Essa semana que passou eu embarquei em uma jornada de autoconhecimento e quero compartilhar os resultados com vocês. O ponto de partida foi a pesquisa de Regina Delcastagnè, da UFMG (na época, mas atualmente UnB), que vem repercutindo desde 2015 e que, neste ano, terá publicada sua fase final. Delcastagnè tabulou informações sobre centenas de obras da literatura nacional publicadas entre 1965 e 1979, entre 1990 e 2004 e entre 2012 e 2017. Basicamente ela procurou saber “quem é” o autor brasileiro e “sobre quem” escreve.
Embora eu não seja o tipo SJW, na qualidade de autor que me pretendo cronista de minha época e testemunha ocular da história (além de ter também uma graduação em História e um MBA em Economia), considerei os resultados de Delcastagnè muito interessantes. Aguardo ansiosamente os dados mais recentes.
Basicamente ela descobriu que:
- entre 1965 e 1979, 82,6% dos autores publicados eram homens.
- entre 1990 e 2004, esse número ainda era de 75%
- em ambos os períodos, nada menos que 93% dos autores eram brancos ou assim se declaravam.
- 68,5% dos autores residem no Rio de Janeiro ou São Paulo, embora esses estados tenham menos de 25% da população do país.
Os resultados obtidos or Delcastagnè evidenciaram um autor nacional muito “umbiguista”. Regra geral, o autor brasileiro publicado é um homem branco de classe média até alta, residente (se não nascido) em alguma capital do sudeste, que exerce uma profissão compreendida em uma série bem limitada (jornalista, professor, político, advogado e empresário são as principais), que começa a escrever após os trinta anos anos e que escreve basicamente sobre gente de classe média, branca, residente nas metrópoles do sudeste e envolvidas no mesmo mundo cultural que ele.
Para alguns, como André Forastieri, colunista do portal Record News, esses resultados ajudariam a explicar porque não ganhamos o Nobel de Literatura: esse típico cidadãos burguês brasileiro não se diferencia muito do cidadão burguês europeu, exceto por imitá-lo servilmente e ser muito menos sofisticado intelectualmente — daí não ser atraente ao leitor estrangeiro. A análise de Forastieri me pareceu bastante justa no geral, mas peca por desviar de três circunstâncias essenciais:
- O trabalho de Delcastagnè não fica limitado aos autores habilitados a um Nobel, mas inclui até porcarias que sequer deveriam ser lidas, como José Sarney e Paulo Coelho.
- O Brasil teve excelentes autores que desviaram significativamente desses estereótipos, inclusive alguns que atraíram muitos leitores estrangeiros, e nem por isso ganhamos um Nobel.
- Os autores latino-americanos ganhadores de Nobel não se caracterizavam por ter um perfil muito diferente, apenas escreviam melhor e com mais originalidade.
Essas reverberações dos resultados, ainda mais com a publicação de mais dados levantados pela professora, me levaram a intuir que ainda não se discutiu bastante o significado e o alcance das constatações desse estudo. À medida que ele for expandido, teremos ainda mais facilidade para traçar um perfil profundo de nossa criação literária. Talvez nunca entendamos porque ainda não ganhamos o Nobel, mas entenderemos melhor quem “somos”, literariamente, e quem sonhamos ser.
Uma das curiosidades que o trabalho de Delcastagnè me despertou foi exatamente como o meu próprio universo ficcional estaria caracterizado quando à prevalência de gêneros, orientações sexuais, localidades geográficas, etc. Decidi, então, realizar um levantamento de todas as minhas obras de ficção, exceto aquelas que ainda se encontram inéditas, para tentar desenhar a “cara” do José Geraldo Gouvêa conforme “lido” por quem se acerca de sua obra.
Devo dizer que aprendi muita coisa ao realizar a coleta de dados. Tive uma perspectiva de minhas criações e de mim mesmo que eu até então nem sonhava. Recomendo imensamente que todos os autores amadores façam levantamento semelhante — inclusive ponho à disposição de quem quiser a planilha que usei para tabular os dados.
Mas vejamos o que eu descobri.
