazer aquilo que está no livro, a menos que a pessoa já o queira fazer. Certamente alguma moça deve ter pintado o cabelo de verde depois de ler “A Casa dos Espíritos”, mas ela só o fez porque já o queria pintar de alguma cor. Se algum agente funerário cometeu necrofilia com um cadáver de moça bonita, não o fez por ter lido o mesmo livro, mas porque a intenção e o (mau) gosto já estavam nele antes.
A verdade é que o poder de sugestão da arte, embora existente, é bastante limitado e muito diluído pelas múltiplas direções em que ela vai. Para cada autor que prega X, há pelo menos outro que prega -X, outro que prega Y e outro que nem está se importando com o alfabeto. Então a obra influencia àqueles que a escolheram conforme suas inclinações.
O terceiro problema é um pouco mais fácil de explicar, quando você já entendeu os dois anteriores, mas costuma ser a explicação mais ofensiva, porque não há como a pessoa compreender a explicação sem se sentir meio “besta”. Então, o normal é que a explicação seja rejeitada, para proteger o ego de quem a ouve.
A questão é que esse pânico contra as obras que contêm “machismo” ou “sexismo” é baseado em uma ênfase curiosa. Querem que rejeitemos Monteiro Lobato porque ele era racista, como se “ser racista” fosse a definição do autor. Reduz-se o artista (escritor, no caso) a uma faceta única de sua personalidade.
Mas o terceiro problema tem uma segunda faceta, esta sim a polêmica.
Você acha que devemos esquecer “Romeu e Julieta” porque os protagonistas se suicidam por causa de um amor frustrado? Não enxerga o perigo de que um filho seu (ou filha) faça o mesmo por ler essa história?
Acredito que você não padeça desse pânico. Duvido que você acredite que seu filho ou filha se matará por causa de um amor romântico mal resolvido só porque leu a peça de Shakespeare. “Nós não pensamos mais assim”, você dirá, “esse negócio de se matar por amor ficou no passado.”
Por que, então, devemos esquecer uma obra do passado que contenha racismo ou sexismo? Não seria melhor educarmos nossos filhos para que eles não sejam mais assim e para que “esse negócio de discriminar os outros” também fique “no passado”? Como vamos educá-los para isso ssem mencionar isso? Como poderemos dizer às novas gerações que racismo é errado se eles não tiverem a oportunidade de refletir sobre ele, através da arte, por exemplo?
Não são os livros que matam as pessoas, que as discriminam ou que as fazem sofrer. Os livros são apenas obras de entretenimento que contém uma parte da cultura, da sabedoria e da estupidez da época em que foram escritos.
Não matemos os livros por causa de nossos pecados, matemos os pecados em nós mesmos.