A minha pesquisa consistiu em informar em uma planilha os seguintes dados sobre cada personagem de cada conto:
- Nome
- Se é protagonista
- Sexo (masculino, feminino ou inexistente/não evidenciado)
- Orientação sexual (hétero, homo, bi ou assexuado/não evidenciado)
- Profissão, classe social ou categoria
- Se tem falas em discurso direto
- Raça (branca, negra, mestiço, ameríndio ou meio-ameríndio, oriental ou meio-oriental, indiferente/não evidenciada)
Dos contos, por sua vez, foram informados os seguintes dados:
- Título
- Ano de finalização
- Datação do principal núcleo de ação
- Principal localização geográfica da ação
Em uma segunda planilha, dentro do mesmo arquivo, esses dados foram automaticamente tabulados por fórmulas (sim, sou um “cabeça de planilha”) e geraram porcentagens e gráficos. Até o momento eu tabulei as seguintes séries de dados:
- Personagens por sexo
- Personagens por sexo, com falas
- Personagens por orientação sexual
- Personagens por orientação sexual, com falas
- Contos por localização geográfica
- Contos por datação cronológica
- Personagens por raça
- Personagens por raça, com falas
- Protagonistas por raça
- Protagonistas por raça, com falas
- Personagens por raça x sexo
- Personagens por raça x sexo, com falas
- Personagens por faixa etária
- Personagens por faixa etária, com falas
- Personagens por sexo x faixa etária
- Personagens por sexo x faixa etária, com falas
- Personagens por profissão, classe social ou categoria
- Personagens por profissão, classe social ou categoria
Pode parecer muita coisa, mas uma planilha automatiza a extração de todos esses dados: a parte realmente difícil é inseri-los — ainda mais porque, a fim de ter uma análise perfeita, é necessário ler todos os textos para conhecer de novo personagens de que eu já mal me lembrava.
Há outras possibilidades de cruzamento desses dados, que eu posso desenvolver, se algum leitor estiver interessado, principalmente quem deseje reutilizar a minha planilha.
Infelizmente, porém, para extração de mais dados seria necessário reler todos os textos — coisa que, no momento, não me disponho a fazer. Se algum abnegado estiver disposto a isto, podemos pensar em uma parceria.
Antes de realizar esse levantamento eu tinha uma visão muito indulgente de minha ficção. Acreditava que eu era um autor inclusivo, que me caracterizava por ter muitas personagens femininas em minha ficção, que era um “regionalista mineiro”, entre outras bobagens. Os números estapearam a minha cara e me fizeram confrontar um fato desconfortável: eu sou mais parecido com esse “autor brasileiro padrão” detectado por Delcastagnè do que com a imagem idealizada que eu tinha de mim mesmo.
Aos números:
Primeiro eu apurei que somente 120 de minhas obras (o blog contém 657 postagens) são de ficção. Destas, pelo menos vinte não se encontram no blog, ou somente estão lá parcialmente. Dentre as obras de ficção encontradas no blog, eu só não incluí em meu levantamento o romance “A Fazenda da Serpente”, que está inacabado. Todas as demais criações de ficção que eu pus lá estão abrangidas.
Esse número é importante porque eu costumava dizer que tinha “centenas” de contos escritos. Devo baixar um pouco a minha bola, ou então correr para escrever mais uns cento e poucos nos próximos anos, para poder voltar a me gabar.
É verdade que no blog existem dezenas de crônicas que eu não incluí no levantamento porque elas são, de fato, monólogos de autor-pensador. Alguns contos são quase isso, mas têm, pelo menos, um enredo ou o desenvolvimento de um personagem.
A segunda grande ”baixada de bola” foi em relação à “mineiridade” de meus escritos. É certo que Minas Gerais, e a Zona da Mata, de maneira mais específica, tem uma influência enorme em minha ficção, mas é menor do que eu supunha:
De minhas 120 “histórias”, 26.45% (32) se localizam em um “centro urbano indeterminado” (na verdade “indeterminável”) e apenas 40 delas (totalizando 33,34%) estão ambientadas em cidades da Zona da Mata Mineira. O restante do estado comparece com apenas 9 histórias (7,5%) — muito pouco. É curioso que o Rio de Janeiro seja o principal cenário de 4 histórias, mas Belo Horizonte, apenas uma. Incluindo as ambientações rurais (apenas 13 histórias, com 10,83%), Minas Gerais ambienta apenas 51,67% de minha ficção. Podemos supor que uma parte das 35 histórias ambientadas em centros indeterminados poderiam ser ambientadas em Minas Gerais também, exceto que de forma implícita, mas isso muda pouco o fato de que minha ficção não é tão mineira quanto eu achava, embora certamente mais mineira do que o mercado literário nacional deseja.
Um aspecto que me deixou particularmente chateado, por ser formado em história e gostar muito do assunto, é que 57,48% de minhas histórias são ambientadas num lapso temporal coincidente com a minha juventude e vida adulta (anos 80, 90 e “época atual”). Apenas 9 histórias são datadas de períodos da história do Brasil anteriores a 1980. Serão 10 se eu incluir “A Fazenda da Serpente”, que se passa no tempo do Segundo Império.
Apesar de eu gostar muito de ficção científica, só 12 de minhas histórias (7,5%) estão ambientadas no futuro.
Isso quer dizer que eu ainda escrevo muito em minha zona de conforto, trabalhando cenários e personagens de minha realidade imediata, ao mesmo tempo datando as histórias de períodos que eu vivi pessoalmente.
Mas, como dizia Tolstói, “se queres ser universal, fala de tua aldeia”. Não é necessariamente ruim que um autor tenha esse foco local. O ruim é se esse autor não souber retratar a sua realidade.
Isso nos leva a questão de gênero, orientação sexual e raça em minhas histórias. Dentre os meus personagens, globalmente, 60,85% são homens e 33,19% são mulheres. Os restantes são personagenas aos quais não se aplica o conceito de gênero (tais como seres inanimados e autômatos não humanoides). Para mim essa proporção me parecia adequada, por eu mesmo ser homem e muitas vezes escrever sobre o universo masculino, até que eu percebi que 76,19% de meus protagonistas são homens e apenas 19,84% são mulheres.
Isso inclui histórias com dois protagonistas, muitas das quais têm um casal de protagonistas, como “A Invasão”. São muito raras as minhas histórias que têm uma mulher como protagonista isolada. Mesmo eu escrevendo primordialmente sobre o universo masculino, a falta de boas personagens femininas se torna gritante. Considerando que quase 60% de minhas histórias tem apenas dois ou três personagens, isso quer dizer que uma parte significativa de minhas personagens do sexo feminino surge entre outros personagens masculinos, raramente sendo elas o foco da ação.
Resulta natural, portanto, que os meus personagens homens falam mais que as mulheres (76% contra 66%).
No que tange à orientação sexual, é mais difícil determinar percentagens, porque muitos de meus contos colocam os personagens em situações nas quais sua orientação sexual não é determinante. Há alguns onde a orientação é explícita (as histórias nas quais ocorrem relacionamentos afetivos entre personagens) e outros nos quais é implícita, mas, em sua maioria, meus personagens são maleáveis pela interpretação do leitor. Além disso, estatísticas indicam que mais de 80% da população em geral se enquadra como heterossexual. Portanto, é difícil argumentar que eu esteja sendo preconceituoso por retratar tão poucos homossexuais — afinal, eles não são o foco de minha ficção (o que fica ainda mais evidente por eu normalmente não mencionar a orientação sexual de meus personagens como um dado relevante do enredo).
Mesmo assim, 54,04% deles são heterossexuais ou parecem ser, enquanto que 38,72% não tem orientação evidenciada. Dos demais (gays/lésbicas e bi), há uma ligeira prevalência de bissexuais — dos quais todos, menos um, são mulheres. São 21 mulheres bissexuais contra 1 solitário homem.
Mas o aspecto que me chamou a atenção foi que, em média, 76% dos personagens heterossexuais têm falas. Esta proporção não se altera significativamente quanto aos personagens bissexuais (72%), e poderia ser idêntica se não houvesse dois casos de contos antigos com personagens bi e que são praticamente monólogos. Ocorre que apenas 46% dos persoangens homossexuais tem falas (6 de 13). Apesar de esses dados ainda estarem tabulados apenas provisoriamente, creio que já tenho de admitir a minha dificuldade para retratar personagens homossexuais.
Também me revelei muito quadrado quanto à raça/etnia/cor de pele de minhas criações. Embora o maior grupo corresponda aos personagens construídos sem menção explícita à cor de sua pele (42,98%), ainda há 33,06% de brancos contra apenas 5,79% de negros e 12,40% de mestiços em geral.
A etnia de um personagem pouco interfere em ter ou não falas, exceto no caso dos orientias. Na média 72% dos personagens têm falas, 82% dos negros e 76% dos brancos as têm, mas somente 50% dos orientais e 64% dos personagens sem etnia evidenciada.
Em relação ao protagonismo, 33,33% dos personagens principais são brancos, contra 12,5% de mestiços, 5,83% de negros e 51,67% de personagens sem etnia evidente.
A tabulação de raça e sexo revelou concentração de homens brancos (18,47%) e mulheres brancas (12,31%). Pelo menos da sexualização da mulata eu escapo, pois as mulheres mestiças são somente 2,77% dos personagens, contra 9,77% dos homens mestiços. Apesar de poucos, os homens de etnia indígena costumam ter papeis relevantes (100% deles têm falas), assim como os negros (88,67%), ambos acima da média de personagens com fala, que é de 72,40%.
Meus personagens se concentram nas faixas etárias de 20 a 29 anos (31,85%) e de 30 a 39 anos (25,69%). Se também considerarmos a faixa de 40 a 49 anos (15,71%) chegamos a 73,25% dos personagens abrangidos nessas três faixas. Há mais personagens aos quais não se aplica o conceito de idade (fantasmas, robôs, seres mitológicos etc.) do que idosos ou crianças ou adolescentes.
Os homens de 20 a 29 anos são a maioria dos personagens (17,62%), seguidos pelos homens de 30 a 39 anos (16,99%) e das mulheres de 20 a 29 anos (13,8%).
Finalmente, chegando às profissões e papéis exercidos pelos personagens (e ainda faltando tabular esses dados quanto ao sexo), as profissões mais frequentes são estudante (6,79%), dona-de-casa (6,39%), bancário (4,46%), ser mitológico (4,03% – apesar de eu não me caracterizar pela preferência por literatura de fantasia), comerciante (3,18%) e proprietário rural (2,55%). Mesmo assim, 24,63% dos personagens meus não têm profissão evidenciada (esse número não inclui “não-profissões” como “vagabundo”, “desempregado”, “biscateiro” ou “do lar”, mas se refere, apenas, a personagens cuja ocupação não é sequer cogitada).
Acredito factível a conclusão de que o mundo do trabalho é pouco relevante na maior parte de minha ficção, pois mais de 50% de meus personagens não exercem atividades remuneradas (esse número inclui outras categorias, como “criança”, “ser alienígena”, “entidade mística”, “fantasma”, “bandoleiro ou fora-da-lei”, “poeta”, “feiticeiro ou bruxo”, “ocultista”, “herói ou heroína”, “vagabundo” e “turista”).
Aqui deixo esses números como uma contribuição ao debate. A planilha eu posso vir a fornecer futuramente, mas no momento eu ainda a estou revisando.
Não pretendo e nem posso mudar a mim mesmo para melhorar esses números, mas acredito que é um exagero a discrepância entre o autor e a sociedade. Talvez devamos ser mais abertos a retratar pessoas diferentes de nós, inclusive para “quebrar o gelo” para quando aqueles que efetivamente são diferentes resolvam publicar, já não enfrentem a estranheza. Ou porque, quando nos interessamos em dialogar com o outro, é mais fácil que o outro dialogue conosco.
Na qualidade de ficcionista e de alguém que trabalha com a CRIATIVIDADE, acho um pecado grave que um autor não consiga retratar a quem não esteja em seu círculo cultural imediato. Assim como é incompetente o desenhista que só sabe desenhar um tipo de ser (“casinhas” ou “gatos”, por exemplo), é incompetente o autor que só desenha um tipo de personagem.
Senti um grande choque ao ver como os meus números reproduzem uma situação documentada na literatura em geral, esfregando na minha cara que eu reproduzo em minha obra uma situação de preconceito e silenciamento do outro. As reflexões sobre isso ainda não terminaram para mim e resultarão em muitas reavaliações futuras de meu escrever.
A preferência existe e é natural. Mas não deve prevalecer ao ponto de invisibilizarmos quem é diferente e de perpetuarmos padrões que, muitas vezes, já caducaram na sociedade em geral.
Convido-os a refletir sobre isso e posso oferecer para seu uso a planilha de tabulação de dados, caso queiram levantar essas informações sobre a sua própria obra.